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O tema desta edição é desinformação. Em meio à catástrofe do Rio Grande do Sul, grupos da extrema direita se mobilizaram para criar uma nova onda de campanhas de fake news ligadas à tragédia gaúcha. Ações como essas não surgem ao acaso, são coordenadas. Quem quer ganhar vantagem política ao custo de vidas? Quais podem ser as motivações dos grupos que querem criar notícias falsas que impeçam o socorro a vítimas e coloquem em xeque as iniciativas solidárias? E como diferenciá-las de distorções ou de meras críticas legítimas a autoridades e figuras públicas? Essas são as perguntas que norteiam a reportagem.
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Edição de Sábado: A primeira vítima
No Palácio do Planalto, o alerta vermelho de que era preciso uma operação robusta da comunicação para combater notícias falsas sobre as cheias no Rio Grande do Sul acendeu na segunda-feira, 6 de maio. Nas redes, as atenções dos usuários estavam divididas entre dois impactos: conservadores estavam indignados com as cenas sensuais do show da cantora Madonna na Praia de Copacabana, que havia ocorrido na noite de domingo. Também todos assistiam, com perplexidade, aos vídeos divulgados da cheia do Guaíba, inundando Porto Alegre e a região metropolitana da capital gaúcha com as águas que já haviam causado estragos na região serrana do Rio Grande do Sul.
A notícia que preocupou o governo unia esses dois mundos. E inundava o Facebook e o Instagram. A narrativa era de que o governo federal, por meio da Lei Rouanet, havia patrocinado o show da Madonna e, por isso, deixado de enviar recursos para os gaúchos. Imagens mostravam cidades inteiras submersas, a estátua da liberdade da loja da Havan coberta pela metade, pontes e estradas se rompendo e gerando comoção no país. Não se imaginava no governo, no entanto, que isso seria o ambiente ideal para uma nova onda de produção de fake news “em escala industrial”, como classificou um servidor da comunicação da Presidência da República.
Quando a praia carioca recebeu a rainha do pop, a tragédia gaúcha não tinha uma semana. Lula havia visitado o Rio Grande do Sul no dia 2 de maio, na quinta que antecedeu o show. O presidente também havia dado início a articulações com os três Poderes da República, para viabilizar recursos, sem medida, fora do alcance da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao se deparar com a falsa notícia do financiamento da festa de Copacabana com recursos públicos, Paulo Pimenta, ainda no comando da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, estava no estado, na companhia do ministro da Integração Regional, Waldez Góes. Pimenta ordenou imediatamente um esforço máximo de sua equipe em Brasília para desmentir a enxurrada de notícias falsas. O ministro também decidiu gravar um vídeo para ser divulgado nas redes do Planalto. “Desde aquele momento, estamos 24 horas no trabalho de identificar e desmentir notícias falsas que envolvam o governo e o Rio Grande do Sul”, disse ao Meio, um interlocutor do Planalto.
Acontece que, no meio dessa imensidão de mentiras puras e simples, houve também muita confusão, insegurança e crítica — cada modalidade com sua dose de legitimidade. Num cenário absolutamente caótico como o que se instalou no Sul, com áreas inacessíveis e cada cidadão com um celular na mão, as (poucas) informações que circulam não vêm depuradas. Resultam da percepção momentânea, do temor, do desamparo. Quem está atuando de má-fé se aproveita desses momentos para avançar sua agenda — no caso da extrema direita, normalmente de descrédito das instituições e de fomentação de mais caos. Quem está na defensiva, por sua vez, pode acabar desqualificando preocupações e leituras autênticas, taxando tudo de falso ou de parte do mesmo movimento.
É justamente nessa sutileza entre o que é inverdade bruta e o que é distorção ou mera desaprovação que os mal intencionados prosperam. Não raro, eles pegam um fato verdadeiro, em que um cidadão pode ter feito uma reclamação perfeitamente plausível, e aumentam ou desvirtuam um pedaço dele, divulgam com tom de indignação e pronto. Uma meia verdade se torna uma fake news inteira. O governo federal foi um dos alvos preferenciais das notícias falsas. Não foi o único. Militares entraram na dança. Influenciadores. Cientistas. Jornalistas. Pessoas vulneráveis, com desejo de encontrar culpados por suas mazelas e com razões mais que aceitáveis para estarem indignadas mesmo, embarcam na onda.
