Desafios do pluralismo: conviver ou colapsar?

O debate público nacional tem degenerado muito rapidamente nos últimos anos, sintoma de uma nova era de intolerância

Nunca fui um decadentista, nem mesmo desses que, a cada transformação do mundo, consideram que algo essencial foi definitivamente perdido e que o futuro significa degeneração. Nunca sequer segui aqueles que julgam que a mudança na estrutura da esfera pública representa apenas uma degradação da deliberação pública democrática. Umas coisas se perdem, outras se ganham, e a vida segue.

Mas eis que me vejo, há algum tempo, insistindo nessa tese: o debate público nacional tem degenerado muito rapidamente nos últimos anos, após um longo período de qualificação que coincidiu com a restauração da democracia brasileira. As evidências se acumulam, tanto no que diz respeito à forma mais ampliada do debate público, na forma das várias conversações civis por meio das quais as pessoas discutem em público os assuntos de interesse comum, quanto no que concerne à dimensão mais eminente da esfera pública que é a deliberação parlamentar.

Uma “balcanização” da discussão política, com uma extraordinária fragmentação de forças e um nível espantoso de hostilidade interna, é inegável. Assim como uma politização onívora que não toma o menor conhecimento das paredes que costumavam separar as esferas pública, particular e íntima, gerando ainda mais confusão e inflamando os ânimos à menor contrariedade. Além disso, a consideração por valores fundantes da democracia, como o reconhecimento do pluralismo e a autocontenção exigida pela tolerância, está em declínio. Sucessivas vitórias eleitorais de discursos e posições políticas extremistas, dogmáticas e fundamentalistas, por sua vez, demonstram que o radicalismo e a beligerância são as atitudes que mais compensam no mercado político atual. Por fim, o esvaziamento do centro político, espaço por excelência da moderação e da negociação, com as pessoas sendo constantemente atraídas para os polos do espectro ideológico e moral, é evidente.

Tudo isso é sintoma de uma nova era de intolerância

Tudo isso, e mais uma série de fenômenos que o imperativo da brevidade me impede de listar, é sintoma de uma nova era de intolerância que claramente não é mais um aspecto marginal da vida pública, mas, infelizmente, uma nova cultura política.

Se voltarmos os olhos para as deliberações parlamentares, o panorama não se apresenta mais auspicioso. Pelo que se pode depreender da briga de rua ocorrida na quarta-feira, 5 de junho, em duas reuniões de colegiados da Câmara dos Deputados, a deliberação foi substituída por tiro, porrada e bomba. Houve deputado de chapéu, como se estivesse numa vaquejada, bradando que "comigo é 'bateu levou'"; houve ameaças, insultos, dedos na cara e tentativas de agressão; teve xingamentos chulos dignos de casas de má reputação; ocorreu transfobia e pessoa trans chamando deputada de feia e mandando-a tratar do cabelo; teve gritos de “comunistas” de um lado e “fascistas” de outro, como soe acontece.

O que não pode não ter é Wi-Fi, 5G e celulares de última geração, pois nada disso faria sentido se não pudesse ser registrado, editado e entregue diretamente nos smartphones de milhões de ávidos militantes dos vários lados em conflito, para uso e consumo nas disputas pelo controle das quebradas digitais. Aliás, tentem contar para alguém de outro país que, nas casas legislativas nacionais, vereadores e deputados fazem lives durante as sessões parlamentares, gravam vídeos online de suas próprias brigas nos plenários e filmam-se pelos corredores do Congresso dando chutes na bunda de provocadores – que também os filmam. Eu já tentei, ninguém acredita; parece implausível.

Não expresso esse lamento apenas por ser um pacifista, que acredita que a política é o inverso da guerra e, por temperamento e convicção, prefere evitar conflitos a ver o mundo em autodestrutiva combustão. Nem sou tolo a ponto de achar que a política é mais colaboração que conflito, que se todos derem as mãos para ver o pôr do sol à beira-mar, o lobo, enfim, pastará com o cordeiro. Tampouco acredito que um cidadão socrático, todo racionalidade e boa-fé, que subordina seus interesses e apetites às prioridades da busca deliberativa pelo melhor argumento, um dia tenha predominado na política.

O que temos à mão?

Na verdade, sou um realista; portanto, lido com o que tenho à mão.

E à mão, o que temos? De um lado, sociedades cada vez mais nitidamente pluralistas, com grandes blocos de interesses e ideologias muito distintos entre si e que vieram para ficar. A extrema direita, por exemplo, contra muitas expectativas, não foi um acidente de percurso, uma aventura política de um país que perdeu o norte por volta de 2013, mas que cedo ou tarde encontrará o caminho de volta a posições mais moderadas. Da mesma forma que se mostrou um fracasso o pensamento desejoso dos antipetistas que, por volta de 2016, ainda acreditavam que era possível erradicar o PT da face da Terra, vem se demonstrando um devaneio da esquerda e dos progressistas a crença de que a extrema direita iria se desidratar e encolher até voltar aos 3% que tinha antes da década passada.

Aliás, nem no Brasil, nem no resto do mundo isso acontecerá, como mostraram esta semana as eleições para o Parlamento Europeu. A eleição de Milei na Argentina e a regeneração eleitoral de Trump nos Estados Unidos, por sua vez, esfregam em nossa cara que as chocantes vitórias da extrema direita no final da década passada não foram uma excepcionalidade ou um descuido que não se repetirá. Ao contrário, talvez seja melhor admitir desde já que essa é a nova normalidade.

