A onda fascista encobre a Europa
Não é só Donald Trump, nos Estados Unidos. A onda da extrema direita se tornou, neste fim de semana, uma ameaça também na Europa. As eleições para o Parlamento Europeu aconteceram nos últimos dias em 27 países. Na maioria dos países membros, foi uma eleição normal, de vitória conservadora. Só que, na Alemanha, a AfD de extrema direita passou o Partido Social Democrata do premiê Olaf Scholz e se tornou o segundo maior partido do país. Os Irmãos da Itália, partido da premiê Giorgia Meloni, manteve-se o número um em votos. E, na França, a Reunião Nacional comandada por Marine Le Pen deu uma surra no grupo do presidente Emmanuel Macron.
É isso. O Centro europeu não afundou e ainda lidera o Parlamento, mas aconteceu assim porque nos outros países ele se manteve de pé com alguma folga. Nas três principais economias do bloco, foi a extrema direita que cresceu, e muito.
Mais do que isso. A maioria dos partidos nacionais grandes da união fazem parte de macropartidos europeus. O partido conservador normal, de centro-direita, é o EPP, Partido do Povo da Europa. Está nele a alemã Ursula von der Leyen, que é presidente da Comissão Europeia. Na Alemanha, ela pertence ao Partido Democrata Cristão, tradicionalzão, a direita normal alemã desde o fim da Segunda Guerra, no qual também está a ex-primeira-ministra Angela Merkel. O EPP se manteve o maior partido europeu, com 185 das 720 cadeiras.
Até ganhou nove deputados novos. Cresceu.
Só que o bloco de Centro europeu é composto de três macropartidos. O segundo é o S&D, Aliança Progressista de Socialistas e Democratas, que são os social-democratas, a centro-esquerda tradicional europeia. Eles seguem sendo a segunda maior força, com 137 deputados, mas perderam duas cadeiras. Diminuíram.
O que completa o Centro é o partido liberal, o Renova Europa. Está com 80 cadeiras. Tinha cento e duas. É. Os liberais perderam vinte e dois deputados.
A democracia europeia do pós-guerra foi dominada por estas três estruturas políticas. Social-democratas, democratas cristãos, e em geral relevante mas menor, entre os dois no espectro direita e esquerda, os liberais. Se o Parlamento Europeu é uma mostra de como está o continente agora que chegamos à metade da década de vinte do século 21, o Centro tem 402 cadeiras. São 42 mais do que a metade. Mas é a menor folga que jamais tiveram. Ursula von der Leyen deve conseguir ser reeleita, mas esses macropartidos europeus são frouxos. É mais difícil manter fidelidade partidária nestes grupos, então ela não tem muito espaço de manobra. Se perde 10% dos votos dos deputados do bloco de centro, já não aprova mais nada. E a média de perda de deputados a cada voto parlamentar costuma ser maior do que 10%.
Isto quer dizer que provavelmente precisará costurar alianças para além. Uma opção na esquerda democrática são os Verdes. Eles têm 52 cadeiras. Parece suficiente, mas eles estão em queda. Perderam 19 deputados e são o sexto grupo mais forte do Parlamento Europeu. Para ter vitórias mais consistentes, os macropartidos em quarto e em quinto vão cobrar um preço, e parte do preço terá de ser pago em afrouxar regulações ambientais, em enrigecer espaço para imigrantes, em fechar as fronteiras europeias para comércio.
Olha, 2024 não é 1924. Benito Mussolini recebeu 65% dos votos italianos em 24. O partido de Giorgia Meloni teve uma votação estupenda e chegou em primeiro lugar, mas isso quer dizer 28,5% dos votos. Na França, o partido de Marine Le Pen chegou em primeiro, mas isso quer dizer que conquistou 18 das 79 cadeiras francesas em jogo. O Renaissance, partido de Macron que faz parte do macropartido liberal Renova Europa, foi o segundo mais votado. São doze cadeiras.
Não se trata, aqui, de tentar enfeitar o que não tem como enfeitar. É marcar a diferença. 2024 não é 1924. Não existe uma onda fascista por engolir a Europa. As grandes forças políticas europeias ainda são as tradcionais forças políticas europeias. Mas que ninguém se engane. Nunca o sucessor do fascismo esteve tão grande.
Estes dois macropoartidos europeus em quarto e quinto lugar, que formam juntos o segundo maior bloco do Parlamento Europeu, representam a extrema direita. Sim. Eles são diferentes. Entender a diferença é fundamental para entender como esta eleição mexe com a Europa e, claro, com o Brasil.
Um dos problemas da conversa de rede social é que muita gente na esquerda pega esses movimentos de direita radical e tranforma todos numa coisa só. Aí quando alguém aponta que há diferenças, logo vão dizer: “passando pano”. O problema é que há diferenças e, se você não compreende as diferenças, não compreende o problema real. Se não vê nuances, não entende como resolver. Javier Milei tem muitos pontos de similaridade mas também muitas diferenças em relação a Jair Bolsonaro. Milei, por exemplo, não faz um discurso golpista como Bolsonaro e Donald Trump. Essas coisas são mais do que sutilezas. E, para entender este crescimento da direita dura na Europa, é fundamental compreender que diferenças existem. Sem entender essas diferenças não dá para compreender a vitória.