A operação de guerra do Planalto
Ao começar a busca por notícias falsas, por perfis hostis ao governo, o Planalto se deparou com um “ecossistema de destruição”, termo usado por membros da equipe. A resposta precisava ser na mesma dimensão. Antes dessa guinada, um conteúdo da presidência na página da Secom “Brasil contra Fake” alcançava em média 1 milhão de visualizações, segundo exemplo citado por um palaciano. Diante da tragédia, o vídeo com o desmentido de Pimenta teve dois milhões de visualizações só no X. Quando o influenciador Felipe Neto retuitou, o ministro teve mais de um milhão de visualizações e dessa forma foi se multiplicando. “Era um assunto que realmente preocupava as pessoas”, concluiu, em reservado. Além disso, o governo passou a postar na página “Brasil contra Fake” todo conteúdo sobre o Rio Grande do Sul, o que deu subsídios para vários outros influenciadores produzirem conteúdo próprio informando sobre as ações para minimizar os efeitos da tragédia. Nesse trabalho, o governo classificou pelo menos quatro “macro-narrativas” que precisavam de respostas urgentes, tanto na comunicação quanto em ações políticas.
Uma delas se apoia na ideia de incapacidade e ausência do Estado para socorrer as pessoas. Foi nesse contexto que surgiram “notícias” de que o governo estava barrando caminhões da divisa com o Rio Grande do Sul para evitar que donativos chegassem à população. Seis caminhões foram, de fato, multados por excesso de peso. As multas foram anuladas e eles não foram retidos. Houve uma versão em que se creditava o bloqueio dos caminhões ao próprio governo do Rio Grande do Sul, o que também é falso. Uma meia verdade que passou a revolta depois de embrulhada em distorções. Houve ainda “notícias” de que o governo estava colocando sua logomarca em cestas doadas pela população civil para os desabrigados — uma ideia que, se não desmentida, acaba desmotivando pessoas que gostariam de doar.
Outro eixo identificado foi mais surpreendente. Diz respeito aos militares. Aqui, o governo enxergou um novo rancor da extrema direita, após o fracasso do golpe de 8 de janeiro. Essa ideia apareceu sob o lema “civil salva civil”. Na tese governista, pela primeira vez, a extrema direita estaria contra o Exército, que não impediu que Lula seguisse no mandato após os ataques aos prédios públicos. Alertada sobre essa narrativa, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse que chegou a observar filmagens de militares e agentes da Defesa Civil sendo gravados em um momento de descanso, após uma jornada extenuante de salvamentos. “Lidar com esse tipo de coisa é muito difícil. Se alguém roubou, entrou em uma casa, fez um saque, a gente chama a polícia e é um ladrão. Agora, o que você faz com o roubo da verdade? O que você faz com o roubo da decência? O que você faz com o roubo da sensibilidade?”, questionou a ministra em entrevista ao Meio.
O próprio comandante do Exército, general Tomás Paiva, tomou para si a responsabilidade de rebater a diferenciação entre civis e militares no socorro. “Estamos colocando todo mundo. Aqui não tem que ter diferença entre Exército, Marinha e Aeronáutica, Defesa Civil. Todo mundo está trabalhando nesse momento”, disse. E fez um apelo em entrevista à Globonews. “As fake news atrapalham as pessoas que estão ajudando, principalmente nossos militares, que são a grande maioria. Dos 20 mil agentes públicos que estão trabalhando aqui, aproximadamente 10 mil são do Exército. Essas pessoas têm família também, às vezes, estão deslocadas, só que não podem ir para casa. Estão dobrando três dias, quatro dias. Às vezes não têm tempo para tomar um banho”, disse o general.
Algumas narrativas parecem delírios. Principalmente as que se referem ao negacionismo climático e à ideia de que o clima é manipulado pelos seres humanos para subjugar povos. Na enxurrada de fake news monitoradas pelo governo, a teoria “HAARP” foi identificada em várias postagens. Ela atribui a antenas de um projeto científico americano chamado HAARP a responsabilidade pela tragédia, ideia totalmente rechaçada pela ciência. Num discurso menos delirante e mais palatável a quem não quer ter de transformar o próprio modo de vida, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) usou a tribuna para destilar negacionismo misturado a meias verdades. "Será que o que está acontecendo agora é porque emitimos mais carbono na atmosfera do que emitia-se em 1941? Não. A realidade é que cidades foram construídas, [gerando] mais asfalto, mais cimento, prédios, menos áreas de absorção de água nessa área que já é propícia a alagamentos. É o crescimento urbano desordenado.”
