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Edição de Sábado: O ruído que Lula cria

Se um observador de todo isento, sem lado no debate ideológico brasileiro, desembarcasse no último domingo em Adis Adeba, na Etiópia, para ouvir o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sairia espantado. Por um lado, Lula demonstrou extrema cautela em fazer qualquer especulação a respeito da morte de Alexei Navalny, o principal líder da oposição russa. Com 47 anos, em boa forma e saúde quando foi preso em 2021, Navalny morreu no sábado em sua cela. “Para que a pressa em acusar?”, disparou contra os jornalistas que lhe faziam perguntas. Não houve a mesma cautela para tratar de Israel. Pelo contrário — o presidente foi tão hiperbólico quanto é possível num debate político. Foi direto na ofensa máxima que pode se fazer contra um Estado nacional. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico”, afirmou. E aí completou. “Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus.” O problema das duas afirmações é que elas não guardam coerência entre si. Não demonstram um mesmo conjunto de critérios para observar o mundo. Não bastasse, geram ruído, insatisfação, desconforto.

Além da economia, apenas a política externa irrita tanto os eleitores não identificados com a esquerda que votaram em Lula contra o golpismo de Jair Bolsonaro. Não foi a primeira vez — acontece a toda hora. Por quê?

Não há chefe de Estado no mundo, hoje, responsável por tantas mortes quanto o russo Vladimir Putin. São mais de cem mil, segundo as contas mais conservadoras, na guerra da Ucrânia. Mais de duzentos mil nas duas guerras chechenas. (Boris Yeltsin presidia a Rússia no terço inicial da primeira das duas guerras.) Seu governo é o que mais enviou armas para a guerra civil da Síria, além de ter assumido o comando de algumas das batalhas mais destrutivas. Nas contas da ONU, o conflito havia matado, até março de 2021, 350 mil pessoas. As contas da ONU são conservadoras. O Observatório Sírio de Direitos Humanos fala em 613 mil mortos até março do ano passado. A guerra ainda está em curso. Independentemente de quem faça a conta, e contas em guerra são sempre difíceis de avaliar, Putin é responsável por mortes na casa das centenas de milhares. Nenhum outro líder se aproxima dele neste século em quanto sangue humano derramou. E a morte de Navalny, que realmente ainda precisa ser investigada, não tem nada de rara. Políticos, jornalistas, críticos em geral do governo tendem a aparecer mortos de forma violenta. Há casos similares todos os anos.

Ainda assim é razoável, como exige a linguagem diplomática, demonstrar cautela. Mas se a opção é de cautela, por que carregar nas tintas retóricas ao tratar de Israel? Não pode haver maior ofensa contra um governo do que chamar suas práticas de nazistas. Em se tratando do governo de Israel, o país que nasceu por conta do Holocausto, onde tantos cidadãos são vítimas ou descendentes da Shoah, a ofensa só aumenta. Em muito. E a ofensa não foi dirigida ao governo Netanyahu. Foi dirigida ao país. Além disso, a fala do presidente é puramente hiperbólica, não tem qualquer precisão. O que está acontecendo em Gaza é terrível, é mostra do horror provocado pela violência de que a humanidade é capaz — e é, também, insuportavelmente comum. Os mesmos russos puseram abaixo duas cidades inteiras neste século. Grozny e Aleppo. Conflitos matam civis às dezenas de milhares no Iêmen, em Myanmar e no Sudão neste exato momento. Incluindo mulheres e crianças. Nem na proporção é certo comparar o Holocausto, responsável pela morte de 40% dos judeus do mundo, com a Guerra em Gaza, que matou 0,2% dos palestinos. Desde a fundação de Israel, a população palestina aumentou em dez vezes.

Os números e os fatos têm uma frieza que podem e devem gerar incômodo se falamos de vidas humanas. Mas eles servem a um propósito: mostrar que Lula trata Rússia e Israel com critérios distintos. Para um toda cautela, para outro indignação máxima. Se os fatos não explicam por que critérios diferentes, então é preciso outra razão. E há. Ela é ideológica.

Compreender a ideologia por trás das falas do presidente, de sua política externa, ajuda a explicar por que Lula sempre gera ruído. Na aliança que se formou entre esquerda e o centro liberal para eleger o presidente, este ruído é constante. Ele nasce de visões fundamentalmente diferentes de como o mundo funciona.

