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Quem ainda vota em Lula?

Está caindo, no Palácio do Planalto, uma ficha importante. Não é a esquerda que vai reeleger Lula. Que, na verdade, sem Bolsonaro no páreo sua campanha para reeleição em 2026 vai ser até bastante mais difícil. Está caindo a ficha de que Lula precisará cada vez mais de votos do centro e, sim, da direita não radicalizada para se eleger. A ficha já está caindo no Planalto, mas é aquele caindo mais ou menos. Já tem gente que verbaliza isso nos corredores, gente que o presidente ouve. O próprio Lula já ensaiou começar a falar mais de Deus nuns discursos aqui, criticar Nicolás Maduro ali. Mas ele logo volta. Hoje mesmo já estava dizendo que vai aumentar impostos e conta com a queda das taxas de juros para controlar a dívida pública. Ele sabe perfeitamente que não controla o Banco Central, portanto não controla a taxa de juros. Sabe, igualmente, que este é o discurso que a esquerda quer ouvir mas que todo o resto odeia. Ou seja, ouve aplauso da esquerda enquanto a economia dá aquela saída básica dos trilhos. Não tem jeito. Quem trabalha profissionalmente fazendo transações de dinheiro entende exatamente o que o recado diz. Haverá descuido com as contas públicas, haverá déficit, então a Bolsa cai, o dólar sobe. E esses discursos do presidente fazem com que aquela ficha, a de que não tem eleitor de esquerda o suficiente no país para garantir a eleição de Lula, não chegue a ninguém da esquerda. E isso, para Lula, é um problema que não está claro ainda como resolver. Porque resolver é delicado.

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Sabe, essa crise da democracia engana, e ela engana mais em países como o nosso, que não têm tradição bipartidária. Ela tem traços que são comuns a todas as democracias e, claro, traços que são particulares a cada país. O fenômeno fundador da crise é o surgimento de um movimento anti-sistema, uma revolta contra o regime. O cientista político alemão Yascha Mounk deixa bem clara essa ideia no título de um dos seus livros: o povo contra a democracia. A partir da segunda metade deste século 21, um grupo muito grande de eleitores chegou à conclusão de que o regime, como é, não funciona para eles. É um sistema feito para prejudicá-los e favorecer apenas a outros grupos particulares.

É importante a gente entender como chegam a esta conclusão, mas vamos pegar antes a ideia macro. O fato é que rapidamente se formam, na sociedade, três grupos. Um grupo é anti-sistema. Quer mudar tudo. Não está feliz com o jeito que a democracia funciona. O segundo grupo não acompanha política, não se interessa, tem uma vaga ideia. O terceiro grupo é todo o resto.

E este aí é o ponto chave. Entre as pessoas preocupadas com política só há dois times. Os que querem derrubar o sistema e todo o resto. Não se trata de direita contra esquerda. Se trata de extrema direita contra todo o resto. Num lugar como os Estados Unidos, como esse movimento está no Partido Republicano, é fácil entender que do outro lado estará sempre o Partido Democrata. Joe Biden contra Donald Trump é bastante claro. Sistema contra anti-sistema. Onde você está é em quem você vota. Na França, o liberal Emmanuel Macron representa todo o resto. Nele, no segundo turno, votam esquerda, centro e a direita que não quer destruir tudo. E foi exatamente assim no Brasil de 2022. Em Lula votaram esquerda, centro e a direita que não quer ver a democracia destruída.

Esse é o modelo simplificado da crise da democracia que começou a avançar a partir de 2013. O momento em que o modelo começa a se complicar é no entender desse “destruir tudo”. Quão claro está para as pessoas o que o bolsonarismo põe em risco? Quão claro está, para as pessoas, o que é a própria democracia?

Porque aí entra uma questão bastante brasileira que foi melhor descrita pelo cientista político Cesar Zucco, professor da Fundação Getúlio Vargas do Rio. E essa questão não tem nada a ver com a crise democrática, vem de bastante antes. A cabeça do eleitor brasileiro é meio bipartidária, sim. É só que um dos partidos desse bipartidarismo não tem nome. O termo que melhor o descreve é antipetismo.

O PT teve, ao longo dos anos 1990, a capacidade de se construir, se definir, criar um eleitorado próprio, se estruturar em todo o país, e permear todas as estruturas de poder. Nenhum outro partido político, nem mesmo partidos sólidos e históricos e com muitas ramificações como o MDB, conseguiu construir um eleitorado cativo como fez o PT. O PT é o único partido completo brasileiro, por definição.

Então, de certa forma por conta de sua própria competência, o PT definiu a política brasileira entre quem quer o PT no poder e quem não quer o PT no poder. Se por um tempo cultivamos a ilusão de que a polarização no país era entre PT e PSDB, essa ilusão se desfez. O PSDB nunca foi um partido de direita mas sempre foi jogado para a direita pelas circunstâncias. Por quê? Porque eleitores antipetistas não costumam ser de esquerda. Os eleitores dos tucanos não tinham cabeça parecida com a dos políticos tucanos, em sua maioria. Por causa do Plano Real, um dos feitos mais importantes da Nova República, os tucanos encarnaram o antipetismo por mais tempo. Mas o PSDB se desfez e esta força, o antipetismo, segue de pé.

