Essa imprensa não me serve mais

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Vamos entrar na cabeça de jornalista? Deixa eu ler alguns comentários do último vídeo, aqui.

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“Essa informação foi confirmada? Por que diabos a Janja cometeria tamanha burrice?”

“Pedro é o Monark de óculos.”

“Desisto do Meio. Não tenho paciência para esses editoriais estilo Estadão.”

“Cara, eu realmente gostava muito dos seus editoriais, mas ultimamente não, me vejo discordando muito de sua linha de pensamento. Primeira Dama não é e nunca foi cargo político, porém, não consigo imaginar a ‘carga’ de ser a esposa do maior estadista do planeta na atualidade.”

“Já foi provado que isso é fake.”

“Se for pra ver jornalista manifestando seu lado político com base em fake news, vou pra jovem pan.”

Tem dois assuntos embutidos nesses comentários, um é relevante e outro é particularmente importante. O primeiro é: como sabemos o que realmente aconteceu? Como um jornalista profissional pensa numa hora dessas? O segundo é bastante mais amplo. Que imprensa a gente quer como sociedade?

O Globo saiu na edição de domingo com uma nota do jornalista Lauro Jardim que falava de a primeira dama Janja Lula da Silva ter interferido em um julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Aliás, erro meu, tratei o ministro Francisco Falcão como procurador da República. Ele não é. É ministro do STJ. Mas o raciocínio é o mesmo, estando ele no Ministério Público, sendo ele ministro de tribunal superior. A troca de cargos não muda a essência do comentário.

A notícia estava no Globo de domingo. Ou seja, estava no site desde a madrugada, com destaque, estava nas ruas, no jornal, desde as primeiras horas de 31 de março. O ministro Francisco Falcão enviou uma nota desmentindo a história do Lauro, afirmando que Janja não havia ligado para pressionar, às 18h de segunda-feira. O jornalista publicou o desmentido, mas sustentou a história que havia contado.

Já passava das 21h, nove da noite, quando o Palácio do Planalto, através do ministro Paulo Pimenta, publicou no X, no Twitter, a sua negativa.

Ou seja, o ministro demorou quase 36 horas para desmentir a história na qual ele é o personagem principal. Se ignorarmos as noites. Deixou o dia inteiro de domingo passar, deixou praticamente o dia inteiro de segunda passar, aí mandou uma nota dizendo que não havia acontecido. Depois disso, o Planalto negou oficialmente. Umas três horas depois do ministro.

Como é que um editor toma uma decisão numa hora dessas? A primeira coisa que nós jornalistas sempre temos em mente é que políticos mentem. Passe um dia correndo atrás de deputado no Congresso e alguém vai mentir para você. Se você ouviu uma história, perguntou para a pessoa com a qual ocorreu, e ela imediatamente desmente, isto não quer dizer que não aconteceu. Políticos de direita mentem, políticos de esquerda mentem. Todo dia, rigorosamente todo dia, jornais publicam coisas que as pessoas citadas desmentem. Mas, se você soube por outros de um determinado fato, se soube de quem viu ou ouviu, mesmo com um desmentido às vezes a decisão é por publicar. Depende das fontes, e jornalistas e seus editores pesam um lado e o outro e fazem uma escolha editorial. Jornalismo não se faz apenas com informação oficial.

O que o Lauro diz é que o ministro Francisco Falcão contou essa história para algumas pessoas na semana passada. Quando ela foi publicada, demorou dois dias para desmentir. Ou seja, alguma coisa o levou a hesitar em desmentir.

O tempo da demora desse desmentido é relevante. Muito relevante. Brasília não para no domingo. Assessores de imprensa estão trabalhando, jornalistas estão trabalhando, políticos estão trabalhando, todo mundo trabalha. Se sai uma notícia de alguma forma grave, as conversas começam a acontecer logo de manhã cedo. Vamos responder? Não vamos? Quanto mais tempo demora para haver uma resposta, sinal de que há motivo para hesitação.