Outros parlamentares extremistas fizeram o mesmo, com todo tipo de assunto. Dos caminhões retidos ao fechamento de clínicas. O ministro Paulo Pimenta pediu, então, que a Polícia Federal abrisse um inquérito para apurar a máquina de notícias falsas que passou a funcionar em meio à tragédia. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, tomou a atitude de acionar a Polícia Federal. Isso provocou os bolsonaristas, que tentaram usar a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, comandada pela deputada Caroline De Toni (PL-SC), para tentar emparedar o governo.
A ideia era convocar Lewandowski para prestar esclarecimentos à CCJ, sob a acusação de uso da Polícia Federal para violar a imunidade parlamentar e a liberdade de expressão nas redes sociais. A reação, porém, foi amenizada após uma reunião marcada pela equipe que cuida da relação parlamentar do ministro na pasta da Justiça e Segurança Pública, que conseguiu articular uma conversa com Lewandowski. O deputado Paulo Bilynskyj (PL-SP) forçava levar a convocação para o ministro, que o recebeu em seu gabinete, junto com a deputada De Toni e Eduardo Bolsonaro (PL-SP), e passou a explicar suas funções à frente da pasta.
Lewandowski reiterou que o ministério não tem poder para mandar abrir inquérito, como eles pensavam que poderia ocorrer. O que ele havia feito foi somente encaminhar o pedido da Secom do Planalto para a Polícia Federal, tudo sem análise de mérito. Também disse que confiava na capacidade técnica da polícia para separar o que é manifestação política do que é crime e que sobre esse trabalho ele, como ministro, não tinha qualquer ingerência. Enquanto o ministro ia falando, Eduardo Bolsonaro chegou a repetir que Lewandowski nunca foi seu alvo. O filho de Jair Bolsonaro, no entanto, não disfarçou seu foco no então chefe da Secom, que assumiu agora como ministro extraordinário para gerir a crise gaúcha. “Meu alvo nunca foi o senhor, meu foco é o Paulo Pimenta”, disse o deputado durante a reunião, de acordo com interlocutores próximos do deputado. O ministro, no entanto, não esboçou reação e reforçou sua disposição em atender a um convite futuro para esclarecer sua atuação na CCJ da Câmara.
Por que agora?
O surgimento dessa nova onda de fake news não pode ser considerado fruto do acaso. O pesquisador da David Nemer, professor de Estudos da Mídia na Universidade da Virginia e especialista em desinformação nas redes sociais, é enfático ao afirmar que é impossível pensar neste nível de desinformação sem pensar no planejamento e numa agenda. “Há uma econômica e uma política. Quem está por trás das fakes news quer ter um ganho, capitalizar em cima. No Rio Grande do Sul, a gente pode definir diversas agendas que podem explicar o porquê de as pessoas estarem tão empenhadas em desinformar”, disse ao Meio.
Entre as principais agendas que engajam, segundo Nemer, estão a anticlimática, que desacredita o aquecimento global, e a agenda política, já de olho nas eleições municipais que ocorrem no fim deste ano. “Lá para outubro, muita coisa que está sendo plantada durante essa tragédia vai ser reutilizada”, afirmou. Ele defende que fenômenos como esse que estamos vendo em relação às notícias do Sul não podem acontecer apenas espontaneamente. “Quando a gente tem ondas intensas de desinformação, é porque o dinheiro para as campanhas voltou”, defendeu.
Por outro lado, o filósofo Pablo Ortellado, professor de Gestão em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo e colunista do Globo, pensa que a questão não está sendo tratada de forma adequada. “É muito difícil você separar uma campanha orquestrada de desinformação de as pessoas emitindo opinião, justamente por que essa ação política está acontecendo sobre uma indignação que é espontânea e legítima”, disse ao Meio, considerando que as ações do governo federal e dos governos locais antes e durante a tragédia no Sul podem ser passíveis de crítica.