A Doutrina Lula

Não há política externa sem ideologia. Ideologias são lentes através das quais enxergamos o mundo, oferecem modelos de como as relações dos países se dão. Todo governo, quando decide como se relacionará com outros, parte de uma visão ideológica. A Doutrina Lula, tocada pelo chanceler Mauro Vieira, parte do embaixador Celso Amorim, diplomata de carreira, ex-ministro, hoje assessor especial do Planalto. Celso defende que o mundo está rumando para o que chamamos de um cenário multipolar.

Durante a Guerra Fria, a política do planeta funcionava num sistema bipolar. De um lado os Estados Unidos, do outro a União Soviética, numa disputa de visões de ideal que tocava quase toda nação. Isto mudou com o colapso da URSS e do bloco comunista europeu. Por pouco mais de dez anos, os EUA navegaram solitários por um mundo unipolar. Nenhum país tinha uma economia sequer comparável, poderio militar muito menos. Os americanos ditaram as regras — até a ascensão econômica da China, na primeira década deste século.

A tese que Celso Amorim defende, e ele não está sozinho nisso, é de que o planeta está rumo a um ambiente multipolar no qual países diversos terão poder. Vieira falou disso numa entrevista à Americas Quarterly, ainda no início do governo. “Não temos um alinhamento automático a nenhum dos dois lados”, afirmou tratando de EUA e China. “O que nos guia é o interesse nacional dentro de um marco do multilateralismo, do direito internacional. Sempre pode haver prejuízos quando é um alinhamento automático e injustificável.”

Se o destino do planeta, nos próximos anos, for se tornar multipolar, o trabalho da diplomacia brasileira passa a ser perseguir um de dois resultados. Idealmente, tornar o Brasil um dos muitos polos. Se tudo der muito errado, fazer com que o país tenha se tornado tão relevante que a aliança consigo seja disputada. A partir da visão deste mundo multipolar, portanto, é que se constrói a política externa brasileira.

As diretrizes são as seguintes. Primeiro, buscar liderança global no tema Meo Ambiente. Depois, tentar se impor como líder regional no continente sul-americano. Inclua-se na lista, ainda, fortalecer os mecanismos de multilateralismo global. São organizações como ONU, Organização Mundial do Comércio, G20, Brics, as estruturas diversas nas quais muitos países têm assento e capacidade de influir. Quanto mais decisões saem destes conjuntos, melhor para o Brasil.

Ocorre que há um descompasso evidente entre o discurso feito no Itamaraty e as manifestações do presidente da República. Se no discurso a busca é por equidistância entre China e Estados Unidos, a zona de conforto que Lula encontra é sempre uma de crítica aos americanos e proximidade daqueles países que se põem como seus adversários. O Planalto não admite, mas o discurso de Lula é antiamericano. O que desmonta a equidistância do discurso é a estratégia chamada de “Sul-Sul”, na qual o Brasil busca se tornar líder de nações africanas e asiáticas, ao lado de China e Rússia.

Ainda antes da eleição, em fevereiro de 2022, Lula não demonstrou revolta com a invasão da Ucrânia. “Às vezes, fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin”, sugeriu à revista Time. “Numa guerra não tem apenas um culpado.” Em janeiro de 2023, repetiu mais ou menos a mesma coisa ao lado do premiê alemão, Olaf Scholz, em Brasília. “A Rússia cometeu um erro crasso de invadir o território de outro país. Mas quando um não quer, dois não brigam.” Em abril daquele ano, atacou EUA e UE. “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz para a gente poder convencer Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando aos dois.”

As críticas sempre têm a mesma direção e a sua é uma posição atípica dentre as democracias. Em visita à China, escolheu atacar os EUA novamente. “Por que todos os países estão obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar?”, provocou. Na verdade, nenhum país é. Países podem usar a moeda que desejarem em suas operações de compra e venda. Escolhem o dólar. “Por que um banco como o dos Brics não pode ter uma moeda que possa financiar a relação comercial entre Brasil e China, e entre os outros países dos Brics?”

Em meio ao constante atrito entre Venezuela e EUA, atacou de novo, desta vez ao lado do presidente Nicolás Maduro. “Se eu quiser vencer uma batalha, preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo”, explicou para os jornalistas. “Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e do autoritarismo. Cabe à Venezuela mostrar a sua narrativa, para que possa, efetivamente, fazer as pessoas mudarem de opinião.” Meses depois precisava lidar com a ameaça venezuelana de invadir a Guiana, ambos na fronteira norte brasileira.

