O tamanho do Bolsonarismo
Muita gente nas redes de esquerda está fazendo pouco da grande manifestação que o bolsonarismo promoveu no domingo. Isso é um erro que pode ser muito grave.
Foi muito grande. É importante entender isso. Vi no domingo muita gente tentando se enganar, nas redes sociais. Gente falando em fiasco, fazendo graça do fato de que duas senhoras não entendiam a complexidade religiosa de Israel. Tudo certo, mas é importante que ninguém se engane. Ontem, na avenida Paulista, lá pelas três horas da tarde, havia 185 mil pessoas.
Sim, eu sei. A Secretaria de Segurança Pública do governo de São Paulo falou em 750 mil pessoas. Isso, não tinha. Mas o problema é o seguinte. Por tempo demais, as Polícias Militares fizeram contas absurdas. A gente se habituou com a ideia de que grandes manifestações tinham para lá de um milhão de pessoas. Esses números estão, quase sempre, muito errados.
As 185 mil pessoas vêm da análise do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo. Eles pegam diversas fotos tomadas por drones e utilizam um algoritmo de inteligência artificial para fazer a contagem. A margem de erro é de 12%. É muita gente. Desde que a turma da USP começou a utilizar esta técnica, em 2022, esta foi de longe a maior manifestação que eles mediram.
Deixa eu fazer outras observações. O pastor Silas Malafaia foi escolhido para atacar o Supremo Tribunal Federal. Só ele. Michele Bolsonaro não atacou, Jair não atacou. Pelo contrário. Falaram, o tempo todo, é em perseguição. O mote da extrema direita, neste momento, é esse. A turma das antigas voltou pro governo, está toda junta, e querendo ir atrás deles. Os justos. Os querem fazer o bem. Parece torto, esquisito, infantil? Pode ser. Mas é um discurso que cola com muita gente. Não tinha cartaz desafiando a ordem constitucional, pedindo AI-5, morte de gente, nada. As pessoas estavam lá, com suas famílias, em ordem. Foi uma manifestação pacífica. E isso, no discurso interno do reacionismo, fuciona muito bem. São os justos, eles, contra os desordeiros. Todo o resto.
Eu sei que, para muitas pessoas, o estereótipo de fascistas agressivos, como vimos em frente aos quartéis após as eleições, como vimos no ataque aos palácios dos três poderes no 8 de janeiro, são mais confortáveis. Mas ontem, na Paulista, não foi isso. E não existe número mais confiável do que este: 185 mil pessoas, às 15h de um domingo ensolrado na avenida Paulista. E isso é muita, muita gente. Um ano após deixar a presidência da República, um ano após a intentona destrutiva de 8 de janeiro, duas semanas após virem a público inúmeros detalhes sobre como ordenou o planejamento de um golpe de Estado, Jair Bolsonaro segue sendo um líder muito popular.
É fundamental fazer este registro porque este é o retrato do Brasil como é. A Nova República, da eleição de Tancredo Neves para cá, só produziu dois líderes capazes de mobilizar multidões de pessoas para comícios. Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Bolsonaro é inelegível? É. Bolsonaro pode estar preso ou fugido do país quando a próxima eleição presidencial vier? Sim. Pode. Em 2018, Lula era inelegível e foi preso. Seis anos atrás. Na última década, o Supremo Tribunal Federal foi terminantemente contra a prisão após condenação em segunda instância, depois foi radicalmente a favor, e terminantemente contra de novo. Vivemos num país em que as coisas mudam, e mudam rápido. As ondas viram e não há motivo para achar que não podem virar de novo. A turma lá na Paulista acha que vão virar. E trabalham para a virada. Enquanto isso, temos um movimento de direita muito popular, nas ruas. E este movimento não é moderado. É um movimento extremista.
Por quê? Porque o que Bolsonaro deixou claro para todos seus aliados, os dedicados e os que preferiam não, é que os votos são dele. A sorte ou o azar da direita é que o próprio Bolsonaro já demonstrou muitas vezes a imensa dificuldade que tem de delegar. De apontar alguém para ser líder em seu lugar. Nem com seus filhos consegue. Muito menos com sua mulher, Michelle. E, ainda assim, esta é outra coisa que o domingo bolsonarista mostrou. Michelle Bolsonaro fala muito bem. É fluente na linguagem evangélica, rápida na capacidade de raciocínio. Fala muito melhor que o marido, inclusive. Talvez seja, até, mais radical do que ele.
Uma observação que não escapou a ninguém, de um lado e do outro do especto, foi a quantidade de bandeiras de Israel no evento. Aquele vídeo das duas senhoras que explicam que estão do lado de Israel porque o país “é cristão também” está fazendo muita gente de esquerda achar graça. Eu sou do tempo em que quem era de esquerda não achava graça de descobrir que a maioria dos brasileiros são pouco educados. Talvez por as senhoras serem brancas não seja problema rir, às vezes não entendo os códigos Mas quem ri perde a oportunidade de entender o que está acontecendo. Quantas pessoas, no Brasil, sabem falar sobre a complexidade e os matizes religiosos do Oriente Médio? Algumas das bandeiras israelenses circulando tinham também uma estrela azul de cinco pontas no meio. Não era a Estrela de Davi. Quem mandou fazer essas bandeira não tem a mais vaga ideia de o que é o símbolo da Magen David. Isto quer dizer que não sabe nada de Israel. Mas entender Israel não tem nada a ver com essa discussão. Israel quer dizer uma coisa para essas pessoas. O que está acontecendo aqui?