O que Ortellado condena é a resposta do governo federal de enfrentar o problema com a criminalização, transformando suspeitas em inquéritos da Polícia Federal. O que ele defende é que a abordagem tanto do governo quanto da imprensa ao lidar com as informações falsas seja feita com mais respeito às pessoas. Sem arrogância. “Até porque tem as coisas que são claramente falsas, mas tem muitos casos intermediários, que são baseados na realidade e que sustentam essa indignação legítima. Você não pode chegar para a pessoa e falar que o que ela está dizendo é besteira”, defendeu, embora acredite que casos graves, em que esse tipo de notícia atrapalha buscas, o trabalho dos agentes públicos e até as doações, devam sim ser investigados pela polícia.
Os dois pesquisadores concordam que o atual momento é propício para a produção de notícias falsas. Nemer sublinha que tragédias como a do Rio Grande do Sul também ganham uma dimensão maior por conta de um fenômeno midiático chamado de névoa da guerra, que ocorre em territórios em que o acesso da imprensa é dificultado, como acontece hoje na faixa de Gaza, por exemplo. “Nesses territórios, embora o acesso esteja muito difícil, você tem algumas pessoas que conseguem reportar. Elas viram porta-vozes, o que lhes dá um imenso poder de informar o que está acontecendo ali no chão, mas, se essas pessoas tiverem agendas próprias, isso abre espaço para a potencialidade da desinformação”, explicou. Já Ortellado lembra que a difusão de boatos em momentos de pânico acontece desde o século 19, mas que o alcance muda com a internet.
Para Ortellado, a desinformação não pode ser vista apenas como uma tática da extrema direita. Ele usa um conceito do Berkman Klein Center, de Harvard, que vê o crescimento de um ecossistema de mídia hiperpartidário, que compreende páginas da internet, YouTube, sites de notícia e redes sociais. “É um ecossistema digital de esquerda e de direita que está veiculando informação e alimentando a militância e a cidadania engajada. O que eles fazem é abastecer as identidades políticas. De outro lado, você tem a imprensa, que teria o papel de fazer a apuração e poder fazer um contraponto aos excessos”, explicou, dizendo que no Brasil temos um sistema tripartite. “Temos o circuito hiperpartidário de esquerda, o de direita, e um outro da grande imprensa, que tem algum tipo de sobreposição com os dois, mas é praticamente um terceiro circuito. Ele até poderia fazer o contraponto, mas não consegue dialogar com os dois campos da polarização para exercer esse papel”, concluiu.
O papel da imprensa é lembrado também por Caio Cavechini, diretor da série Extremistas.br, disponível na Globoplay. "O jornalismo profissional faz um excelente trabalho em campo e nas redações, oferecendo contextualização, dando a dimensão dos estragos e, principalmente, trazendo com sensibilidade histórias dos afetados e dos que os ajudam heroicamente. Esse trabalho dos jornalistas certamente está impactando muitos leitores e espectadores e mobilizando ajuda fora do Rio Grande do Sul. Mas, como vemos, ainda não rompe com o ‘túnel de realidade’ no qual alguns dos brasileiros trafegam. Experiências anteriores diziam que grandes tragédias eram capazes de reunificar povos divididos, que na dor prevaleceria um sentimento de unidade e solidariedade. Infelizmente, isso ainda não aconteceu por aqui."
Tanto o Cavechini quanto David Nemer vêem uma diferenciação entre as redes de direita e de esquerda. Para eles, as redes de direita têm maior poder de mobilização. Parte disso graças aos algoritmos de redes sociais, que dão mais visibilidade a conteúdos que estimulam a radicalização. Nemer também lembra da primazia do WhatsApp no Brasil, e de como ele é ideal para a divulgação de notícias falsas, sem nenhum tipo de mecanismo de controle. O que Cavechini chama de radicalização que nasce do casamento do interesse político dos extremistas com a ganância das redes sociais . “A capacidade de mobilização, de aproveitar esse mecanismo, é o que mais me impressionou durante as gravações da série e é o que ainda me impressiona, com exemplos não apenas no Brasil”, disse.
O Brasil experimentou um alto nível de desinformação nas últimas duas semanas. Em volume e em sofisticação nos métodos. Experimentou também uma de suas maiores tragédias climáticas, que deixaram as pessoas perdidas, frustradas, desesperançadas. O reencontro com a informação verdadeira, em que se distinga mais claramente o espaço de posicionamentos e reprimendas a autoridades e outras figuras públicas, é tão urgente quanto a agenda ambiental.