Então temos duas questões diferentes, aqui. A crise democrática gerou dois conjuntos de eleitores. Os anti-sistema e os a favor do regime. A Nova República gerou dois conjuntos de eleitores. Os petistas e os antipetistas. Estes conjuntos não são perfeitamente iguais. Tem uma quantidade muito grande de antipetistas, de eleitores que não desejam o PT no poder, que porém entendem o que está acontecendo e não querem perder a democracia.

E a gente, como é que a gente se vira com isso?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Jair Bolsonaro é muito claramente alguém que ameaça a democracia. Não é só que ele tenha verbalizado com muita clareza que gostava da ditadura no Brasil, de que tenha ameaçado desobedecer a ordens do Supremo Tribunal Federal, de que tenha insinuado dar um golpe. É mais do que isso. Além da agressividade de Jair Bolsonaro, sabemos que ele planejou um golpe de Estado porque há uma investigação da Polícia Federal já concluída a este respeito.

Só que Bolsonaro não está mais no páreo. Ele não é mais candidato.

Em 2022, Lula foi eleito por um cisco. Menos de dois milhões de eleitores num universo que passa de 170 milhões. Eram pessoas que não viam o PT no governo fazia sete anos. A memória do PT no governo estava atenuada. E, ainda assim, essa soma e interseção de antipetismo com anti-sistema chegou quase lá. Lula venceu por um triz.

Em 2026 não vai ser assim. E não existem dois grupos sólidos de eleitores de cada lado. O que existe é um grupo sólido no bolsonarismo e, do outro lado, todo o resto. No meio deste todo o resto tem gente de centro, tem gente de centro-direita, tem até gente de direita. O centro e a direita, no Brasil, dão bem mais do que metade dos eleitores, segundo mais de uma pesquisa no último mês.

Os analistas de esquerda pensam num Tarcísio de Freitas, num Romeu Zeca, num Ratinho Júnior, num Caiado, e ficam horrorizados. Como podem essas pessoas votar num candidato bolsonarista? Como ousam não votar em Lula?

Só que nenhum desses candidatos se porta como Bolsonaro se portava. Nenhum desses possíveis candidatos esteve envolvido com a tentativa de golpe de Estado. O que vai importar é o que o eleitor acha de Lula e o que ele acha dos outros candidatos.

O problema dessa equação é que quem vai decidir a eleição não pensa com a cabeça de eleitor de esquerda. Não tem os valores dos eleitores de esquerda. Não tem, sequer, a mesma regra moral dos eleitores de esquerda. Na verdade, bem pelo contrário. Uma quantidade imensa de brasileiros acha que a esquerda tem uma regra moral frouxa em relação a corrupção, em relação a comportamento, a sexualidade, drogas. Acha, também, que a esquerda é bastante hipócrita quando diz defender a democracia, aí vai e afaga Irã, China, Venezuela, Nicarágua, Cuba.

Este problema só vai se tornar mais agudo quando a eleição municipal passar e o que parece que acontecer se tornar óbvio. A direita vai dar uma lavada na esquerda nas eleições deste ano, governará uma quantidade muito maior de brasileiros e, portanto, terá uma estrutura invejável para concorrer contra o presidente da República. Some-se a isso um Congresso que periga se voltar contra o Planalto nos últimos dois meses de governo.

Quanto mais a esquerda vem com um “como ousa sugerir não reeleger Lula”, mais as pessoas que votaram em Lula a contragosto ficam com raiva. Este problema não irá embora. Quanto mais Lula discursa para a esquerda, ignorando o resto do Brasil, mais se afasta dos eleitores que preferem não votar no PT mas engoliram o sapo em 2022.

É difícil mensurar quantos são estes eleitores. Alguns institutos de pesquisa falam de 3 ou 4%, outros se aproximam de 10%. Seja como for, a eleição brasileira de 2026 será disputada neste espaço. Os radicalizados vão votar no candidato do bolsonarismo, quem sempre vota no PT vai votar em Lula. O que vai sobrar é a turma que não gosta de Lula e tem repulsa por Bolsonaro.

Esta é a margem. Se o candidato da direita for hábil o suficiente para tranquilizar essas pessoas e Lula seguir fazendo o discurso que vem fazendo, ele não recupera os eleitores que conquistou suando muito. Lula precisará novamente, no segundo turno de 2026, de abaixo-assinados de economistas tucanos, de declarações de gente que não é petista mas é conhecida, de movimentos pela democracia por acadêmicos e intelectuais. Sem Bolsonaro no páreo, ou mesmo com Bolsonaro preso por tentativa de golpe, será muito difícil convencer que o risco ainda existe.

A eleição não está ganha. O Congresso não vai ajudar. O país ainda está deslocado à direita. É a esquerda decidir se quer amenizar o discurso ou se vai pagar pra ver.

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