Assine para ter acesso básico ao site e receber a News do Meio.

O truque do golpe

Quando Jair Bolsonaro foi dormir, na noite do domingo, 30 de outubro em 2022, ele já sabia que era um homem derrotado. Naquele momento, o vencedor das eleições presidenciais, Luiz Inácio Lula da Silva, tomava o rumo da avenida Paulista onde uma imensa concentração popular o aguardava. O dia seguinte, o último dia de outubro, foi uma segunda-feria. Bolsonaro não foi ao Palácio do Planalto. Não sairia do Alvorada, a residência oficial do presidente, por dias. Por semanas.

PUBLICIDADE

Naquele longo período de silêncio, duas notícias chegavam à imprensa. Uma, de que Bolsonaro se recuperava de uma erisipela na perna, que não o permitia vestir calças. A outra, de que o presidente estava deprimido. Mas nós vimos muitas coisas nesse mesmo período.Brasileiros começavam a se aglomerar na frente de quartéis em todo o país. Pediam uma intervenção militar. Pediam por quê? De onde veio essa ideia?

Um dia o general Augusto Heleno estava saindo do Palácio e um dos bolsonaristas, aquela turma do cercadinho, perguntou. “Bandido sobe a rampa?” E o general respondeu. “Não.” Foi no dia 18 de dezembro. Todo mundo, em todo o país, sabia a quem um bolsonarista se referia quando falava “bandido”. Em menos de duas semanas, Lula subiria a rampa. É assim. Vencida a eleição, em 1º de janeiro sobe, veste a faixa, começa o mandato. Mas o general dizia “não”. “Não vai subir.” Como não? O que estava passando pela cabeça dele? Doutra feita, foi o general Braga Neto que deixou o Alvorada. Um mês antes. 18 de novembro. Uma moça do cercadinho se queixou das condições do acampamento, da falta de notícias. “Vocês não percam a fé”, ele respondeu. “É só o que posso falar agora.” A moça insistiu. “Eu sei, senhora. Tem de dar um tempo, tá bom?” Dar um tempo para quê?

Bolsonaro de fato teve uma erisipela e talvez tenha ficado triste com a derrota. Mas o que sabemos hoje, graças aos depoimentos liberados na semana passada pela Polícia Federal por ordens do ministro Alexandre de Moraes, é que deprimido, inerte, apático, isso Bolsonaro não estava. Ele passou aqueles dois meses conspirando. Desenhando o plano de um golpe de Estado que, hoje, conhecemos melhor.

O que os bolsonaristas estão fazendo, nas redes sociais, é bater em dois pontos sistematicamente. Ambos são falsos. O primeiro é para pegar desavisado. Só tem mentira espalhada pela imprensa porque tudo está sob sigilo. Mentira. Os depoimentos são públicos, arquivos PDF divulgados pela Polícia Federal, a íntegra do que falaram as pessoas que depuseram no inquérito. Não tem nada inventado. Tudo documento oficial. Ou seja: quem está dizendo que Bolsonaro planejou um golpe de Estado são o ex-comandante do Exército e o ex-comandante da Aeronáutica. Não só eles, mas inclusive eles.

O segundo argumento, a segunda mentira, é que não havia golpe nenhum, nenhuma ilegalidade, apenas a discussão sobre declarar estado de Defesa ou estado de Sítio, que são previstos na Constituição.

De fato a Constituição prevê a ideia de um Estado de Defesa. O presidente tem essa prerrogativa quando acontece alguma situação muito grave que ameaça alguma instituição da República. Uma grande convulsão social que termine em violência, uma calamidade natural. O Estado de Defesa é decretado não no país inteiro mas numa pequena região. Aí alguns direitos podem ser suspensos. A liberdade de assembleia, o sigilo de comunicação. Uma coisa pontual. O presidente decreta Estado de Defesa e, em no máximo 24 horas, precisa submeter ao Congresso Nacional que ou aprova por maioria absoluta ou acaba ali, na hora. Em caso de o Estado de Defesa não resolver o problema, pode-se decretar um Estado de Sítio. Aí é maior, tem repercussão nacional.

Os problemas são dois. Não havia catástrofe natural ou confusão qualquer que justificasse a decretação de Estado de Defesa no edifício do TSE. Quanto mais Estado de Sítio. Porque essa era a ideia. E a Constituição só autoriza a prisão de um ministro do Supremo se ela for aprovada pelos outros ministros. O decreto, aquilo que nos habituamos a chamar decreto do Golpe, não tem nada de constitucional. O que os golpistas estavam planejando fazer é um truque antigo. Vem comigo.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

A Assinatura Premium é o que faz do Meio o que ele é hoje: um experimento bem-sucedido de jornalismo digital independente multimídia gratuito. É ele que nos permite criar uma grade de programas no nosso canal no YouTube cada vez mais robusta, desenvolver cursos com profissionais renomados e produzir conteúdo de alta qualidade. Para que o Meio fique de pé, a gente precisa que você assine. Custa pouco e cria isso. Jornalismo que tem um só compromisso: com a democracia brasileira.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Na madrugada do dia 2 de abril de 1964, o presidente do Senado era um paulista, Auro de Moura Andrade, político das antigas. Ele tomou o microfone numa sessão conjunta de Câmara e Senado. A praxe é sempre essa nesses momentos. O presidente do Congresso é o presidente do Senado, ele comanda a sessão, que acontece no plenário da Câmara dos Deputados. Exatamente onde é hoje. Vocês já ouviram esse instante? Este minuto e meio que vocês ouvirão agora é o golpe de 1964. Este é o exato instante em que o golpe se dá.

