A polarização em São Paulo
Numa entrevista ao SBT, o presidente Lula recorreu à metáfora do futebol, sua preferida, pra falar de polarização. Disse que não dá pra imaginar que um corintiano torça pro Palmeiras ou que um palmeirense torça pro Corinthians. Mas que dá pra conquistar os neutros pra algumas causas — e citou são-paulinos e santistas.
Tirando a raiva que esses dois grupos de torcedores podem ter sentido ao serem chamados de “neutros”, o ponto de Lula é que tanto pra ganhar eleição quanto pra governar o desafio não é a polarização. Mas a necessidade de conquistar os que não se identificam com os polos.
Ele ainda acrescentou que o Brasil sempre foi polarizado. Só que antes era entre PT e PSDB. “Agora, o Brasil está polarizado entre duas pessoas, porque, na verdade, são duas pessoas, não são nem dois partidos. Porque, o meu partido existe, o partido deles não existe. É uma legenda eminentemente eleitoral.”
Essa frase dele é muito relevante. Primeiro, porque derruba o tabu na esquerda de que não se pode falar em polarização entre Lula e Bolsonaro, já que ambos não representam extremos equivalentes. É óbvio que isso é verdade. Lula não é o exato oposto de Bolsonaro, entre muitas outras coisas, porque é um democrata. Lula também não pode, de forma alguma, ser classificado como de extrema esquerda.
Mas isso não impede que, na prática da política e dos votos, uma parte significativa do eleitorado se divida entre os dois. O fato de a balança ideológica toda ter pendido pra direita não quer dizer que não existam duas forças igualmente populares brigando entre si.
Em segundo lugar, porque ao reconhecer a polarização com Bolsonaro e admitir que não é algo que o desagrade necessariamente, mas ao mesmo tempo exaltar a obrigação de se conquistar os “neutros”, Lula pode estar dando recados ao centro que o apoiou e que anda bastante descontente com algumas de suas escolhas. O presidente ainda disse que, ao analisar os resultados das pesquisas sobre sua popularidade, usa esses dados para reavaliar suas estratégias políticas. E essa entrevista pode ter sido um dos primeiros passos nesse sentido.
Mas vai haver um outro grande teste sobre o tamanho do peso dos neutros no tabuleiro: as eleições municipais. E a de São Paulo tem tudo para revelar o estágio em que o Brasil está do pós-bolsonarismo, do antipetismo e da polarização.
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VINHETA
É muitíssimo tentador atribuir todo e qualquer fenômeno político à polarização, como se qualquer outra nuance na hora de uma pessoa decidir como votar fosse desprezível. Principalmente para quem vota convictamente por ideologia, parece impensável que alguém escolha um candidato por qualquer outra razão: econômica, a sugestão de um amigo, uma causa única em comum, etc.
Essas outras razões existem, e aparecem principalmente nas eleições municipais. É nesse ciclo eleitoral que as dificuldades cotidianas e prosaicas da vida do cidadão estão na pauta. Então, é bastante natural que o eleitor menos engajado decida em cima da hora, diante de um balanço concreto de como anda sua rotina naquela cidade. Isso é particularmente verdadeiro nas grandes metrópoles, em que questões como segurança, transporte público e moradia são centrais.
Só que já faz um bom tempo que os próprios políticos buscam trazer pro debate eleitoral das cidades assuntos que às vezes sequer dizem respeito a eles, tudo pra tentar surfar na polarização ideológica. Já em 2012, em São Paulo mesmo, as campanhas de José Serra e Fernando Haddad tiveram de tratar de aborto e kit gay, pela pressão das igrejas evangélicas. E isso só foi aumentando, tanto na pauta de valores quanto na questão da corrupção.
Aproveitando-se dessa brecha, o bolsonarismo esmagou o centro, redefiniu o eixo político e modelou, em boa medida, os termos da polarização atual. Os erros da Lava Jato, quando revelados, reabilitaram Lula e a memória positiva de seus governos para uma parte da população. E cá estamos, em 2024, diante dessas duas forças políticas que, inescapavelmente, ditam toda e qualquer disputa atual.
A gente pode considerar que, fora das cidades e dos Estados claramente lulistas ou bolsonaristas, cada campo tem, de saída, algo em torno de 25 a 30% das intenções de voto. Ou seja, no quadro atual, nenhum tem força suficiente pra levar eleições no primeiro turno. O efeito disso é que também muito raramente um candidato que tente não se associar a nenhum dos dois consegue ir ao segundo turno. Os tais dos “neutros”. E isso interessa tanto ao PT quanto à extrema direita.
O outro efeito é que nem o lulismo nem o bolsonarismo podem prescindir dos neutros para derrotar o outro lado. As militâncias de ambos os campos dizem odiar os isentões, mas os políticos, mais pragmáticos, entendem os acenos e as entregas que precisam realizar para eles se quiserem chegar ao poder e se manter lá.
São Paulo tem todos os elementos para botar à prova essa lógica. Há analistas que insistem em dizer que as pesquisas atuais estão apontando uma polarização sem precedentes ou maior que em eleições anteriores. Não acho que seja esse o caso. A primeira eleição pós-redemocratização foi entre Luiza Erundina e Paulo Maluf. É possível pensar em algo mais polarizado que isso? Não, né? No ciclo seguinte, disputaram Maluf e Eduardo Suplicy. Depois, Celso Pitta e Erundina. Até ali, dá para dizer com muita tranquilidade que era direita clássica, aquela vinda direto da Arena, contra a esquerda clássica que o PT representava.