A vida no abrigo
Quem gostaria de aparecer no jornal de maior audiência do país durante uma tragédia? Quem desejaria conhecer pessoalmente o âncora do jornal a que assiste diariamente após perder a casa na maior enchente da história de sua cidade?
Luís Carlos Almeida dos Santos, na quarta-feira, 15 de maio, participou do estúdio, ao lado de William Bonner, do último Jornal Nacional a ser transmitido do Rio Grande do Sul. O aposentado de 75 anos havia conhecido o apresentador no dia 10, quando o telejornal foi apresentado do parque esportivo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde estão abrigadas as vítimas das enchentes, entre elas Luís. “Uma celebridade”, disse a Bonner ao encontrá-lo. Ao ir aos estúdios da RBS TV, afiliada da Globo em Porto Alegre, com a esposa Jurema Terezinha Ribeiro, o aposentado conheceu também apresentadores locais. “Terminou, bateram palma e tal. E aí teve uma sessão de fotos com todo mundo, até com a equipe da RBS. Pelo amor de Deus, até o William Bonner. Eu sempre conheci eles, sempre assisti. Fico até emocionado em conhecer pessoalmente”, relatou seu Luís. “Ainda comemos pizza”, completou.
Mais conhecido por Chamaco, Luís é um homem negro, alto, grisalho, com o cabelo baixo. Vaidoso, não gosta que o cabelo fique grande, pois, segundo ele, “fica sem corte”. No período em que está na PUCRS, um colega, como ele mesmo chama, do abrigo fez o corte. “Não gostei. Já disse para o meu filho que na próxima vez vamos em um barbeiro.”
Na quinta-feira, quando conversou com o Meio, não fazia nem 12 horas que havia aparecido em rede nacional e passado pelo momento de estrela. Chamaco não poupou elogios a Bonner. “Ele é um cara de presença, um cara bonito. Ele tá com o cabelo grisalho, mas é um cara que não perdeu o charme. Um cara simples.” Entretanto, Chamaco poderia estar descrevendo a si próprio. Elegante, estava vestindo uma calça preta, uma camisa listrada manga longa, abotoada até o colarinho e pulso. Sobre a camisa, um colete de lã, com uma estampa de losangos em diferentes tons de cinza e preto. O aposentado, que trabalhou por 16 anos entregando jornais, não passa despercebido. Em uma hora de conversa, funcionários da PUCRS, voluntários e abrigados passavam para cumprimentá-lo. “Está famoso, seu Luís”, era a frase mais ouvida.
Chamaco é um contador de histórias que, ao conversar, faz questão de chamar todos pelo nome. Se está narrando uma ida ao médico, ao dentista ou à fisioterapia, menciona o nome e o sobrenome do profissional. Busca na memória dias, meses e anos para que a história tenha o contexto completo. Gesticula ao falar e dá detalhes de como era a casa que morava com a mãe na infância, com o que brincava com o irmão e o amigo do irmão, como conheceu Jurema, sua companheira de 46 anos. Em determinados momentos pausa para buscar na lembrança e retoma dando ainda mais detalhes. Vai abrindo parênteses, relatando outros causos, mas nunca perde o fio da meada, vai finalizando todas até chegar à primeira.
“É uma novidade na minha vida. Uma novidade boa, né. Claro que eu não queria participar nesse momento, uma tragédia que tá acontecendo. Eu nunca tinha visto isso na minha vida. Eu não acreditei. Quando eu saí, dentro da minha casa não tinha água”, afirma. Chamaco não queria deixar a casa que mora há mais de 30 anos na Vila Farrapos, bairro também conhecido como Humaitá, na Zona Norte de Porto Alegre. Com um pouco de água no pátio, foi até a casa do vizinho João para ver como estava a situação. Com a roupa que saiu para a visita, chegou ao abrigo. Foram resgatados de barco. A prótese dentária ficou. “Deve estar boiando por lá”, lamenta. Na sexta, às 8h, consultaria no serviço odontológico oferecido pela PUCRS aos abrigados para refazê-la.
Vivendo no abrigo
São 258 abrigados que estão desde o dia 4 de maio no Parque Esportivo da PUCRS. Moradores da Vila Farrapos, bairro que fica no entorno da Arena do Grêmio, e moradores da Ilha da Pintada, localizada no bairro Arquipélago, localidades que ficam cerca de 10km distantes na geografia portoalegrense, agora dormem no mesmo espaço, compartilham banheiros, lugar no refeitório e a dor das perdas.