E, sim, tem recado para o Brasil. O crescimento da direita dura europeia se deu, principalmente, por conta do voto jovem. Esse ano, pela primeira vez, Bélgica e Alemanha permitiram voto a partir dos 16 anos. A contracultura é da direita radical nessa geração. O AfD alemão e a Reunião Nacional francesa tiveram principalmente votos entre jovens. Em pelo menos quatro países, a Alemanha e a França, mas também na Bélgica e na Finlândia, dá também para fazer um corte entre esses jovens. O voto na direita radical estava mais concentrado entre rapazes do que entre moças. Essas coisas têm explicação, tá? E de novo: ajudam a entender o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos. Esse movimento não é isolado.
São dois macropartidos. O maior, agora com 73 assentos, é o Conservadores e Reformistas Europeus. O segundo, com 58 assentos, é o ID. Identidade e Democracia. Que, aliás, é um nome muito adequado. É um movimento identitário nacionalista de extrema direita. Nenhum dos dois tem qualquer coisa de moderado, mas o ECR é menos radicalizado que o ID.
O ECR é, digamos assim, um partido neoliberal. Eu não gosto da palavra, mas ela se aproxima. Margaret Thatcher e Ronald Reagan iam se reconhecer nessa agremiação, mas eles iam ser moderados, nela. Defendem valores conservadores, muitos dos partidos nacionais associados defendem abertamente que a sociedade europeia deve ter valores cristãos. Não têm política social, mas têm política econômica rigorosa. Querem governos menores. Aliás, querem principalmente uma União Europeia com menos poder sobre os governos europeus.
O ID é bastante mais radical. Não tem nem a política econômica liberal. Pelo contrário. Antiglobalização, anti-União Europeia, nacionalista no talo. Seu objetivo no Parlamento Europeu é tirar poder do Parlamento Europeu. Quer fechar as fronteiras da Europa pois considera a imigração de quem vem de fora, e isso inclui os brasileiros que vão pra Portugal, uma ameaça à identidade europeia pura. Protecionistas, querem limitar comércio internacional.
Está no ID a Reunião Nacional de Marine Le Pen, o grande vitorioso da eleição francesa. Já o Irmãos da Itália, da premiê Giorgia Meloni, é do ECR. Percebem a diferença? O grande vitorioso alemão, o AfD, não está em nenhum dos dois. Era do ID, mas foi expulso. Sabem por quê? Porque não considera todos os membros da SS nazista criminosos de guerra. Então, para o ID, aí já é demais. O AfD faz parte de um bloco de 46 cadeiras que acaba se tornando o sétimo em tamanho no parlamento, que é o de deputados não afiliados a nenhum macropartido. O macropartido Esquerda é ainda menor, tem 36 assentos. É a oitava força no parlamento.
Percebem por que, para a presidente da Comissão Europeia, a aliança mais fácil de fazer acaba sendo com o grupo da direita dura italiana? Sim, isso dá enorme poder a Giorgia Meloni. Mas o problema é que ela é diferente de Marine Le Pen. De qualquer jeito, o fato é que a direita dura, não importa quanto no extremo está, venceu nas três maiores economias europeias. Embora o Centro ainda esteja no comando da União, ele se inclinou pra direita. E não vai sair de lá tão cedo.
O ponto é o seguinte: o mundo está se transformando. A agricultura precisa de cada vez menos gente. A indústria é igual, a indústria não emprega muito. Porque não precisa. E porque, olha, ficou muito, mas muito mais barato fazer manufatura na China e em outros países asiáticos do que na Europa ou nas Américas. Os empregos bons do futuro, cada vez mais, são empregos de gente que senta na frente de um computador por muitas horas. Sim, inteligência artificial vai poupar inclusive esse tipo de trabalho, mas o cerne do argumento não muda. Emprego que paga bem, cada vez mais, é emprego que exige alta capacitação. Todas as economias estão passando por esta transformação.
No centro de qualquer estratégia nacional está a capacitação profissional. Está educação, gente. Educação. Educação. Por que jovens, principalmente jovens rapazes, estão se radicalizando à direita? Porque não têm expectativa de trabalho, não sabem como sonhar o futuro. Não adianta, a nossa cultura ainda diz que o papel do homem é sustentar a família. Quanto menor seu nível educacional, mais forte é sua convicção de que o papel do homem é sustentar a família. Então, para jovens rapazes, a incapacidade de enxergar um futuro em que consigam crescer na vida é cruel. Aí votam Bolsonaro, votam Trump, votam Milei. Votam no AfD, votam nos Irmãos da Itália, votam na Reunião Nacional. Votam em quem está alimentando o ressentimento.
Esses jovens não querem dinheiro do governo. Por isso que esses partidos não defendem grandes programas sociais. O eleitorado não está pedindo isso. O que estes jovens eleitores querem é poder crescer por conta própria. Eles buscam reafirmar sua potência.
Isso não foi embora no Brasil, não está indo embora. O governo Lula não tem uma política orientada para estes jovens porque sequer consegue reconhecê-los como um grupo. Viram “os bolsonaristas”, viram “os fascistas”, a gente que não tem jeito. Hillary Clinton, na eleição que perdeu para Donald Trump, os chamou de “os deploráveis”. São as pessoas preconceituosas. As pessoas que preferíamos que não existissem. E estão lá. E votam entendendo muito bem como são percebidas fora da extrema direita.
A Europa de 2024 não é a Europa de 1924. Mas o fato é que a extrema direita cresceu, não diminuiu. O problema segue lá. De pé. E em nenhum lugar ameaça mais do que em Paris.