Desde o início, a posição do Palácio do Planalto a respeito das consequências do pogrom impetrado pelo Hamas em 7 de outubro do ano passado seguiram o mesmo padrão. Hesitação e cautela no primeiro instante, na maneira de tratar a ação de ataque a civis israelenses. Adoção de formalismo diplomático na recusa a classificar o Hamas como grupo terrorista. Depois, palavras cada vez mais duras contra Israel. No momento em que já haviam morrido 30 mil palestinos, números do Hamas que vêm com a imprecisão de quaisquer números de guerra, comparar Israel com a Alemanha nazista foi visto pelo presidente como razoável.

Pode-se concordar, pode-se discordar. Mas é impossível negar: os critérios adotados na escolha de palavras não são os mesmos. Dois pesos, duas medidas.

O problema da implementação da estratégia que busca posicionar o Brasil para um futuro mundo multipolar é que, à esquerda, ela coloca o presidente num lugar bem confortável para políticos de esquerda criados entre os anos 1960 e 70. Afinal, os aliados são os mesmos países do tempo da Guerra Fria. Os adversários, idem. Se a estrutura ideológica aponta para o futuro, a implementação finca seus pés no passado, não obrigam ninguém a repensar. É só repetir o que sempre se disse, não importa o quanto o mundo tenha mudado. A diferença é que a Rússia de hoje é uma ditadura sanguinária de direita e a China é uma potência comercial muito mais capaz economicamente do que a URSS jamais foi. Se ainda é comunista, discute-se.

Uma outra doutrina

Há um segundo problema. Se ideologias são modelos de como o mundo real funciona, elas precisam se ancorar em alguma base de fatos. Aquilo que o modelo escolhe ressaltar tem de estar no mundo. E simplesmente não é possível afirmar que a organização mundial esteja caminhando para um mundo multipolar. Alguns cientistas políticos, dentre eles os brasileiros Dawisson Belém Lopes e Guilherme Casarões, tratam a ideia com uma palavra sucinta: é um mito. Para eles, a política externa tocada a partir da virada do século para posicionar o Brasil num mundo multipolar que jamais se concretizou gerou gastos excessivos que alimentaram, por sua vez, a crise econômica interna.

O que o mundo tal qual ele é mostra é que há duas potências: são Estados Unidos e China. Não há outras. Não há qualquer sinal de que haverá outras. Reino Unido, França, Alemanha, nenhum outro país briga no espaço que EUA e China disputam. Muito menos o Brasil. A União Europeia não é capaz de falar com voz única. E esta disputa não é militar, como foi o cenário bipolar da Guerra Fria. A disputa é econômica e tecnológica, o que no século 21 é entrelaçado. A construção de riqueza está diretamente relacionada à produção de conhecimento técnico-científico, muito mais do que o chão de fábrica. A Era Industrial passou.

Disfarçada por trás, há uma disputa ainda mais importante. De regimes. O que a China propõe é que uma ditadura politicamente fechada porém aberta comercialmente ao mundo pode competir com o modelo promovido pelos americanos desde a sua Revolução.

A história que a China conta ao mundo é que liberdade é superestimada. Riqueza e bem-estar social podem ser produzidos sem qualquer necessidade de democracia. E a verdade é que nenhum país, na história, chegou tão perto de provar isso. Assim como a segunda metade do século 20 foi uma disputa entre os modelos ideológicos de americanos e soviéticos, disputa vencida pelos EUA por colapso completo do adversário, a deste primeiro quarto de século 21 segue o mesmo caminho. Só que a China propõe de forma muito mais convincente seu modelo que nada tem a ver, economicamente, com o velho comunismo.

Existe uma doutrina liberal de política externa. Ela parte de um modelo de como o mundo funciona como qualquer outra ideologia. Mas leva a conclusões tão distintas que é fácil compreender por que os eleitores liberais de Lula se incomodam tão profundamente com a política externa que o governo propõe. Afinal, o que motivou tantos liberais a votar em Lula foi um único fato: era evidente que Jair Bolsonaro é golpista. O liberal, verdadeiramente liberal, por sua natureza primeiro defende o regime. A democracia liberal. Só depois vai discutir política pública.