O que antes era uma quadra esportiva agora dá lugar às camas. São muitas, mas todas organizadas. Os edredons ficam dobrados e alocados na ponta. É comum ver livros e bíblias sobre os colchões. O presente de dia das mães, uma caixa rosa redonda que continha pantufas, bolos, doces e bijuterias e um balão com os dizeres “forte e corajosa”, enfeita as acomodações. Ao lado da cama, caixas de papelão ou sacos guardam as roupas. As redes no entorno da quadra transformaram-se em varais com toalhas e roupas íntimas. Próximo às redes, há ventiladores para auxiliar na secagem do vestuário. O gol de futsal também foi adaptado, em cima serve como um suporte para roupas e outros itens, e os colchões dispostos dentro dele.
São 56 crianças de zero a 12 anos e 28 adolescentes entre 13 e 18 que estão no alojamento. Os miúdos brincam com o que está disponível aos olhos. Pode ser a caneta e o bloquinho da repórter, os balões que estão espalhados pela quadra ou até os colchões para pular. Em uma lente macro, o mundo está colapsando e as crianças estão ali, brincando, alheias ao sofrimento e à incerteza que os pais carregam. Para o entretenimento, há disponível uma brinquedoteca, onde se encontram crianças vestidas de cinderela, ou desenhando e pintando super heróis, personagens de gibis e desenhos animados. A parede do espaço é tomada destes últimos. O brincar que leva para outros mundos.
“O brincar salva, é a base da saúde mental. Freud diz que as crianças brincam ativamente do que elas vivem passivamente. Só no brincar simbólico e livre é que elas conseguem fazer uma compreensão e dar sentido para o mundo. A criança vai construindo a possibilidade de esperança, de organização de sentimentos e ansiedade na medida que ela tenha um ambiente tranquilo e seguro para brincar. É isso que precisamos oferecer agora para elas: o ambiente. Depois, elas são potentes, capazes de agenciar essas forças”, explica a psicóloga Bianca Stock.
O mundo pode tudo é uma frase pintada em rosa por um dos adolescentes, em duas folhas de papel na horizontal, que está num mural na entrada do abrigo. Um pouco acima, está uma pintura do cavalo Caramelo em cima da casa em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre. O resgate do animal foi amplamente divulgado e acompanhado.
“Diante de cenários de desastre, calamidade e eventos traumáticos, as crianças elaboram e lidam de forma diferentes que os adultos, mesmo que atravessados pela mesma tragédia. As crianças também se reconhecem muito umas nas outras, por isso o brincar é importante, através dele muitas intervenções e conversas podem surgir por parte dos adultos com elas”, complementa a psicóloga clínica e social, Giany Morigi Bortolozzo.
No 3º andar do parque estão instalados e separados em salas os cerca de 60 cachorros, gatos e os dois porquinhos da índia. Há horário para os tutores visitarem os felinos e os donos buscam os cães para passear na área externa. Há também a sala com o aviso “Cão solto e brabo”.
Henrique da Silva, 55 anos, demorou para sair de casa na Ilha da Pintada principalmente por conta dos cachorros. Ao sair, colocou os cinco em cima do telhado. Quatro se salvaram, segundo ele, o filhote ele acredita que não conseguiu se manter no telhado e caiu na água. Abrigado na PUCRS desde o dia 4, tem a cama posicionada logo na entrada da quadra, perto dos vizinhos da Ilha. A região é alagadiça, mas até então, a casa que mora com a filha mais nova e a casa da filha mais velha, situada no mesmo terreno, não tinham sido atingidas nessa magnitude. Havia perdido um guarda roupa, conta. Subia as camas e estava dada a solução. “Desta vez, fui dormir e acordei com a cama boiando”, relembra.
Ele já havia ordenado às filhas que saíssem, pois percebeu que a água estava invadindo. Ao ver que a água subia rápido, foi até a casa de dois andares de um amigo e vizinho. Abrigaram-se no segundo andar, então, foram obrigados a colocar uma roupa vermelha na janela para sinalizar que ali havia pessoas precisando de resgate. Os vizinhos foram resgatados de jetski. Passou uma semana sem comunicação com as filhas, aflito para saber se estavam bem.
