Lula mete o pé na porta
Tem um aspecto sobre a atuação do presidente Lula na Companhia Vale e depois da Petrobras que talvez não esteja claro para todo mundo. Porque a notícia parece de economia, não é? Só que não é. É uma história de política, de concepção de democracia, de ideia que se faz de como o mundo funciona. E Lula está atropelando tudo muito mais do que devia. Está cruzando linhas que não se cruza.
Na mesma semana, Ciro Gomes achou por bem reaparecer na imprensa, nas suas redes, para fazer uma denúncia espalhafatosa e falsa de corrupção ligado aos precatórios. Tem um bando de gente caindo na história, tanto na esquerda quanto na direita. Em ambos os casos está uma ideia de que o capitalismo é mal. Como se o sistema econômico das democracias, de todas as democracias, fosse algum tipo de mal absoluto que precisa ser combatido. E isso é um erro, tá?
Mas vamos começar do básico. O que aconteceu. A Companhia Vale foi privatizada no ano de 1997, no ano passado foram comemorados os vinte e cinco anos. Durante toda sua história, mais de cinquenta anos, o Estado brasileiro havia investido vinte bilhões de dólares na Vale. Os compradores puseram nela bem mais do que o dobro disso. Ela exporta, hoje, bem mais do que o dobro do que exportava quando era estatal. É a segunda empresa de maior valor de mercado do país. O Estado brasileiro ainda é acionista da Vale, além disso há fundos de pensão que são acionistas. Fundos que são regidos por sindicatos ligados à CUT e, portanto, ao PT. Soma as ações do Estado com as ações do fundos e um governo petista tem mais voz, na direção da companhia, do que outros governos.
No ano passado, Lula decidiu que gostaria de colocar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega na presidência da Vale. Não conseguiu, os outros acionistas vetaram. Mas ele fez toda força possível. Veja, não é apenas um grupo de acionistas acharem que um executivo é melhor do que outro para gerir a empresa. É colocar um político do PT no comando da empresa. É o governo assumir as decisões de uma empresa privada. Por que isso é um problema? A gente chega lá.
O trimestre da Petrobras foi muito, muito bom. Esta não é nem uma empresa estatal, nem uma empresa privada. É o que chamamos uma companhia de capital misto. O governo é o acionista majoritário, já define por natureza quem é o presidente, mas é também uma empresa cujas ações são compradas e vendidas todos os dias na Bolsa de Valores. Isso quer dizer que ela tem regras para seguir, como qualquer outra empresa de capital aberto. Por quê? Porque o capitalismo é regulamentado. A gente põe regras para proteger quem compra ações, senão o mercado financeiro ia ser uma selvageria só. Já não é simples. Não pode agir contra os interesses da companhia, forçando uma desvalorização dos papeis, por exemplo. Dentre as regras está dito que, perante uma determinada quantidade de lucro, a empresa deve dividir parte disso com quem é dono de ações. Não é ruim para o governo, que é o principal dono de ações. É o que chamamos dividendos.
A Petrobras, pelas suas regras, deveria distribuir dividendos para os acionistas. O presidente da empresa, Jean Paul Prates, que é do PT, queria obedecer as regras. Porque são as regras. Ele anunciou que ia distribuir. Não passava pela cabeça de ninguém que não fosse. Lula vetou. Esse dinheiro não pode ser usado para outra coisa. Ele pertence aos acionistas. Mas a empresa não é obrigada a compartilhar imediatamente. O que todo mundo está se perguntando é: se a Petrobras não pode fazer nada além de entregar aos acionistas este dinheiro, se o principal beneficiário desta distribuição é o Tesouro nacional, por que Lula gerou uma crise que derrubou o valor da empresa no mercado?
Enquanto isso, tem os precatórios do Ciro, né? Ele denunciou que há corrupção, que o governo está passando não sei quantos bilhões para os bancos. Ele fala bonito, com autoridade, parece saber do que está falando. E sabe, tá? Ele entende perfeitamente como se dá o processo. Mas o governo brasileiro, o governo Lula, estaria colaborando para um dos maiores escândalos de corrupção da história brasileira. Um monte de gente, da esquerda à direita, entrou nessa. O que está acontecendo?
Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
Nesse sábado, a gente vai entrar na cabeça do presidente Lula. Em sua visão de Brasil. Em por que está fazendo o que está fazendo. Vamos fundo, a editora executiva Flávia Tavares e a repórter especial Luciana Lima estão botando toda energia nisso, conversando com gente que não acaba mais ali por perto, no Planalto, para explicar o presidente. E, se você é assinante premium do Meio, recebe todo esse material. Assine. Não custa quase nada.
E este aqui? Este é o Ponto de Partida.
O problema de Lula é o PIB. Este é um presidente muito diferente daquele que tomou posse em 2002. Na verdade, é diferente até, em suas convicções, do presidente que assumiu em 2006. Se há alguém com que Lula se pareça mais, nas suas crenças, é a presidente Dilma Rousseff. Lula se tornou herdeiro do getulismo, é um trabalhista na alma que tem convicção de duas coisas. A primeira é que sua reeleição depende de crescimento do PIB. Se a economia vai bem, ele se reelege. Se a economia for mal, ele corre risco. A segunda convicção que ele tem é de que economia só cresce de um jeito. Se induzida, com força, pelo Estado.
A Petrobras é a maior companhia do Brasil. A Vale é a segunda maior. Para Lula, neste momento, não importam as regras. Ele acredita que é fundamental o governo ter o controle das maiores empresas do país para que ambas gastem dinheiro para gerar obras que levem a contratos para outras empresas e que produzam muitos empregos. É Dilma em estado puro.