As premissas da doutrina liberal começam por uma ideia: entre si, duas democracias negociam. Duas democracias não entram em guerra. A ideia, que vem de inúmeros filósofos como o americano John Rawls, ainda não foi desmentida no mundo real. A natureza de duas democracias é conversar e buscar algum parâmetro legal que lhes permita resolver suas diferenças. Por isso, o número de democracias no mundo, quanto maior for, maior estabilidade traz. Quanto mais estável for o mundo pelo aumento de democracias presentes, mais fluido é o comércio. Quanto menores os limites do comércio entre as nações, maior a riqueza gerada. Ganham todos.

Há um detalhe importante no choque das ideologias. Liberais não veem o jogo da construção de riqueza como um de soma zero. O enriquecimento de um país não quer dizer que o outro perderá. Riqueza não se constrói apenas com exploração. Da maneira como a esquerda representada pelo PT compreende, isto não é verdade. Em sua leitura, uns países enriquecem porque os outros empobrecem.

Uma doutrina liberal de política externa, portanto, agiria com algumas similaridades, mas muitas diferenças. Não há discordância na vocação de liderança ambiental do Brasil, tampouco na ideia de reforçar mecanismos multilaterais. Mecanismos globais para encarar crises globais são necessários e desejáveis. Mas a prioridade de uma política externa liberal é a expansão do número de democracias. Durante o governo Bill Clinton, a secretária de Estado Madeleine Albright incentivou que organizações não-governamentais localizassem, no Leste Europeu recém-saído da Cortina de Ferro, aqueles movimentos capazes de expandir democracias de baixo para cima. Dentro da sociedade. Organizações estudantis, ONGs, associações de moradores, sindicatos. Universidades. O objetivo era levar técnicas, conhecimento, incentivos. Permitir que as democracias se consolidassem.

Em muitos casos, deu certo. Noutros, não deu — a Hungria é um, notório. Lá, a Open Society foi expulsa por ser compreendida como representante do “imperialismo ianque”. A ela, o premiê Viktor Órban contrapôs sua democracia “iliberal”. Seja lá o que quer dizer. Na Ucrânia, essa ação de incentivo à democracia foi compreendida pelo governo Putin como uma ameaça à possibilidade de a Rússia manter o país como vassalo. Putin tinha toda razão. A esquerda latino-americana releu as objeções imperialistas de Putin com outros óculos — os dos anos 1960, da Guerra Fria. Era imperialismo, mas não russo. Americano. E, com estes óculos, viu-se não o incentivo a organizações estudantis, ONGs, associações de moradores, sindicatos. Viu-se não o incentivo às estruturas, na base da sociedade, que despertam cidadania e mobilizam democracias. Viu-se uma manobra golpista com apoio americano.

Os Estados Unidos de Clinton, Obama e Biden são muito distintos, em sua política externa, dos EUA de George W. Bush e Donald Trump. Mas não é assim como a esquerda percebe os EUA, que ainda vê como a principal ameaça ao país. O Brasil possivelmente ainda descobrirá a extensão da pressão americana no Exército daqui para evitar um golpe de Estado, no último ano do governo Bolsonaro. Não é impossível que tenha sido um dos elementos chave para garantir que, tendo vencido no voto popular, Luiz Inácio Lula da Silva tomasse posse como presidente da República em 1º de janeiro de 2023. 2022 não foi igual a 1964. O mundo mudou, e profundamente. Sair da zona de conforto e enxergar a transformação é importante.

Uma doutrina liberal brasileira, na política externa, compreenderia que no momento de crise das democracias, de incentivo à ideia de que liberdade é desnecessária para construir riqueza e distribuição de renda, é preciso ter lado. O lado que incentiva democracias. Não é romper diplomática ou comercialmente com ditaduras. É descobrir quais os mecanismos para incentivar a democratização dos vizinhos e, sim, a manutenção da democracia em países como Israel — que correm o mesmo risco que EUA e Brasil viveram e, de certa forma, ainda vivem.

O principal desafio econômico dos EUA, hoje, é a busca de fontes de minerais como lítio, grafite, manganês e níquel, fundamentais para as cadeias de produção de automóveis a computadores, passando por celulares. A América Latina poderia substituir muito da produção chinesa. A China domina mais de metade da fabricação de carros elétricos do mundo, Brasil e América Latina podem entrar com facilidade neste negócio. A dependência farmacêutica americana na China, para os remédios mais básicos, é imensa. O Brasil também tem capacidade de substituir um bom naco desta produção. Aliás, não só para os EUA. Para a UE também. Para não falar de software e as muitas indústrias novas baseadas numa produção intelectual que pode ser feita em qualquer canto do mundo com boa infraestrutura de eletricidade e acesso à rede. Um país com praias estupendas, que acene para tantos engenheiros no mundo quanto há que anseiem pelo desejo de viver em liberdade e longe de guerra: é só chegar, a gente carimba o passaporte. Uma política externa liberal enxergaria estas oportunidades.