Henrique é um homem branco, de média a baixa estatura e usa um boné com a aba para frente. É comunicativo, tenta transparecer tranquilidade ao falar, mas a voz também não esconde as aflições que sente. Conta que trabalha há 21 anos em uma tradicional peixaria do Mercado Público de Porto Alegre. Mesmo com tanta experiência, diz que sempre é possível aprender algo a mais. O Mercado também foi invadido pela água e está inoperante. A empresa ainda não entrou em contato com o funcionário. Assim como não sabe quando voltará para casa, se algo poderá ser recuperado, tampouco sabe se terá emprego. Mas carrega consigo a esperança que encontrará Moana, Mandy, Felícia e Piquitucha. “Aqui [no abrigo], não dá pra ficar muito tempo sem fazer nada, se não a gente começa a pensar no que tá acontecendo e é desesperador. Perder tudo que a gente construiu por uma vida inteira”, lamenta. Para passar o tempo, Henrique caminha na área externa do abrigo, às vezes joga cartas com os companheiros de alojamento e “paro para conversar com as pessoas, assim como estou aqui conversando contigo”, diz à repórter.
Pela manhã, é comum ver no alojamento rodas de chimarrão, filas para os serviços jurídicos e assistenciais oferecidos. Entre eles, na fila, o assunto é o nível do Guaíba, a previsão do tempo, questionamentos se o governo vai liberar dinheiro, até quando precisarão ficar em um abrigo e para onde vão depois, já que perderam tudo. Às 12h, começa a se formar outra fila. Agora para pegar uma marmita para o almoço. Dentro da quadra, foi adaptado um espaço de refeitório com mesas e cadeiras de plástico. Diariamente, são servidas aproximadamente 1.300 refeições.
À tarde, são oferecidas atividades esportivas e recreativas com jogos de tabuleiro, para crianças, adolescentes e adultos. Vai se aproximando o fim da tarde, e uma terceira fila começa a se formar em frente ao local destinado à retirada de roupas. É um sobreaviso que o horário do banho se aproxima. Até as 19h30 todos têm que estar de banho tomado. O jantar é servido entre 19h e 20h.
Na quarta-feira, 15 de maio, o time do Internacional, que também teve seu estádio inundado, treinou no campo de futebol da PUCRS. O treino foi aberto e os colorados que estão alojados da universidade puderam assistir. Com a arquibancada cheia, estavam incrédulos e felizes com a oportunidade de verem de perto o time do coração e tirar fotos com os jogadores. “É um alento, um momento de alegria para nós”, disse um torcedor em depoimento.
“Eu saí de uma tragédia e caí no céu”, disse Chamaco no início da conversa, o que pode resumir a vida no abrigo. Transitar entre a felicidade, que é encontrada em meio a uma tragédia que os tirou tudo, e lastimar a perda da geografia da vida que se perdeu, do lar que carregava e também moldava a identidade de cada um.
O advogado do diabo
Na quinta semana de seu julgamento por ter comprado o silêncio de uma ex-atriz pornô e declarado o investimento como gastos legais, Donald J. Trump, entre uma soneca e outra, assistiu ao seu ex-advogado abrir o bico. Ex-advogado é seu título oficial. O nome de guerra do que Michael Cohen fazia é “fixer” — misto de faz-tudo com capanga, que costuma limpar a sujeirada de homens poderosos.
Tudo em torno de Trump ganha um caráter burlesco. Então, naturalmente, Cohen decidiu produzir no TikTok, como prólogo de sua aparição na Corte de Manhattan, uma série de lives bizarras sobre o caso. De monólogos sérios a divagações com filtro de tromba de elefante ou chapéu de cowboy, passando por papos com convidados em que não há qualquer estrutura de pensamento. “Trump 2024? Mais para Trump, de 20 a 24 anos”, Cohen arriscou numa live o trocadilho que funciona melhor em inglês.
O ex-advogado depôs como testemunha. Ele foi o “homem da mala” que pagou os US$ 130 mil a Stormy Daniels. Por violar as leis de campanha eleitoral e mentir sob juramento, pegou três anos de cadeia, de 2018 a 2021. No depoimento, resgatou a memória de que, em 2015, quando Trump anunciou que seria candidato à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, avisou ao assessor que se preparasse, porque “muitas mulheres” apareceriam para denunciá-lo de algo.
Cohen lembrou também que, quando veio à tona aquela requintada gravação do ex-presidente afirmando que podia agarrar mulheres por suas genitálias ("grab’em by the pussy”), Trump teria dito ao fixer: “As mulheres vão me odiar. Os caras acham legal, mas isso vai ser desastroso para a campanha”.