Vamos prestar atenção. Quais as frases chaves? “O presidente da República deixou a sede do governo.” Ele está falando de Jango. João Goulart. “Esta acefalia obriga o Congresso Nacional a tomar a atitude que lhe cabe segundo a Constituição Brasileira.” E aí o lance final. “Declaro vaga a presidência da República.” Então o que está acontecendo aqui?

A Constituição de 1946, que é a que estava em vigor, previa três hipóteses de afastamento do presidente da República. A primeira, por óbvio, era a renúncia. A segunda, como hoje, impeachment. E, a terceira, o fatídico artigo 85. É dele que o velho senador estava lançando mão. Se o presidente deixasse o país sem comunicar ao Congresso Nacional, a presidência seria considerada vaga.

Jango não havia deixado o Brasil, pegou um avião para o Rio Grande do Sul. Só isso. Estava em território nacional. Auro mandou essa de “deixar a sede do governo”. O que é deixar a sede do governo? O Palácio do Planalto? Brasília? O presidente se locomove livremente pelo país inteiro. No dia 9 de abril, foi publicado o Ato Intitucional de número 1. “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte.” Essa é uma das primeiras frases em destaque do AI-1. Um golpe de Estado exige a ruptura da Constituição, mas uma ruptura que no discurso pareça legítima sem sê-lo. E, na sequência, a instauração de uma nova ordem legal. Ou seja, o novo governo é constituinte. Ele faz Constituição. Estamos em uma nova ordem jurídica.

O Congresso jamais votou a vacância da presidência e a justificativa inventada pelo presidente do Congresso não estava na Constituição. Mas ele falou que estava, fechou seu microfone, cortou os microfones no plenário, mandou apagar as luzes da Câmara e saiu às pressas. Pronto. Golpe dado. Um deputado ainda teve a chance de dar um murro na cara dele.

Por que a minuta golpista, essa que todo mundo viu e que a polícia encontrou na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, é chamada de minuta golpista? Minuta é uma versão inicial, o rascunho de um documento. Em geral, usamos a expressão para rascunho de um documento jurídico. Diferentemente do AI-1, é muito mal escrito. Acontece. O jurista golpista do Estado Novo e de 1964 era Chico Ciência. Francisco Campos. Um dos juristas mais brilhantes da república. E um golpista compulsivo. Se meteu em todos, foi a cabeça jurídica de todos os golpes. Ainda não está claro quem escreveu esse lixo novo, mas não era nenhum Chico Ciência. Era uma coisa mais nível Filipe Martins, mesmo. Uma das novidades que conhecemos agora é que os comandantes de Exército e Aeronáutica confirmaram que este documento foi apresentado a eles por Jair Bolsonaro.

Pode ser muito mais mal escrito, mas o padrão é o mesmo. Quer ver? Olha esse parágrafo:

“Enquanto os ‘guardiões da Constituição’, os Ministros do Supremo Tribunal Federal também estão sujeitos ao ‘Princípio da Moralidade’, inclusive quando promovem o ativismo judicial. Aliás, o desmedido ‘ativismo judicial’ e a aparente ‘legalidade’(desprovidas de legitimidade; contrárias ao Princípio da Moralidade Institucional; e, assim, injustas) não podem servir de pretextos para a desvirtuação da ordem constitucional pelos Tribunais Superiores.”
É. Eu sei. Um bando de aposto, um período dentro do outro, às vezes a coisa fica confusa. Precisa ler duas vezes para entender. O essencial é essa ideia aqui: os ministros do Supremo não podem desvirtuair a ordem constitucional. É. Não podem. O problema é que o trabalho deles é definir o que a Constituição quer dizer. Se eles falam que é constitucional, contitucional será. Se dizem que não, não será. A frase do velho Ruy Barbosa já deixava isso claro. O Supremo é quem erra por último. Mesmo que sua decisão seja considerada errada por alguns, é a palavra final a respeito da Constituição.
Percebem o truque? É um documento que afirma ser constitucional rompendo a Constituição. Nós vamos prender um ministro do Supremo porque ele rompeu a Constituição. Nós vamos declarar vaga a presidência da República porque o presidente abandonou a sede do governo. Algum destes fatores está previsto na Constituição? Não. É um fingimento. É a este fingimento que chamamos golpe de Estado.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.