Mas o Palácio do Planalto não enxerga o incentivo a democracias como valor. Seus critérios, afinal, são outros.

O segundo mandato de Jon Stewart

“Um segundo mandato com que todos podemos concordar.” A provocação do slogan sobre o retorno de Jon Stewart para o The Daily Show é evidentemente sobre a disputa entre Joe Biden e Donald Trump nas eleições presidenciais americanas. Com exceção dos entusiastas do movimento MAGA, ninguém está eufórico de ver os mesmos competidores de 2020 na cédula. Essa insatisfação passa pela constatação de que Trump apodreceu de tal forma o Partido Republicano que a direita dos Estados Unidos foi incapaz de oferecer uma alternativa a um ex-presidente que pode ser condenado, entre muitas outras coisas, por uma tentativa de golpe de Estado na autoproclamada maior democracia do planeta. Da mesma forma, os Democratas não conseguiram entregar uma nova liderança que agradasse minimamente o público menos liberal do país e fosse opção ao conservadorismo.

Mas a frustração geral inclui também algo bem mais prático: a idade dos candidatos. (Possíveis candidatos, porque os EUA ainda passam pelas primárias, mas só uma reviravolta sem precedentes evitará o rematch Biden x Trump.) O democrata tem 81 anos; o republicano, 77. Os que temem, com razão, o que um segundo mandato de Trump representaria para a democracia americana defendem com veemência que esse sequer deva ser um tópico no debate eleitoral. Afinal, nada que possa fortalecer Trump ou enfraquecer Biden, o que daria na mesma, vale o risco. Mas Stewart não fugiu, na sua reestreia na comédia política, do óbvio incômodo que a velhice de Biden causa em qualquer espectador atento. E é justamente por isso que ele é tão necessário.

Alçado ao posto de uma das vozes mais influentes da esquerda liberal americana nos 16 anos em que comandou o Daily Show, de 1999 a 2015, Stewart só conquistou essa posição por que nunca se absteve de fazer a crítica por completo. A sátira permite o distanciamento que a militância proíbe — e que o jornalismo foi acusado de não aplicar para valer. E Stewart nomeia exatamente assim seu ofício. “É uma sátira, uma expressão de sentimentos reais. As ferramentas da sátira não devem ser confundidas com as do jornalismo. Usamos hipérboles. Mas o sentimento subjacente tem que parecer eticamente e intencionalmente correto, caso contrário não o faríamos", ele explicou numa entrevista ao Guardian, quando decidiu largar o Daily Show. O sentimento subjacente de Stewart sempre pareceu ser um misto de paixão pelos princípios de integridade e igualdade da democracia com o cinismo em relação aos atores da política. O comediante pôde denunciar hipocrisias de democratas e republicanos e fazer rir enquanto os desnudava.

Por causa disso, foi sistematicamente repreendido por praticar um “dois-ladismos” que teria, como efeito, a dormência de seu público. A apatia. Há quem diga, ainda, que a profunda bipolaridade da política americana tem no apresentador um dos responsáveis. Stewart não teme esse tipo de crítica e a incorporou em seu retorno à TV a cabo. Numa interação com Jordan Keppler, um de seus “correspondentes”, ele é questionado: “E aí, já salvou a democracia? Com sua mistura de sarcasmo e dois-ladismos? Oh, George Bush é burro; oh, Al Gore chato!”. Cabeça baixa, emulando alguma modéstia, ele responde: “Eu não estava tentando salvar a democracia". E depois acrescenta que só vai estar ali uma vez por semana, às segundas-feiras, como quem insinua que, mesmo que essa fosse sua intenção, não teria tempo suficiente. O show de estreia de Stewart teve 2 milhões de espectadores. No YouTube, já tem quase 10 milhões de views.

Antes de retomar seu posto na bancada do programa, ele deu uma entrevista em que afirmou não estar em busca de influenciar o debate eleitoral. “Estou querendo uma catarse, um lugar para despejar pensamentos.” E, novamente com alguma humildade, mas com razão, lembrou que tudo que ele desejou que acontecesse nos anos em que esteve quase toda noite no ar simplesmente não aconteceu.