No ano de 2000, os candidatos em São Paulo traduziam tudo que o Brasil tinha a oferecer no cardápio ideológico. A escolhida pelo PT foi Marta Suplicy, sexóloga símbolo de liberdades que o Brasil ainda não discutia abertamente. A esquerda ainda tinha Erundina como candidata pelo PSB. Na direita, Maluf tentava sobreviver politicamente depois do fiasco da gestão de Pitta, seu pupilo. Fernando Collor ressurgiu como candidato expatriado e Romeu Tuma e Enéas Carneiro completavam o espectro. Ah, e Geraldo Alckmin era o candidato do PSDB.
Marta saiu vitoriosa. E o pêndulo entre esquerda e centro-direita se consolidou na cidade. Viriam José Serra e seu vice, Gilberto Kassab, seguidos de Fernando Haddad. No auge da crise do PT, João Doria levou o tucanato mais à direita e se elegeu em primeiro turno. Fez o sucessor, seu vice, Bruno Covas, que morreu em 2021. Covas era um retorno ao tucanato mais tradicional, mas a herança dessa guinada à direita de Doria é Ricardo Nunes, um prefeito anódino, conservador, mas não imediatamente identificado com o bolsonarismo.
Aliás, está em São Paulo a prova mais clara do que o bolsonarismo pode provocar. O PSDB, partido eminentemente paulista, está moribundo na capital. O PT não tem um candidato próprio, tendo escolhido Guilherme Boulos, do PSOL, para a disputa e tendo de importar Marta de volta a seus quadros para a vice.
Conforme os tucanos, liderados por Doria, optaram por se associar ao bolsonarismo, decretaram sua irrelevância. Mas o bolsonarismo também não teve um candidato natural viável. No Estado, precisou trazer Tarcísio de Freitas, porque Doria abandonou o bolsonarismo e tentou, brevemente, ser presidente. Na cidade, Ricardo Salles não engrenou. Nunes é de direita, mas hesita em declarar com todas as letras que é bolsonarista. Foi à Paulista e se manteve calado. E Bolsonaro está tirando da cartola um candidato a vice de Nunes que tem zero expressão eleitoral, um coronel da Rota, que foi presidente do Ceagesp e que, eu falando ou não o nome aqui, você provavelmente não conhece.
É Ricardo Mello Araújo, a propósito.
De certa forma, a briga entre Boulos e Nunes reforça a tese da polarização em torno de Lula e Bolsonaro. São candidatos cujas chances de vitória só existem a partir da associação com os padrinhos. Só que são apostas de tipos bem diferentes.
Boulos, diferentemente de Nunes, tem uma trajetória de militância própria. Mas ela é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza. De um lado, seduz a esquerda e parte da elite intelectual paulistana e explica por que Boulos vai tão bem com os paulistanos mais escolarizados. De outro, afasta tanto a elite econômica quanto parte da população que se assusta com os exageros em torno de uma potencial ameaça à propriedade privada que o movimento de Boulos representaria.
Lula escolheu um nome que leva ao limite o teste da força da esquerda na cidade. Embora esteja empreendendo um enorme esforço para passar a ideia de que não é um radical, Boulos está mais à esquerda do que o próprio Lula. Associar-se a Lula, que ganhou de Bolsonaro na cidade, e Marta, considerada por 16% dos paulistanos a melhor prefeita que a cidade já teve, é o que pode dar a ele alguma chance concreta de vencer a resistência dessa fatia dos eleitores e superar os 34% que dizem que nunca votariam nele.
Já Nunes tem, contra si, uma gestão bastante fraca em muitos aspectos, e sua aprovação em 29% é mostra disso. Só que ela está subindo, em parte por conta dos investimentos pesadíssimos da prefeitura em marketing, em parte por conta do apoio declarado por Bolsonaro. Não à toa, Nunes tem a preferência do eleitorado religioso, por exemplo. Ao que tudo indica, porém, Nunes não quer que Bolsonaro apareça demais, talvez temeroso pelos processos criminais que cercam o ex-presidente. Aconselhado por Michel Temer, seu consultor, ele deve ir atrás dos bolsonaristas, não de Bolsonaro. Ou seja, Bolsonaro escolheu um candidato menos “ideológico” que ele.
A eleição na cidade de São Paulo sempre foi polarizada. E sempre estiveram aqui alguns dos protagonistas da política nacional — de Jânio a Lula, passando por Fernando Henrique Cardoso. Se tem uma metrópole que já provou que pode eleger um candidato de esquerda é São Paulo, como provam Erundina, Marta e Haddad. Mas também oferecemos ao mundo Maluf e Doria.
Em 2024, a esquerda oferece um candidato bem à esquerda, com a etiqueta de Lula, com uma vice que transitou, digamos assim, pela centro-direita. E um candidato de direita, com a etiqueta de Bolsonaro, mas não um bolsonarista raiz.
Nisso está a peculiaridade de São Paulo. Os dois principais candidatos não são espelhos fiéis de seus padrinhos, sequer são de seus partidos. Boulos tenta se assemelhar m ais a Lula. Nunes está tendo de convencer que é bolsonarista o suficiente para conquistar seus seguidores. Quem será o mais facilmente palatável pelos neutros? E que peso isso terá na disputa final? É isso que São Paulo pode responder sobre a polarização no Brasil.