O capitalismo não é o inimigo. Da maneira como Lula fala, todo mundo que tem algum lucro em alguma coisa está cometendo algum tipo de pecado. Nesse sentido, ele é cada vez mais parecido com o Ciro. O problema é o seguinte. O capitalismo é indissociável da democracia liberal. Nosso regime não é capitalista por escolha. O capitalismo é o sistema econômico da democracia. Porque ambos se baseiam nos mesmos princípios básicos de liberdade. Todo mundo tem direito a voz no debate público assim como todo mundo tem direito a vender o que tem pelo valor que deseja pedir e tem o direito a comprar o que estiver a venda até o valor que estiver disposto a pagar. É a mesma liberdade de escolha. O princípio que garante uma liberdade é o mesmo princípio que garante a outra liberdade.
O Estado existe para garantir estas liberdades. Para proteger o direito de cada pessoa fazer suas escolhas e garantir que todo contrato firmado seja cumprido. Então não importa quão poderosa seja uma parte, se estamos falando de uma empresa gigante, se estamos falando do peso do governo federal, as leis valem para todos, as regras valem para todos. E o que Lula está fazendo é botar todo o peso do governo federal para exercer pressão máxima sobre as duas maiores empresas brasileiras. E uma das duas é uma empresa privada. Por quê? Porque ele acha que, como presidente da República, é ele e ninguém mais que deve decidir como as maiores companhias do Brasil atuam. Ninguém mais pode ter voz, só ele. Os outros acionistas não importam, os interesses dos inúmeros brasileiros que têm ações da Petrobras não importam.
Lula acredita que, assim, vai gerar crescimento. Ele ignora o fato de que, assim, assusta empresários, assusta investidores. Quem quer correr o risco de ter de brigar com todo o peso do governo federal? O que ele fez foi paralisar todas as instâncias decisórias da Vale por um ano. Não vai ter investimento grande tão cedo. O que ele fez foi gerar uma baita insegurança a respeito da Petrobras e, cá entre nós, de muito grupo econômico sobre se é seguro investir no Brasil.
Dilma Rousseff, não vamos esquecer, comandou um país que viveu a faísca de um crescimento e o quebrou. O PT, até hoje, não veio a público explicar sua teoria de por que o Brasil quebrou naquele momento. O engraçado é que Ciro está acusando o governo de corrupção seguindo reigoramente a mesma visão de mundo.
Um precatório é uma dívida do Estado com um cidadão. Sei lá. Fulana era funcionária pública, o governo faz um plano econômico, corta não sei quantos zeros da moeda, deveria fazer um ajuste x no salário, não faz. Aí, a partir daquele ponto, a pessoa passa a receber um salário menor do que deveria receber legalmente. Entra na Justiça. Primeira instância, segunda instância, os anos vão passando, depois de vinte anos chega no Supremo e o STF diz que o Estado brasileiro deve tanto àquela pessoa. Há muitas razões para o Estado dever a cidadãos. Desapropriações de terra, reajustes que não ocorreram, pensões atrasadas. Quando o STF diz que a dívida tem de ser paga, aquela ordem de pagamento é um precatório.
O governo não paga precatórios imediatamente. Para que o governo possa fazer um pagamento, ele precisa ser autorizado pelo Congresso. O valor precisa constar no Orçamento Nacional, que é uma lei aprovada para o ano seguinte. Mas, olha, governos enrolam, tá? Dão calote e passam o pagamento do que devem às pessoas pro ano seguinte, e pro outro, e um pouco mais adiante, a toda hora. O último a jogar pra frente o pagamento do que deve às pessoas foi o governo Jair Bolsonaro. Se o governo brasileiro deve a você e você for entrar na Justiça para cobrar hoje, possivelmente quem vai receber são seus filhos e netos. O governo é mau pagador para o cidadão.
Só que aquele título tem valor. Um dia ele vai ser pago. E as pessoas precisam de dinheiro. E o governo não é muito transparente. Ele não diz quando vai pagar seu título, mesmo que esteja para ser pago naquele ano. E isso cria um mercado. Ou seja, gente que tem dinheiro sobrando e compra os títulos. A coisa funciona assim. A pessoa que precisa de dinheiro e tem o precatório tem a vantagem de ganhar agora ao menos parte do que o Estado lhe deve. A pessoa que tem dinheiro no bolso e pode esperar tem a vantagem de gastar x agora e ganhar um valor maior lá na frente.
Mercados surgem quando tem gente querendo vender e gente querendo comprar. Às vezes o desconto no preço dos precatórios é grande? É. Pode-se procurar outro comprador. Mas quem vende tem o direito de fazer a conta, não é? Esse dinheiro menor agora, na minha mão, vale mais do que esperar? A alternativa é o mercado de precatórios não existir. Aí as pessoas a quem o governo deve não têm qualquer alternativa.
E, olha, dos precatórios pagos desde novembro, menos de 2% foram pagos a bancos que compraram títulos. O Ciro inventa um crime onde não há e exagera muito sobre as consequências. E não é o liberal só, falando, não. Tem um monte de economista desenvolvimentista explicando a mesma coisa nas redes. Não tem qualquer corrupção no que o governo Lula está fazendo. Pelo contrário. Está pagando suas dívidas. É dinheiro na mão das pessoas. Isso é bom, inclusive, pra economia.
Sabe, a vida não é fácil. A vida nunca foi fácil. Mas nunca tanta gente viveu bem, com dignidade e sem fome do que no encontro da democracia liberal com o capitalismo. Nunca na história. Não há momento da história melhor para mais gente do que o nosso. E o que a história das democracias mostram é que elas melhoram com o tempo. Podem passar por crises, passam por crises. Mas, no arco da história, melhoram. Não se devia apostar contra elas.
Lula bem que podia ouvir mais Fernando Haddad e menos Dilma Rousseff.