O termo em inglês é proxy. É como se fosse um atalho simbólico. Você elenca alguns assuntos, alguns códigos, que definem sua identidade política. Isso não é feito pela escolha pessoal de cada um, as redes fazem essas escolhas. Tem aqueles perfis de pessoas em quem você confia, os veículos que dão as notícias pelo seu lado, eles ficam martelando os mesmos temas, você aprende os argumentos, aprende as maneiras de vestir, as respostas aos contrargumentos, e ficar repetindo aquelas mesmas ideias é a base de como se faz militância política online.
Por vários motivos, em geral ancorados na leitura que evangélicos fazem do Velho Testamento, Israel se tornou uma referência importante na extrema direita brasileira. Não tem nada a ver com a Israel de verdade, suas imensas passeatas do Orgulho Gay, sua sociedade politizada, ativa, cheia de ongs, uma democracia como muitas outras ameaçada por movimento interno de extrema direita. Mas não importa se não tem nada a ver com a Israel de verdade. Política na internet não tem nada a ver com fatos, tem a ver com emoções e a repetição ritual de códigos.
Tem certos assuntos, que não adianta. Para a direita, para esta direita, são pessoais. Aborto é um, sexualidade na infância e adolescência também, armas. E Israel está nessa lista. Falar com fluência dessas coisas, repetir os mesmos argumentos que os da sua tribo repetem, é ritual. É comungar, é uma comunhão. É dizer um para o outro: somos irmãos. O discurso identitário na esquerda é isso. Falar da relação das estatais com o interesse nacional na esquerda é isso. Todas as tribos têm aqueles assuntos que se tornam atalhos para demonstrações públicas de compartilhamento da mesma identidade. Assim como têm outros códigos. A camisa da Seleção, o boné do MST. Isso aí tem mais a ver com antropologia do que com ciência política.
Mas o resultado essencial é este: quando Lula fez a Israel a maior ofensa que se pode fazer a qualquer país, compará-lo com a Alemanha Nazista, não importa se Lula estava fazendo uma metáfora a respeito de genocídio, não importa o cálculo de política externa que Celso Amorim possa ter feito. O resultado concreto é que, uma semana antes de um grande evento convocado por Jair Bolsonaro, o presidente Lula ofendeu pessoalmente uns dois terços do eleitorado bolsonarista. Aqueceu.
As pessoas se queixam de que ônibus foram fretados para levar gente pra Paulista, que lanches foram pagos. Isso não é relevante. Ônibus também são fretados em manifestações de esquerda, lanches também são pagos. Organizações se juntaram para mobilizar pessoas? É, organizações se juntam para mobilizar pessoas. Manifestações políticas não são espontâneas. São fruto da capacidade de organização, arregimentação, de mobilização emocional de muita gente que considera que precisa ir. A esquerda ligada ao trio PT, CUT e MST consegue fazer isso. A direita bolsonarista também consegue.
Nas últimas semanas parece ter havido uma explosão de desinformação nos sites de esquerda. Um bando de gente, ontem, no Twitter, estava repetindo que a Paulista estava vazia, que foi um fiasco. Que flopou. Abre os olhos gente. Vê. Aquele espetáculo não foi promovido para quem estava na Paulista. Foi promovido para os milhões que estavam assistindo pelas redes sociais. Era um tal de Malafaia cortando pra bandeira do Brasil, imagem da Michele cortando pra gente emocionada, lágrimas nos olhos, um Bolsonaro altivo, líder, falando à multidão. A estética é toda muito piegas, velha, de um patriotismo, na boa, cafona. Mas a estética do bolsonarismo é essa. Ela é cafona. Ela também é eficaz para seu público. Tinha influencer de esquerda reclamando que as pessoas são feias. Tipo, jura? Preconceito está valendo?
As pessoas falam “ele está inelegível”. É. Hoje está. Vocês acham que vai ser melhor com Michelle Bolsonaro presidente? Realmente sugiro a a todos que assistam Michele falando. Mas assistam sem preconceitos, sem essa de “papo de evangélico, blargh”. A linguagem dela é a linguagem do púlpito dos muitos templos evangélicos. E a linguagem dos templos evangélicos é a linguagem culta da maior parte dos brasileiros pobres. E ela, Michelle, é boa, nisso. Uma das melhores no Brasil nesse tipo de discurso. Mais articulada, mais carismática, do que o marido. A sorte da democracia brasileira é que Bolsonaro é tão burro e tão machista que tudo indica que ele não tolera a ideia de botar sua mulher como sua substituta. Esse debate “Bolsonaro vai estar preso” morria em dois segundos. Ela teria três anos para ser preparada pelas raposas do PL, com todo dinheiro publicitário possível para ajustar o tom e o discurso. E se fazem a coisa de forma inteligente, sabendo mexer com os códigos para apelar ao centro sem melindrar os radicais. Caramba. Ninguém boicota mais a ascensão dela do que ele porque, ó, bem treinada ela seria uma candidata duríssima para enfrentar em 2026.
O ponto aqui é um só. Vivemos num país rachado em dois. Tem uma margem mínima, uma margem desse tamanho, de pessoas que querem continuar vivendo numa democracia mas que não são de esquerda, não esqueceram o desastre do governo Dilma e não estão se vendo representadas neste governo atual. Lula foi eleito presidente e ele faz o que quiser dentro de sua autoridade constitucional. Mas quanto mais forte seu discurso para animar a esquerda, mais anima a resposta à direita. E mais afasta o centro. E Bolsonaro não vai ser o candidato do bolsonarismo.
Estas não são as condições ideais de jogo para quem é de esquerda. Mas, olha, essas não são as condições ideais de jogo para quem deseja uma democracia. Parte do eleitorado bolsonarista não está nem aí para democracia e a outra parte não entende bem do que se trata. Algumas dessas pessoas têm de ser conquistadas. Como líder político, Lula não entendeu que esta é sua maior missão.