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Conselho Federal de Medicina mantém trincheira bolsonarista

Na terça-feira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, anunciou a formação de uma “comissão representativa” visando debater o PL 1904 no segundo semestre. Não especificou exatamente como será a composição dessa comissão, mas invocou que “todas as forças políticas e sociais participariam do debate, sem pressa e sem qualquer tipo de açodamento”. No Salão Verde da Câmara, em meio a todos os matizes partidários, Lira levantava o freio de mão de um projeto que fora colocado em tramitação após 23 segundos de análise em plenário e que equipara o aborto legal após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. Nada mais, nada menos, nada simples.

Mais que a tomada de consciência de que tal equiparação, no mínimo, transgride o Código Penal, que não estabelece tempo gestacional para o aborto em caso de mulheres que engravidam de um estupro, provavelmente caiu-lhe a ficha de que, se a discussão era um aceno à bancada evangélica de olho na sua sucessão, melhor seria embuçar a proposta naquele momento. Por meio de uma virada de chave nas mensagens de grupos feministas, que focaram menos na questão de saúde pública e mais na proteção das meninas violentadas, o PL do Aborto havia se transfigurado em PL do Estupro. Se o primeiro é um clássico vespeiro em que tradicionalmente não se mexe em época de eleição, alguma gradação há para que o segundo seja uma pecha indelével que ninguém quer carregar, seja em que tempo for.

No dia seguinte, no entanto, o Conselho Federal de Medicina (CFM), depois de se encontrar com o ministro Alexandre de Moraes, voltou a condenar a assistolia fetal, técnica que usa medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto antes de sua retirada do útero. Retomou, portanto, a resolução 2378, de 2024, que chegou meio casada com o PL 1904 ao vedar ao médico utilizar essa técnica em aborto previsto em lei quando houver, nas palavras do Conselho, “probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”. Moraes suspendeu essa resolução por meio de liminar, depois que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) já havia inclusive suspendido por seis meses, em votação unânime, duas médicas que atuavam no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona Norte de São Paulo, em casos de aborto legal.

Há que se pensar em que cenário navega o CFM e conselhos regionais da categoria para ir nessa maré que envolve punir até mesmo seus pares quando eles se mostram ímpares. Uma das hipóteses aponta a proximidade das eleições, mas as eleições internas. Nos dias 6 e 7 de agosto, os médicos votam nos conselheiros federais que vão compor o plenário do CFM para os próximos cinco anos. Cada Estado e o DF elegerão um titular e um suplente, totalizando 54 conselheiros.

“Esta é a gestão que está seguindo os preceitos da pauta bolsonarista em que a maior parte da categoria votou”, recorda o advogado Henderson Fürst, que preside a Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB de São Paulo. No ano passado, nas eleições para os Conselhos Regionais de Medicina, havia um site com um esquerdômetro, que vasculhava filiações, detalhes de currículo, apoio ao Mais Médicos e apertos de mão de determinados candidatos a determinados políticos para apontar ideologias “sabidamente negativas para médicos”. Não há informações de quem criou ou deu suporte financeiro ao site, mas apenas a chapa 1 saiu ilesa porque nenhum de seus membros foi “denunciado” como de esquerda.
“Condenar a assistolia não é uma questão técnica, é uma estratégia, parte de um projeto político”, diz. Nessa linha de intencionalidade, figura com desenvoltura o conselheiro federal pelo Estado do Rio de Janeiro Raphael Câmara Medeiros Parente, relator da resolução 2378, médico formado em ginecologia e obstetrícia que foi secretário Nacional de Atenção Primária do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro.

Parente é enfático em afirmar que um feto de 22 semanas é viável, que será cuidado pelo Estado e que será colocado em sequência para adoção, numa presunção de que existe, por exemplo, estrutura médico-hospitalar em nível nacional para tornar essa viabilidade possível. Se esse critério beira a utopia, nas palavras de Fürst, a posição do CFM contra o aborto legal após as 22 semanas caminha contra a lógica quando, em vez de estimular que se interrompa a gravidez o mais precocemente possível em casos de estupro, promove objeções para barrar o procedimento.

“Esse é um falso debate”, afirma Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e fundadora da Anis – Instituto de Bioética. “Nunca vi, no Congresso Nacional, um debate sobre técnica médica. O debate deveria ser sobre como cuidar dessas meninas e mulheres que sofreram estupro e correm risco de vida”, diz. Se é para ter debate técnico, afirma ela, que fosse em audiência pública.

Para aqueles que preconizam o código de deontologia médica de absoluto respeito pela vida humana, ambos, Fürst e Diniz, lembram de procedimentos estéticos muitas vezes periclitantes, na linha dos peelings de fenol, cujas regulações não se mostram centrais nas discussões do Conselho, mais centrado em pautas inflamantes de costumes, como de resto toda a conjuntura política brasileira.

A ação do CFM quanto ao aborto legal, novamente para os dois especialistas e também para demais críticos da atual gestão do Conselho, extrapola suas competências. A assistolia, por exemplo, é recomendada pela Organização Mundial de Saúde e tida pelos protocolos nacionais e internacionais como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas. Mas a OMS tem sido jocosamente descartada em tempos trumpistas e pós-trumpistas pelos seguidores do ex-presidente americano, especialmente após a pandemia de Covid-19.

“Se alguém define protocolos no campo da ginecologia e obstetrícia é a Febrasgo”, diz Diniz, referindo-se à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. As políticas de saúde no Brasil ficariam a cargo do Ministério da Saúde. “Neste momento, o CFM está mais próximo de um sindicato do que de um órgão que tem as melhores práticas científicas”, conclui.

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