O mesmo pode ser dito dos identitários de esquerda, que, embora não consigam transformar toda a fricção e barulho que produzem na esfera pública em mandatos eleitorais, claramente são uma força dominante no debate público e hegemônicos em muitos setores importantes da sociedade, como as universidades, o campo da cultura e o jornalismo. Sou um dos que acreditam que os identitários de esquerda não serão novamente absorvidos pela esquerda tradicional, reduzidos a uma das suas pautas e parte das suas agendas. Ao contrário, vão disputar palmo a palmo com a esquerda convencional pelo predomínio no campo progressista e irão acirrar os atritos e divergências até que fique claro que não são forças políticas convergentes, embora muitos hoje desse lado do espectro ideológico se esforcem para se autoenganar de que são apenas rusgas de família. A esquerda tradicional, da opção preferencial pelos pobres, da luta de classes, da justiça social como igualdade econômica, encontrou um concorrente em seu próprio terreiro, cada vez mais consciente dos próprios interesses e com apetites por poder, cargos e posições cada vez mais explícitos.

Além disso, a sociedade brasileira não está apenas politicamente mais dividida — inclusive com novos agrupamentos ideológicos de cuja existência não se suspeitava até a década passada —, mas as partes em que ela se fragmenta são muito conscientes da novidade que representam e da força que arregimentam. Por isso, a extrema direita não arreda pé da esfera política; pelo contrário, se tornou ainda mais forte nas casas legislativas e na formação de uma base social, apesar do revés eleitoral do bolsonarismo em 2022. Também por isso os identitários de esquerda conseguiram não apenas sobreviver, mas prosperar durante os anos do bolsonarismo governante, emergindo valentes e procurando briga, inclusive com o partido do presidente, na nova primavera lulista.

O pluralismo que se apresenta hoje no Brasil é particularmente desafiador

O pluralismo que se apresenta hoje no Brasil e em grande parte das democracias liberais é particularmente desafiador. Os partidos de extrema direita não estão para o centro e para a esquerda como os partidos da democracia cristã ou da direita tradicional costumavam estar na configuração mais frequente depois da 2ª Guerra. Os identitários de esquerda não estão para a esquerda como estava a cisão entre trabalhistas, comunistas e socialistas. Sua nêmese política (que se alimenta eleitoralmente dessa rivalidade), os identitários de direita, das pautas nacionalistas, xenofóbicas ou ultraconservadoras, são parte constitutiva da nova extrema direita emergente. A distância ideológica entre as partes em conflito é hoje imensa, e a isso se soma uma distância moral ainda maior. Em suma, os lados não apenas se repelem ideologicamente como se repugnam moralmente.

Nenhum dos lados do debate público dá sinais de que é capaz de tolerar, conviver e cooperar com o outro lado. Mesmo os progressistas, que sempre se gabaram de sua racionalidade, adesão à democracia e reivindicação de tolerância, andam aplicando a etiqueta de “fascistas” a torto e a direito, com a mesma prodigalidade com que os grupos autoritários de direita carimbavam adversários de “comunistas” e “subversivos”. Não são apenas rótulos; são marcadores sociais que autorizam o ódio moralmente justificado contra os alvos etiquetados. “Fascistas”, “comunistas”, “subversivos”, “pedófilos”, “racistas”, “___fóbicos” designam aqueles que não estão sob a proteção da liberdade de expressão nem da tolerância democrática.
Parece justificado, pois, afinal, se ameaça a minha existência, é justo que eu seja resistência. O problema é que o cartório que emite esses títulos geralmente é o meu sentimento como membro de uma tribo política que se sente ofendida com a mera existência desse outro desagradável e moralmente condenável que está diante de mim. Os adjetivos saem fácil, o ódio lhes segue no encalço. Tem autor ensinando como lidar com os fascistas que estão por todos os lados nesse país; tem gente dando curso sobre “como combater o fascismo nas eleições”. E se você chegar perto e perguntar que fascista é esse de quem estão falando, muito provavelmente descobrirá que o fascista é você.

A extrema direita e os ultraconservadores, por sua vez, nunca foram apresentados propriamente à democracia, muito menos a valores como tolerância e pluralismo ou a princípios como o do melhor argumento.
Nesse impasse é que entra o meu lamento pelo desaparecimento da possibilidade de o debate público cumprir o papel que lhe é designado na democracia. Como o lugar previsto num regime pluralista para que as forças políticas em campo disputem pontos de vista, ofereçam razões, lutem pela formulação e interpretação dos problemas políticos, escutem e considerem os argumentos dos adversários, mediando e negociando interesses e agendas. A democracia supõe divergências, mas também exige que elas sejam mediadas por uma troca pública de razões, que os participantes da discussão reconheçam os outros como interlocutores legítimos, que todos se obriguem a ouvir e considerar lealmente o que os outros têm a dizer. E “os outros” aqui, sejamos realistas, frequentemente significa as outras posições políticas de que não gostamos e cujas ideias não aprovamos.

Numa sociedade em que as partes se estranham cada vez mais, em que as posições estão cada vez mais distantes umas das outras e frequentemente são antípodas, e em que o capital social (confiança, reciprocidade e redes de interações) é cada vez mais escasso, ou a democracia encontra um jeito de fazer as partes conviverem ou ela própria será impedida de funcionar ou será substituída, na primeira oportunidade, por outra coisa. Como nenhuma das partes, que agora se odeiam e ainda cultivam esperanças de que o outro será extinto ou definhará, dá sinais de que vai sair da sala, talvez a democracia é que tenha que se mudar. E isso é preocupante.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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