A linha de defesa de Trump embute uma contradição em si: ele alega nunca ter transado com Stormy Daniels e garante que jamais pagou para abafar o caso — quem teria pago Daniels seria Cohen. Trump, diz a defesa, foi enganado pelo advogado, que teria lhe dito que o dinheiro era referente a honorários advocatícios. Mas, veja bem, se Trump pagou a amante foi apenas para proteger sua mulher, Melania. Ela estava grávida na época da transa de Trump, em 2006.
No dia seguinte, foi a vez de a defesa de Trump interrogar Cohen. Os atuais advogados do ex-presidente, em especial Todd Blanche, buscaram mostrar que Cohen é um mentiroso contumaz, desejoso de vingança. Não ajuda muito o ex-fixer ter publicado um livro chamado Revenge. A mágoa de Cohen com Trump teria, entre outras razões, a de ele não ter conseguido um convite para a posse do ex-presidente, em 2017. E provas desse rancor teriam sido exibidas no podcast de Cohen, Mea Culpa, em que ele chamou Trump de “um cartoon misógino e grosseiro” e, na mesma linha, “um vilão de desenho animado coberto de Cheetos" — uma elegante alusão à cor alaranjada do republicano.
Então, o incrível diálogo se desenrolou na Corte (a tradução é livre da autora):
Blanche: You called him “Dumbass Donald”, is that right? (Você o chamou de “Donald Cretino”, procede?)
Cohen: Sounds correct. (Opa, chamei, sim.)
Mas antes Blanche confrontou Cohen com o fato de que, até ser preso, o ex-assessor era obcecado pelo chefe, declarando publicamente que Trump era um “homem bom”, que falava “com o coração”. “Naquela época, eu estava atolado no culto a Trump", rebateu Cohen.
Por falar em culto, confederados de Trump aproveitaram o palco montado no julgamento para prestar solidariedade ao líder. Em parte para garantir um carguinho caso ele se eleja novamente, em parte para ficar bem com suas bases eleitorais trumpistas. Entre os bajuladores, figuras como Matt Gaetz, deputado republicano da Flórida, pegaram a estrada rumo a Nova York. Como não basta adular, tem que insultar, Gaetz postou no X, onde mais?, uma foto atrás de Trump, com os dizeres “recuando e aguardando, sr. presidente". A frase é uma referência ao que Trump respondeu, em um debate, quanto ao que pensava sobre a atuação do grupo supremacista branco Proud Boys: “Recuem e aguardem".
O julgamento está caminhando para seu fim e o júri pode decidir o caso antes do fim de semana do Memorial Day, que cai no dia 27 de maio. Mas o que está bastante claro até aqui é que a demora em punir Donald J. Trump, por qualquer dos 88 crimes de que ele é acusado, ofereceu a ele e a seus minions um tremendo e permanente palanque eleitoral — e as pesquisas mostram uma eleição muito apertada. Teve paradinha para levar pizza a bombeiros. Teve apoiador soltando balões em forma de pênis para ridicularizar os promotores e juízes do caso. E, mesmo cochilando bastante, Trump já mostrou que não é de dormir em serviço diante desse tipo de oportunidade.
Você Pode Ser Liberal e Não Sabe - Aula Inaugural
Na próxima quinta, às 19h, assista à aula inaugural do curso Você Pode Ser Liberal e Não Sabe, com Pedro Doria. Excepcionalmente, esta aula será aberta a todos os interessados, não somente aos assinantes premium (liberou geral). Convide seus amigos de esquerda e de direita para chacoalhar seus conceitos e preconceitos sobre liberalismo. Depois da aula, você pode adquirir o curso e ampliar seus conhecimentos sobre essa ideologia sobre a qual todos adoram falar mal mas poucos sabem realmente o que é.
A produção própria do Meio esteve em alta entre os mais clicados da semana:
1. Meio: Pedro+Cora - Novo ChatGPT-4o evolui e muda tudo mais uma vez!
2. Panelinha: Uma refrescante salada coleslaw.
3. Meio: Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, conversa com Pedro Doria e Flávia Tavares.
4. Meio: Ponto de Partida — Falta gestão na crise do Sul.
5. YouTube: Nemo e a canção vencedora do Eurovision.