Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

PL do Aborto: há conversa com a direita

Ninguém esperava o que aconteceu ontem. De repente, sem anúncio prévio, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira convocou os líderes de partido para se enfileirarem atrás dele e fez um anúncio à nação. Disse que o projeto de lei que equipara aborto após a vigésima segunda semana a homicídio não vai ser votado em urgência, que sua intenção sempre foi de que os debates na Câmara fossem tocados com toda a transparência perante a sociedade. Disse, ainda, que em agosto, com muita calma, vai organizar uma comissão na Casa para fazer o debate. Foi além, tá? Afirmou que nada, nesse projeto, vai “retroagir direitos já garantidos e nada vai avançar que traga qualquer dano às mulheres”.

PUBLICIDADE

Nada disso é verdade. Esse projeto horroroso saiu do fundo do esgoto bolsonarista, foi posto para ser votado com urgência sem nenhuma transparência. Não houve qualquer debate público e essa era justamente a intenção. Não é só. O objetivo do texto é, especificamente, retroagir em direitos. É dar incentivo para que juízes reacionários posterguem a autorização para abortos já considerados legais pela lei. É um projeto feito para dificultar a vida de mulheres e principalmente meninas que foram esturpradas. Não tem como esse projeto existir e não trazer dano às mulheres.

Tem mais, e isso foi dito, com todas as letras, pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante, do PL de Alagoas. O projeto, que vem do gabinete dele, foi criado para testar Lula. Para intimidar o presidente da República. Para encurralar o presidente numa situação em que se pusesse, como dizem os reacionários, contra a vida. Ou seja, este projeto nasceu para chantagear o governo, não dando a mínima para a garfada que estava metendo em mais de uma centena de milhão de mulheres brasileiras. É um projeto cruel, demagógico, produzido de má fé.

E o pior é que aconteceu exatamente o que Sóstenes Cavalcante previa. O projeto foi aprovado em regime de urgência sem que o PT, o partido do presidente, se manifestasse em plenário. Foi aprovado com urgência e aí do Palácio do Planalto não deu um pio. Demorou dias, quando a sociedade brasileira já estava berrando, para o presidente Lula se posicionar. Demorou dias não só para isso. Demorou dias para a primeira dama, que se manifesta sobre quase tudo, falar qualquer coisa. Ela, que se declara feminista. Os bolsonaristas achavam que iam intimidar a presidência e estavam certos. Intimidaram mesmo. O Planalto só se moveu quando percebeu que o Brasil não queria. Se o Brasil tivesse ficado em silêncio, também o Palácio do Planalto estaria mudo. As mulheres brasileiras não teriam sido defendidas pelo governo.

E, no entanto, a pressão da sociedade foi tão grande que Arthur Lira precisou fazer um anúncio à nação, com todos os líderes atrás, dizendo “olha, vocês entenderam tudo errado.” Não. A gente entendeu tudo exatamente como foi. A Câmara dos Deputados tentou botar mulheres estupradas na cadeia com pena maior do que a dos homens que as estupraram. A Câmara tentou tirar das mulheres direitos que elas já têm há décadas. Fez mais. Fez isso tudo por jogatina política, não por convicções éticas.

Só que houve reação da sociedade. Esta é a segunda vez que o bolsonarismo erra a mão feio, acontece uma reação brutal do Brasil e eles voltam atrás. A primeira foi com o Projeto de Emenda Constitucional, a PEC das Praias. Agora foi com o PL do Estupro. Já tem deputado bolsonarista no Supremo querendo processar, querendo calar, quem está dando esse nome à coisa. PL do Estupro, PL do Estuprador. Eles sentiram. Eles erraram a mão. O Brasil está mais conservador, sim. Isto não mudou. Mas nessas histórias tem uma lição: quem entender bem o cenário consegue resistir à deterioração da democracia.

Precisa é estar disposto a entender bem o cenário e fazer a negociação direito. Vem comigo?

Como a gente pode reconciliar essas duas ideias que parecem tão distintas? De um lado está a constatação de que o Brasil se tornou mais conservador do que era. De que o Brasil votou em massa em Jair Bolsonaro mesmo após ele ter conduzido o governo que conduziu. De outro está o fato de que o país não rachou perante o PL do Estupro. Não ficaram bolsonaristas de um lado, não bolsonaristas do outro. Os reacionários, sempre tão hábeis nas redes sociais, tomaram uma surra nelas. Como que essas duas peças se encaixam?

Mais do que isso. Uma penca de deputados bolsonaristas, entre eles Nikolas Ferreira e Carla Zambelli, protocolaram na última sexta-feira, no Supremo, um pedido para que a também deputada Fernanda Melchionna, do PSOL gaúcho, tirasse de suas redes todas às menções ao “PL dos Estupradores”. Quer dizer, na sexta, quando a onda contra o projeto estava começando a crescer, eles sentiram a pancada. Eles, que estão sempre gritando contra todo mundo dizendo que são contra censurar as redes, eles que a toda hora mentem, distorcem o que os outros falaram, manipulam fatos nas redes sociais, querem que o Supremo proiba alguém de chamar esse projeto de PL dos Estupradores. Por quê? Porque já na sexta-feira estavam sentido a pancada.

