Porto Alegre em sépia
Às 15h de terça-feira, 21 de maio, o caminhão-pipa a serviço do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) de Porto Alegre está estacionado na Travessa dos Cataventos, a ruela localizada entre as entradas da Casa de Cultura Mario Quintana. Cinco homens, com vassouras, rodo e uma mangueira que jorra a água vinda do caminhão, esfregam o chão e as paredes marcadas por água que subiu cerca de 1,5m.
“Não vai ser melzinho tirar essa lama toda da cidade”, alerta Carlos Augusto, de 63 anos, que coordena os demais e dirige o caminhão. Ele é o único que não está vestindo o uniforme laranja da Cootravipa, a cooperativa responsável pela limpeza da cidade. Um dos colegas segura a mangueira no ombro, Carlos segura a mangueira direcionando a água e um terceiro usa a vassoura para tirar a lama que está grudada no chão.
É o primeiro dia em que é possível acessar o histórico prédio do Hotel Majestic, que foi casa de Mario Quintana por 12 anos, após o Guaíba tomar a cidade. Ao cruzar a Rua Sete de Setembro, na ala leste da Casa, a Travessa Araújo Ribeiro ainda está tomada pela água. Virando tanto à direita quanto à esquerda, caminha-se uma quadra e o Guaíba ainda está ali. Pela Rua dos Andradas, no lado oeste, há lama, mobilização de limpeza dos estabelecimentos e marcas do caos. Parado na esquina da Travessa dos Cataventos com a Rua Sete de Setembro, o segurança temporário da Casa de Cultura externa o contraste: “olhar para trás e ver o Guaíba baixando, mas olhar para frente e ver todo o estrago causado”.
“Devido aos eventos climáticos, a Cinemateca Paulo Amorim não abrirá na sexta, dia 3”. O aviso foi colocado na porta do cinema, que conta com as salas Paulo Amorim, Eduardo Hirtz e Norberto Lubisco, e é coordenado pela jornalista Mônica Kanitz. Nas vitrines, a programação ainda é de 2 a 8 de maio. O tempo parou na Casa de Cultura.
Quadros da exposição Verter — ou como falar sobre direitos das pessoas com útero ainda preenchem as paredes do 5º andar, o mesmo que dá acesso ao Jardim Lutzenberger. Com a porta fechada, há outro aviso: fechado para manutenção. Como um centro cultural, a casa não é um espaço de barulho, é um ambiente calmo em meio à vida corrida do centro da capital. Entretanto, o silêncio absoluto nos andares, interrompido apenas pelo barulho do caminhão-pipa funcionando, é um aviso de que a manutenção será barulhenta e, provavelmente, demorada.
Com galochas altas e máscara para enfrentar o cheiro forte, os funcionários limpam o acesso à uma das salas e à bilheteria. Ainda não é possível dimensionar o tamanho das perdas, entretanto, as salas foram as mais atingidas, já que ficam no térreo.
Mônica explica que será reformado um espaço por vez. Enquanto conversa, olha para baixo, parece visualizar cada sala mentalmente e explica: “os carpetes precisarão ser substituídos, as poltronas também”. “Em uma das salas o ar condicionado fica no subterrâneo”, diz movimentando as mãos em direção ao chão, “precisamos de luz para ver se está funcionando ou não.” Em quase 10 anos de casa, não esconde o orgulho de também ser curadora de um espaço tão apreciado pelo público. Seleciona filmes que façam diferença na vida das pessoas, que levem a uma reflexão, destaca.
Quem projeta os filmes selecionados por Mônica é Tiago. Antes com a lava-jato, agora parafusa uma das portas da casa por conta da segurança. “A Cinemateca mudou a minha vida”, afirma, de forma tímida. Não muito dado a entrevistas, segundo ele mesmo, narra de uma forma nostálgica os 20 anos em que trabalha na Cinemateca. Sem uma formação oficial, tudo que aprendeu sobre cinema e projeções foi atuando no cinema da Casa de Cultura. No início da carreira, projetava os filmes de 35mm, não sente falta do barulho da projeção, mas, melancolicamente, diz que a tecnologia deixou para trás o encanto de projetar um filme.
Às 15h da quarta-feira, 22 de maio, os funcionários da Cinemateca removem poltronas que mofaram por conta da umidade. Onde no dia anterior estava estacionado o caminhão pipa, na quarta dá lugar a alguns dos 260 assentos que precisarão ser substituídos. A poucos prédios dali, Paulo Rossi, proprietário do restaurante Rossi Grelhados, pinta de preto a grade do estabelecimento. O local serve apenas um prato há 27 anos: alaminuta — mais conhecido como PF no restante do país. Aos sábados, a fila para o almoço costuma dobrar esquina da Rua João Manoel.
Se no cotidiano de uma vida normal, o centro é a cultura viva de uma cidade, o de Porto Alegre encara dias inertes e silenciosos. São poucos carros que circulam pelas ruas do centro histórico. O barulho vem dos geradores de energia, das mangueiras lavando as calçadas e da vassoura esfregando o chão. É um bairro em tons de sépia, mas a paisagem da fotografia não é agradável aos olhos. Das poças d’água é possível ver o reflexo dos prédios, que levam as marcas de cada centímetro que o Guaíba foi atingindo e devastando com o alto volume de água. Nas esquinas, sofás, cadeiras, estantes, mesas. “É a história de uma vida sendo levada pela água”, lamenta o segurança da Casa de Cultura.
A chuva, novamente
Às 15h de quinta-feira, 23 de maio, chove em Porto Alegre desde as 5h e a cidade está alagando. Bairros, ruas, avenidas que até então não haviam sido afetadas têm água transbordando. A água invade estabelecimentos que haviam feito mutirões de limpeza no decorrer da semana. Quem havia voltado para casa, se vê novamente ilhado. Lixos boiam pelas ruas, entopem bueiros que jorram água pelas calçadas. Choveu 129,4 mm durante o dia. Entretanto, em coletiva de imprensa, a prefeitura afirma que não houve colapso na cidade.
“A chuva desta quinta já nos causaria problemas com o sistema de bombeamento trabalhando a pleno, com ele trabalhando parcialmente, causou esse colapso”, explica Fernando Dornelles, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
É como um acidente de avião, não é apenas um fator que ocasiona o que acontece em Porto Alegre, esclarece o professor. “Além da falta de bombeamento, a sujeira e os resíduos que estão nas ruas obstruem as bombas que estão funcionando”, acrescenta.
Às 15h de sexta-feira, 24 de maio, chove em Porto Alegre e o nível do Guaíba está em 3,40m, conforme a empresa de meteorologia MetSul, que emitiu um alerta de que o volume da água está subindo rapidamente e que passará de meio metro de elevação.
Em 1948, sete anos depois da até então maior enchente da história de Porto Alegre, o poeta que dá nome à Casa de Cultura escreveu o curto poema em prosa Reminiscências:
“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores?”