Por que se hesita? Pode ser que alguém avalie que responder vai criar agito, chamar atenção. Mesmo não sendo verdade, às vezes pode ser melhor estratégia de comunicação não responder. Neste caso houve uma resposta, só que no final do segundo dia. O que pode ter ocorrido nesse meio tempo? E por que tanto o ministro do STJ quanto o Planalto responderam mais ou menos juntos? Houve coordenação?

Quando as pessoas dizem coisas na linha “já foi provado que é fake”, o que elas estão afirmando é outra coisa. Estão dizendo que, se o governo disse que é mentira, então é. Estão dizendo que a única fonte legítima de informação é o governo. Ou, ao menos, este governo.

Não é assim que um jornalista pensa. O que a gente faz é exatamente o que o Lauro fez. Vai lá e publica: o ministro nega, Janja nega, mas a um grupo de pessoas com quem conversou na semana passada, foi exatamente esta história que o ministro contou.

E, gente, histórias de Janja instruindo ministros do governo, disputando espaços de poder por toda parte, querendo influenciar onde consegue, basta passear por qualquer corredor em Brasília e vai se encontrar alguém que conte uma história dessas. Por quê? Porque este é o perfil da primeira-dama. Um dos comentaristas vem e diz que papel de primeira-dama nunca foi político.

Mas é totalmente político. É político na veia, porque não pode ser outra coisa. A uma primeira-dama, porque ela não pode ter qualquer cargo, só sobra a política. A outra alternativa é ficar em casa vendo Netflix. E eu não estou entre as pessoas que acham que uma primeira-dama não pode atuar politicamente.

Pela natureza de ser casada com o presidente da República, ela vai chamar atenção. Em cada visita que faz, será ouvida. Haverá câmeras a acompanhando onde ela for. Se ela desejar usar esta atenção que recebe de qualquer jeito para alguma causa que a preocupe, está tudo certo. E isso é política na veia. Janja é, também, uma pessoa que gosta de usar sua influência. De novo, é do jogo. Só que quando cruza a separação dos três poderes, aí fica muito grave, muito perigoso.

Tudo indica que isto aconteceu desta vez. E o alerta cabe. Para alguém que ocupa muitos espaços e muito rápido, este alerta sempre cabe. Porque é da natureza das democracias abrir o olho e ficar alerta com qualquer um que queira ocupar espaços demais. Principalmente sem ter sido eleito.

Mas há subjacente um argumento mais forte nas críticas, aqui. É algo na linha “eu gostava muito, mas não gosto mais”. E tem se repetido muito essa coisa do “cada vez parece mais a Jovem Pan”. Ou, então, algo que vai na onda do “isentão”. O que as pessoas estão dizendo aqui? Estão dizendo o seguinte: eu gostava quando falava mal do Bolsonaro, agora que fala mal do Lula, não gosto mais.

A gente está perdendo uma coisa muito importante. Uma coisa tão importante pra democracia quanto domar as Forças Armadas. A gente está perdendo a noção de que para serve imprensa livre. Vamos conversar?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Gente, o trabalho aqui, de todos nós no Meio, não é estar do lado de governo nenhum. É de estar do lado da democracia e, portanto, ser feroz contra os não-democratas e crítico a qualquer um em posição de poder. Assine o Meio. É o apoio dos Assinantes Premium que permitiu à gente crescer, montar estúdio, organizar cursos e colocar jornalistas em Brasília correndo atrás de ministros e deputados. São R$ 15 por mês, menos de cinquenta centavos por dia.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A esquerda tem por natureza uma característica que se tornou mais aguda após o bolsonarismo. É uma ideia que muitos militantes carregam em si de que são mais puros, mais virtuosos, são os únicos que têm de fato os interesses do povo em conta. A maioria das pessoas têm essas ideias de forma meio vaga, mas com freqüência aqueles mais engajados na militância política carregam isso de forma particularmente aguda. Quem estuda redes sociais costuma dar a isso um nome. O monopólio da virtude. Nas redes em particular, o bloco de esquerda atua como se detivesse todas as virtudes. Portanto estará sempre acima das críticas.