Ao encerrar o primeiro monólogo dessa nova fase, ele declarou, um tanto consternado, que, se tem algo que aprendeu nos nove anos em que esteve fora do Daily Show foi que quem realmente faz alguma diferença são “as pessoas comprometidas, anônimas e inteligentes que batem em portas fechadas, erguem os que estão caídos e trabalham duro em problemas até terem resultados positivos — e mesmo depois precisam se manter ativas para que o resultado resista". Pareceu uma reverência a ativistas e militantes, sim. Ele mesmo exerce sua militância na defesa de veteranos de guerra e trabalhadores que atuaram no 11 de Setembro. Mas, pela coragem de tratar da avançada idade de Biden sem se preocupar com a retaliação dos liberais, deu o recado de que essa militância fica na pessoa física, não na de apresentador.

É algo que ele deve conseguir fazer sem grandes dificuldades. Foi ele que inventou essa forma de comentar o noticiário. Com um humor que se aproxima do politicamente incorreto, sem cruzar a linha. Com caras, bocas e mordacidade. E uma bem-vinda dose de autodepreciação. Se houvesse hierarquia na Santíssima Trindade, na da sátira política americana, que se completa com Stephen Colbert e John Oliver, Stewart seria o prevalente. Foi chefe e mentor dos outros dois. Sua habilidade de se manter cínico e apaixonado o colocou em posição de entrevistar de Barack Obama a Donald Rumsfeld.

No segundo programa, ele despedaçou a “entrevista” que o trumpista Tucker Carlson fez com Vladimir Putin. Apontou que a aliança da extrema direita pelo mundo, e uma consequente nova ordem mundial, não se dão mais no eixo do capitalismo x comunismo, mas do woke x anti-woke. Há quem acredite que isso seja simplificar demais a questão, muito mais grave quando se coloca em perspectiva o fascismo propagado pela direita radical.

Ele chegou a discutir essa ideia com Zanny Minton Beddoes, editora-chefe da Economist, publicação expoente do liberalismo europeu — e ela fez questão de apontar essa diferença para o liberalismo à esquerda americano. Ela discordou polidamente, como boa britânica. “Há algo mais profundo acontecendo. Potencialmente, há uma revolução no conservadorismo mais nas linhas do reaganismo e do thatcherismo. Mas há, sim, o aspecto da identidade, resta saber se ele dita uma nova ordem global.” É uma ideia que Stewart parece estar amadurecendo, formulando. Sua posição de “simpatizante do socialismo” enquanto perscrutador dos democratas como que o habilita a fazer esse exercício diante de milhões de pessoas. Por mais que isso enfureça a esquerda.

Enquanto esteve fora do Daily Show, além de dirigir dois filmes de pouca repercussão, o comediante conduziu um programa The Problem, na Apple TV, que foi muito criticado e acabou cancelado. Bastante mais confrontador que no passado, Stewart estava, aparentemente, em processo de acareação com o rumo que a política americana havia tomado. Afinal, quando deixou a TV em 2015, sua justificativa, além de questões pessoais, foi a de que, tendo coberto quatro eleições presidenciais, na eleição de 2016 “não parecia que haveria algo muito diferente”. Por um lado, nossa, como havia — um presidente golpista emergiu ali. Por outro, olhando a repetição na cédula de 2024, daria para dizer que ele estava totalmente errado? Passadas as fases da negação e da raiva, Stewart está propondo uma etapa inusitada para o sofrimento pela derrocada da democracia dos Estados Unidos e a luta para mantê-la viva: a catarse. Eu é que não vou perder nenhum episódio.

Mossoró sitiada

Quem chega a Mossoró vindo de Natal é recebido por um enorme pórtico da Polícia Rodoviária Federal, cerca de 10 km antes do início da cidade. Outrora um grande espaço aberto, com muitas ruas de pedra ou mesmo no chão batido, hoje o município conta com obras viárias e muitos prédios. O boom comercial e demográfico chegou por lá na década de 2000. Edifícios foram erguidos para as marcas mais prestigiadas do país, mas, mesmo com incremento de 50 mil pessoas na população em duas décadas, ainda há uma pegada interiorana no ritmo do trânsito e na rotina dos quase 265 mil habitantes. As universidades estadual e federal remodelaram ou fundaram seus campi, e o Instituto Federal chegou à cidade em 2008, firmando Mossoró como um polo estudantil do Oeste potiguar. Mossoró é uma cidade quente. Um forno. O vento não chega ao vale do Rio Mossoró, em volta do qual o município nasceu e se desenvolveu. Hoje, ele é um ponto turístico no coração mossoroense, onde se aglomeram bares e restaurantes na principal ponte sobre o curso d’água, uma forma inclusive de aliviar o calorão. A Igreja de São Vicente, marco no enfrentamento ao cangaço, fica nessa região também. 

