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Ideologia, eu quero uma pra viver

Vamos conversar sobre ideologias? Sabe, andei lendo diversos comentários, seja por mensagens pessoais, sejam nas minhas caixas públicas das redes, com afirmações, questionamentos que sempre batem nesse ponto. Como é que a gente entende o Brasil? Como é que a gente entende o mundo?

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Existem três grandes ideologias na política do Ocidente e quase todos nós estamos dentro de uma delas. A mais antiga é o Liberalismo. Em oposição ao Liberalismo, após a queda do Antigo Regime e meio que para representar aqueles valores que vinham do passado, se organizou o Conservadorismo. A mais jovem das três é o Socialismo. Existem muitos jeitos diferentes de ser liberal, de ser conservador, de ser socialista.

E, olha, já de cara, destas duas observações simples, muita gente vai querer discordar. Ou vai dizer que só existe uma forma pura para a sua, ou que há outros jeitos de dividir a coisa. Vai ter gente sacando do bolso outras ideologias. Sei lá. E o Anarquismo? E, sim, o Anarquismo é distinto o suficiente dessas três para ser considerada uma coisa separada. O problema é que os anarquismos, de esquerda e de direita, não estão realmente dentro do jogo político. Não estão no debate público. É pequeno demais para poder ser levado em conta.

Vamos, sim, definir cada uma das três. Mas, antes, acho que vale um olhar um pouco mais de longe. O que são essas ideologias políticas? Eles são sistemas de ideias que um grupo grande de pessoas adota ao mesmo tempo. Elas servem como um mapa de conceitos. Como modelos mentais que nos orientam, que organizam ideias. Porque a gente tem um mundo em frente a nós e há problemas de toda sorte que precisamos resolver. Mas como interpretamos esses problemas? Como estabelecemos prioridades? Sem um mapa, ninguém anda. Então esses modelos nos guiam para tomar essas decisões. A gente não enxerga o mundo como ele é. A gente enxerga o mundo através destes modelos organizadores. Como o mundo é complexo demais, cada ideologia faz um mapa simplificado e estabelece prioridades na forma de algumas afirmações que aprendemos a repetir. Mais do que isso. São afirmações que repetimos uns aos outros e que nos encorajam à ação.

Outra maneira de pensar em ideologias é como lentes através das quais a gente olha pra sociedade. Esse é um ponto chave por compreender. Mesmo as pessoas que acham que não têm ideologia, elas partem de várias premissas, de vários intuições sobre como uma sociedade se organiza. Estas premissas, essas intuições estão ancoradas numa destas três ideologias. Elas não vêm do nada, essas intuições. Elas vêm do que pensaram algumas centenas de filósofos nos últimos três séculos, mesmo quando a gente não sabe dar o nome deles. Sabe aquela coisa que você acha que é óbvio? É algo do qual você parte como pressuposto? É disso que estamos falando quando pensamos em ideologias.

O problema é o seguinte: eses pressupostos contam muito, mesmo que a gente não se dê conta deles. Por isso que é útil pensar em ideologias como lentes. Porque cada lente vai magnificar uns aspectos e tornar outros menores. É inevitável. Quando duas pessoas que olham pra sociedade com lentes distintas conversam, há um risco profundo de desencontro. Claro. Quando você olha para a sociedade, o que é importante observar primeiro?

E aí, veja, a pessoa da ideologia X conversa com a pessoa da ideologia Y. Cada uma dentro do seu grupo aprendeu a olhar para um aspecto da vida e repetir aquela mesma frase, quase um slogan. Põe as duas para conversar e logo percebem que a barreira está ali. Um vem com uma verdade absoluta, o outro com outra verdade absoluta, e elas estão em conflito. A maneira essencial como um e outro compreende o mundo é diferente. Fundamentalmente diferente. O primeiro impulso vai ser tentar corrigir o jeito que o outro vê o mundo. Porque ambos estão trazendo verdades fundamentais.
Essa conversa, posta deste jeito, não tem como dar certo. Então a gente precisa de outras ferramentas para nos ajudar a conversar. Mas aguenta aí que no fim a gente chega a este ponto. Antes tem mais uma observação geral sobre ideologias. É sobre pureza ideológica.

Bem: não existe. Não existe pureza ideológica. Desconfie de toda afirmação que comece com algo tipo “conservador de verdade é assim”, “socialismo de verdade é assado”, “todo liberal é não sei o quê”.

Existem alguns princípios básicos que sustentam ideologias, mas em cima deles há camadas e camadas que variam de acordo com o lugar e com o momento da história. As brigas de hoje não são as brigas da revolução industrial, o mundo que temos não é o dos anos 1930. Então em cima do trabalho dos filósofos, existe um outro grupo importante. São os codificadores. Políticos, jornalistas, intelectuais públicos e, claro, influenciadores. São aquelas pessoas que escrevem livros, fazem discursos que muita gente vê, estão presentes na imprensa e nas redes sociais fazendo leituras da realidade a partir de uma daquelas três lentes. Sim, isso me inclui.

Quem está presente no debate público traduz e adapta ideologias a um lugar, a uma circunstância. Faz parte da criação de leituras a respeito dum país. Isso quer dizer que toda ideologia é fluida por mais que alguns queiram dizer que sua visão é a única possível. Não é. Não tem como ser.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.
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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Ideologias partem de uma ideia força. No centro da visão liberal está a liberdade de a pessoa poder ser quem é. Na do socialismo está a ideia de que existe uma disputa pelos meios usados para a produção de riqueza. Como esses meios têm dono, uma minoria, o resultado é que uns têm muito, outros têm pouco, e isso leva a um conflito permanente dentro da sociedade. No conservadorismo o que conta é um cuidado profundo com as tradições. É a ideia de que a maneira como a sociedade se organiza, as hierarquias da sociedade, todos os rituais, elas são dadas pela natureza. Não devem ser mexidos.