Tudo certo, todo mundo tem o direito de se manifestar como deseja. No mundo real, ninguém detém o monopólio das virtudes. É por isso que o regime democrático pressupõe que alternância de poder acontecerá. Às vezes presidências de esquerda, às vezes de direita. E, não importa quem está no governo, problemas acontecerão.

Estar no governo é ter poder. Ter poder com muita frequência vem com incômodo a críticas. Tudo, sempre, dentro do jogo. É da nossa natureza humana. Mas democracias exigem críticas. É preciso criticar quem tem poder sempre. Não é que podemos critifcar. O exercício ativo da crítica ao poder é fundamental em qualquer democracia. Todo governo que não é criticado todos os dias se torna um governo pior. Este é um dos motivos que faz frequentemente de governos autoritários menos capazes no longo prazo do que governos democráticos.

Governos que lidam bem com crítica são governos que identificam erros mais cedo, se livram deles, rearrumam as coisas.

Imprensa existe para ser crítica ao governo. Imprensa só é útil a uma sociedade se ela ativamente se dedicar a procurar onde tem problema. Imprensa pode ser útil para outras coisas, inclusive para propaganda de governo. Imprensa de propaganda pode aumentar aquela sensação de sentir-se bem com o voto que deu de muitos eleitores. “Olha como eu escolhi bem? Esse governo só acerta.” Mas esse tipo de imprensa é útil para o governo, não para a sociedade.

Não quer dizer que não deva existir. No tempo do digital, existe, cresce, se reproduz, tudo valendo. O problema é a confusão que se instala na cabeça das pessoas. E aí existe um problema maior que está acontecendo aqui no Brasil, mas, à vera, também se mostra em todas as democracias.

Com muita frequência eu estou usando essa palavra, “militante”, para me referir às pessoas que mais ativamente conversam sobre política nas redes sociais. Mas isso não é preciso. Antigamente havia dois grupos distintos. Militantes políticos não eram só as pessoas que conversavam frequentemente sobre política. Eram aqueles que estavam ligados a um partido ou organização e trabalhavam por uma causa. Nas redes os dois grupos se misturaram, aqueles que trabalham ativamente por causas e aqueles que se interessam muito por política. E, nessa que se misturaram, começa a haver uma cobrança por um jornalismo que tenha lado. Lado, aqui, me refiro a um de dois lados. No caso brasileiro, ou é bolsonarista, ou é lulista. E aí tem de elogiar um e criticar o outro.

Mas jornalismo, jornalismo mesmo, não tem de acreditar em político. Tem é que procurar onde há problema e apontar. Esse é o trabalho diário. Não é um “só critica o meu presidente”. Este é o objetivo. Quem está no poder, quem governa um país, não tem que ficar ouvindo elogio. Tem é de estar continuadamente sob a lente do escrutínio público. Nesta história em particular, o que sabemos é que o ministro falou para algumas pessoas que Janja interferiu e, quando a história veio a público, ele esperou dois dias para desmenti-la. Sabemos, também, que Janja ocupa espaços de poder e influência. Então é preciso, sim, estar atento a onde a primeira-dama da República influi. Por quê? Porque ela não foi eleita, não ocupa cargo, por isso mesmo não deixa trilha de papel por onde passa e, no entanto, o que ela faz pode ter impacto profundo na sociedade.

Uma sociedade tem o direito de saber quem exerce poder, onde e como. Levantar perguntas sobre isso, botar claramente à mesa dúvidas, contar as histórias que só quem tem poder ouve, não é abuso. Não é mentir. É fazer o trabalho. Democracias só ficam de pé se existe imprensa crítica. Porque é através da imprensa crítica que sai a informação que os que detém o poder não gostariam que fosse pública.

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