Ali está, ainda, a maior parte dos hotéis da cidade, que, desde 15 de fevereiro, penam para oferecer hospedagem aos “forasteiros” que chegaram repentinamente. Alguns quilômetros adentro, para a esquerda, os prédios vão rareando, substituídos por casas cada vez mais simples e, depois, uma estrada. Seguindo a oeste pela RN 015, em direção a Baraúna, já na divisa com o Ceará, é possível encontrar placas que recomendam cautela aos automóveis à medida que a cidade fica para trás. É um local ermo, pontuado pelas chácaras da comunidade de Dix-Huit Rosado, uma homenagem ao filho de uma proeminente família local. Ali, há dois presídios. O primeiro é a penitenciária agrícola Dr. Mário Negócio. Mais alguns quilômetros e se chega à Penitenciária Federal, construída em 2007 e onde estão alguns dos condenados mais perigosos do país. Ele fica escondido, não é possível vê-lo a menos que se entre na via que conecta a estrada à entrada. Comparado a este, o primeiro parece uma colônia de férias. “Como o Mário Negócio é para cumprimento de pena, lá são oferecidas todas as medidas de ressocialização, como arte, pintura e até trabalhos com agricultura e animais, justamente por ser um complexo penal agrícola”, comenta o sociólogo Francisco Augusto da Cruz, que deu aulas no presídio federal entre 2017 e 2019, e ainda leciona no estadual. 

Faz dez dias que dois detentos escaparam do presídio federal. Cruz ainda estranha os relatos das falhas nos protocolos da Penitenciária Federal na fuga de 14 de fevereiro. “Tudo que eu vi na imprensa contradiz o que eu vivi lá dentro. Eles cavarem por três dias sem ninguém ver significa que não cumpriram a regra de vistoriar as celas diariamente, sobretudo no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)”, comenta. “Às vezes, eu ficava sem paciência para os protocolos, então, nem levava material didático para as aulas, ia só com a roupa do corpo.”

Era no RDD, isolados, que estavam Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento, os dois integrantes do Comando Vermelho (CV) que entraram para a história como os primeiros a fugir de uma unidade federal no país. Rogério e Deibson são conhecidos “matadores” do Comando Vermelho, responsáveis pelas execuções determinadas pelo “Tribunal do Crime” da facção. Deibson cumpre  81 anos de prisão, enquanto Rogério foi condenado a 74. Ambos estavam em Rio Branco, onde participaram da rebelião que culminou em cinco mortes. Eles chegaram a Mossoró em setembro de 2023. Dentro da cadeia, Cruz percebeu que “o perfil sociocultural e econômico” dos detentos é elevado, muitos com diploma superior e cheios de experiências profissionais. Algo que, de acordo com o professor, pode ser utilizado na empreitada dos criminosos. 

Sem prosa na calçada

Não é como se Mossoró fosse exatamente um oásis de tranquilidade. A cidade tem se destacado pelos altos números de homicídios, por vezes chegando a figurar entre as de maiores taxas de violência. Foi assim em 2022, quando foi apontada como a 11ª cidade mais violenta do mundo por uma ONG mexicana, e a 13ª brasileira com mais homicídios por 100 mil habitantes. Em 2023, a onda de ataques que incendiou várias cidades do estado passou também por ali. Por ser um “local de passagem”, espécie de ligação entre Fortaleza e Natal e polo econômico de sua região, Mossoró também convive há algum tempo com as rotas do tráfico de drogas e com os confrontos que as atividades criminosas trazem ao cotidiano. Mas, em geral, não havia uma sensação de insegurança relevante entre a população. “A gente até tem um pouco de contato com os internos do presídio agrícola, mas do federal não vemos nem as visitas”, conta Josiane Bezerra, dona de um salão de beleza em Riacho Grande. Foi nesta comunidade rural que os fugitivos invadiram uma casa para roubar mantimentos e os celulares usados para manter contato com comparsas. “Todo dia juntava gente aqui na rua, agora não vem mais ninguém. Estamos fechando o comércio cedo e nos trancando em casa”, relata.