Sabe, deputados são profundamente sensíveis a pressão social. Eles vivem de ter votos a cada quatro anos. Precisam agradar aos seus eleitores. Essa turma que inventou esse estilo de ser parlamentar fazendo lives de dentro do plenário, mobilizando as massas o tempo todo, criando memes, eles não fizeram isso à toa. Comunicar pelas redes funciona. E é raro que eles percam a mão. Perderam, e perderam feio. Mas vejam só: na Câmara achavam que Planalto ia ficar acuado. No Planalto acharam que não dava pra brigar. Em ambos os lados cometeu-se o mesmo erro de cálculo. E por quê? Porque ambos acreditam numa caricatura do eleitor conservador. Ambos acreditam que todo conservador é reacionário. Não é.

Tem pistas para a gente compreender o que aconteceu em dois artigos. Um, do antropólogo Juliano Spyer, na Folha de São Paulo de segunda. Outro, na última Piauí, do filósofo político Marcos Nobre.

O Spyer é especialista em evangélicos. E ele ouviu consistemente algumas ideias dessa população. Uma é de que pedofilia e estupro, no campo popular, são percebidos como crimes hodiondos. A ideia de que a mulher estuprada receba uma pena maior do que o estuprador é inconcebível. O segundo ponto é ainda mais importante. Cito o Juliano nas palavras dele.

“Evangélicos e evangélicas reconhecem o transtorno emocional que tem quem engravida como consequência de estupro. E se essa mulher decide abortar, deverá se acertar com Deus; não é para ela ser julgada pelos homens.”

Isso quer dizer o seguinte. Evangélicos e evangélicas são seres humanos. São pessoas que sentem. São pessoas com bom senso. Ser conservador não quer dizer que você seja insensível.

Aí disso a gente pula pro Marcos Nobre. Ele vem argumentando que o governo Lula não entendeu o momento histórico em que foi colocado. Existe uma crença de que é possível fazer um governo de esquerda no Brasil de hoje. Não é. Lula foi eleito numa aliança com o Centro e a Centro-Direita, foi eleito por um conjunto de grupos bastante distintos que não pensam como a esquerda, mas que percebem no bolsonarismo uma ameaça real à democracia.

Os evangélicos não são a caricatura que a direita e a esquerda imaginam. Não é botar “aborto” num projeto de lei e todo brasileiro conservador vai ser a favor. A direita e a esquerda acharam que sim. Não é. As pessoas são capazes de pensar com a própria cabeça e saber reconhecer uma injustiça quando a veem. Sabem reconhecer um gesto de crueldade quando o sentem. Da mesma forma, o Brasil do agro não é um bloco monolítico antiambiental como o que as pessoas imaginam.

Estes dois grupos, o Brasil do Agro e o Brasil evangélico das periferias urbanas, são frutos do sucesso da Nova República. Nunca um regime, em nossa história, trouxe tanta gente de fora da pobreza para a classe média. Essas pessoas querem ter voz nas decisões que são tomadas a respeito do futuro do país. Querem ter influência em como se desenham as políticas públicas. A esquerda é minoria neste Brasil de hoje, mas Lula tem votos para ser colocado no segundo turno. Nenhum político de centro ou centro-direita tem votos para isso. A reação popular à PEC das Praias e ao PL do Aborto mostram que essa conversa é possível.

Existe uma centro-direita no Brasil. Existe um centro brasileiro. Existe uma direita democrática. Este conjunto de pessoas terá duas escolhas, em 2026. Uma será votar em um candidato de direita que terá a bênção de Jair Bolsonaro e que carregará consigo, em sua base, o movimento antidemocrático. Talvez esse candidato seja um político mais tradicional, como Ronaldo Caiado, talvez seja um ex-ministro de Bolsonaro, como Tarcísio de Freitas. A outra escolha é votar em Lula. Lula até topou distribuir cargos para a frente ampla que o elegeu, mas a verdade é que ele não abre espaço programático. Marcos Nobre está certo. Lula não entendeu o que está acontecendo.

Mas esta semana tivemos motivos para compreender que há conversa possível. Só que precisa ser uma conversa programática. Não é a política externa de Celso Amorim ou a política econômica de Aloisio Mercadante que promoverá um acordo. Não é ficar atacando um Banco Central que é técnico, mesmo que Roberto Campos Neto não saiba se comportar. O Brasil é o que é. O bolsonarismo vai acenar com um acordo programático. Alguns dos eleitores vão acreditar, outros não vão. Se a promessa será cumprida? Sabe-se lá. Com Bolsonaro, não foi. E Lula. Vai dar espaço no seu governo para governar junto? Ele precisa destes eleitores. A conversa é possível.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.