Nem mesmo a prosa com cadeiras de balanço na calçada se mantém. São dez dias de apreensão. E ela vem de dois lados. Com diversos agentes de forças de segurança distintas, as buscas por Rogério e Deibson receberam reforço da Força Nacional, que chegaram ontem. E há uma preocupação na sociedade mossoroense: nenhum daqueles agentes parece estar lá para garantir a segurança da população. É tão somente uma ação de busca de criminosos. Segundo relatos de moradores das áreas em que se dão as buscas, há invasão indiscriminada e sem mandado por parte dos agentes. “A polícia tá entrando em tudo que é casa”, queixa-se Bezerra.

A 230 km de Fortaleza, é possível dizer que Mossoró recebe mais influência cearense que da própria capital do estado, Natal, distante cerca de 280 km. Nas telas, dá para sintonizar a TV Diário, do Ceará, e acompanhar as produções e até o noticiário para além da divisa. Também pode-se atravessar de um estado a outro sem acessar grandes rodovias, apenas por meio de picadas abertas na mata. Comuns em cidades pequenas, as rotas clandestinas de lá serviam para que os próprios moradores fossem de um ponto a outro sem se preocupar com documentos ou itens de segurança. “Eu mesma usava uma dessas estradas para chegar a Baraúna. Se eles tiveram informações por aqui, com certeza já passaram para o Ceará”, aposta Josiane. Esta também é a suspeita do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que emitiu mandados de busca e apreensão e de prisão no RN e no estado vizinho para fechar o cerco aos que supostamente auxiliaram a dupla do CV. 

Mais perto ainda da divisa, a cidade de Baraúna é o que se chama de “pacata”. Com menos de 30 mil habitantes, é um lugar onde a vida passa devagar, com suas pequenas lojas e instituições de ensino que se limitam ao ensino médio. Sem preparo na área de segurança para lidar com uma fuga de criminosos de alta periculosidade, resta à população trancar as casas da melhor maneira possível e se esconder nos cômodos mais seguros das residências, como contam dois moradores de lá que preferiram não se identificar. “Eu tenho a certeza que ou eles passaram por aqui, ou ainda estão na região. Pelo que falam, querem chegar ao Ceará, e não tem jeito melhor de ir que as estradas de Baraúna”, comenta um deles, dono de um restaurante. Dona de uma lanchonete, Renata Reis relata que “é polícia por todo canto”. As saídas para Mossoró e para o Ceará estão bloqueadas, com revistas nos veículos sob a mira de fuzis. Na cidade em si, o movimento minguou. “O comércio tá fraco, caiu muito. A maioria das pessoas sobrevive de agricultura, e o pessoal que ia pros sítios já não vão mais, a polícia já tomou muitas motos nessas fiscalizações”. 

Um lugar comum

As cenas de policiais em busca de bandidos são comparadas a um dos maiores orgulhos históricos do local: a expulsão de Virgulino Ferreira da Silva e seu bando, em 1928, até hoje celebrada em apresentações artísticas. O episódio é tido como a maior derrota do Rei do Cangaço até a Grota do Angico, dez anos depois, quando ele e seus companheiros foram mortos e degolados. A cidade está salpicada de blitze e armamentos pesados dos agentes de segurança, que são comumente vistos até nas horas em que estão de descanso, nos restaurantes locais. “É diferente, porque não é um bando. Mas há semelhanças, sim. A natureza do sentimento é a mesma, o medo e a indignação por uma ameaça à cidade. A rotina mudou, tiraram a paz dos moradores”, indica Francisco Cruz, que aponta, entretanto, que a comparação é mais válida com a realidade de Baraúna que propriamente a de Mossoró. “Em 1928, as pessoas saíram de Mossoró com a roupa do corpo e só voltaram quando o bando foi expulso. Isso não vai acontecer agora, é claro, mas há uma sensação de insegurança semelhante”, completa o professor. 

“Já é possível ver uma decepção, até uma desmotivação dos policiais com a duração da fuga, algo próximo de um constrangimento mesmo”, pontua Cruz. Por enquanto, os dois fugitivos continuam a superar a saga dos cangaceiros em Mossoró, driblando as forças policiais. “Perdemos o rastro”, disse ao Meio uma fonte ligada às buscas. 

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