A partir daí, qual o elemento fundamental para o qual cada um vai olhar? O liberal vai olhar para a pessoa. A pessoa, cada um de nós individualmente, está no centro de como o liberal compreende o mundo. O socialista, não, o socialista vê a comunidade. Os interesses do coletivo estão acima dos interesses do indivíduo. O conservador fica no meio do caminho: no centro ele põe a família, quase como se a visse como um clã, e as tradições que esta família cultiva.

Agora, imagina esses três sujeitos aí sentados num bar, conversando. Eles partem de princípios tão fundamentalmente diferentes que mal-entendido é coisa que acontece o tempo todo. O liberal vai defender o casamento homoafetivo e o conservador vai dar um salto porque isso mexe com a família como ele a compreende. O liberal vai falar do direito de cada um ser quem sente ser, quem aspira ser, e este é um princípio inegociável. Está na base essencial do que liberalismo é. O conservador vai falar de família, de pai, mãe, do almoço de domingo que o avô promovia, que o pai promovia, que ele promove, com sua mulher, com seus filhos, vai falar do pastor, do rabino, do padre, do monge. De como sempre foi e não pode mudar. É, também, um princípio inegociável. E a gente nem trouxe o socialista ainda, que vai falar de luta de classes, coisa que tanto o liberal quanto o conservador vão interpretar como uma leitura simplista demais da sociedade. Porque uma classe antes de tudo é composta de pessoas, cada uma diferente da outra, com anseios distintos. Ou porque uma classe, fundamentalmente, é composta por pessoas que têm suas famílias e outras preocupações que veem mudanças rápidas demais da sociedade como perigosas.

Cada um desses vai ver um grande problema diferente por resolver. O liberal entende que existe uma comunidade e que nós não somos nada sem este convívio. Então haverá tensão entre o que uma única pessoa pode fazer e o impacto que isto terá no coletivo. O liberal entende que um Estado precisa existir para gerenciar esse conflito entre os direitos individuais e os direitos individuais dos outros assim como os direitos da comunidade. Alguns liberais vão considerar que os direitos da comunidade têm um peso um pouco maior, outros um pouco menor. Todos põem no centro a pessoa, o debate todo está nesse equilíbrio.

O socialista vê como o problema que o Estado precisa resolver o da distribuição de acesso aos meios de produção. Socialdemocratas, que são uma versão bem light dos socialistas, querem resolver isso dentro da democracia, estão mais preocupados em de repente driblar a coisa distribuindo serviços e recursos pelo Estado. Desenvolvimentistas, aqui no Brasil, acham que o Estado deve organizar a economia, inclusive as indústrias, em serviço da sociedade. Comunistas, bem, eles acham que tem de confiscar mesmo, dar controle dos meios de produção ao Estado para que ele cuide de gerenciar o que é de todos e não pode ser de poucos.

O problema que o conservador vê é bastante diferente. Ele tem uma crença, um cientista político britânico de quem gosto mundo, define assim: o conservador parte da ideia de que há uma hierarquia natural nas relações humanas em que a família ocupa o centro. Esta hierarquia é dada por uma força extra-humana. A Margaret Thatcher vai dizer que é o mercado. O bispo Macedo vai dizer que é Deus. O importante não é qual a natureza desta força extra-humana, o importante é que ela não é humana e quando humanos mexem, desorganizam toda a sociedade. Põem em risco o equilíbrio natural das coisas. Então o conservador vai querer usar o Estado para postergar ao máximo mudanças que afetem este equilíbrio. Uns, mais autoritários, vão fazer isso de forma impositiva. Os mais moderados vão querer que mude, mas bem devagarinho.

Como é que a gente faz pra conversar, então? Porque, olha, as pessoas têm ideologia. E a gente precisa conversar. Como faz? Tenta convencer o outro a virar casaca?

Existe gente que muda de ideologia? Claro que sim. Aconteceu comigo, fez parte do meu processo de amadurecimento político num determinado momento da vida. Mas é uma coisa que acontece muito raramente. É um processo íntimo, pessoal, uma transformação interna quase sempre lenta. Não acontece com todo mundo. E num debate de mesa de bar ou de rede social, a chance de ocorrer está ali no limite tendendo a zero. Então uma conversa que envolva as premissas essenciais da ideologia do outro tem resultado previsível. Vai dar em briga porque ela está mexendo naquilo de mais profundo em que acreditamos.

Como contornar? Primeiro, compreendendo que é natural termos ideologias diferentes. Entendendo que é interessante alguém que pensa de forma tão diferente. Que se você olha pro mundo de um jeito muito distinto, por uma lente que ressalte outros pontos, você vai chegar a conclusões às quais eu jamais chegaria. E tem aprendizado nisso. Alguns pressupostos básicos não serão compartilhados e tudo bem. A conversa tem como seguir na curiosidade pela visão de mundo de outro.

E aí tem um truque, tá? Não precisamos concordar a respeito dos pressupostos básicos de como o mundo se organiza para termos concordância a respeito de políticas públicas. Pois é. Esse é o grande insight que faz democracias funcionarem. Como a gente chega a políticas com as quais somos capazes de concordar sem debater a compreensão do mundo? Tem três grupos no jogo, para formar alianças não é necessário ter todo mundo.

Existem outras maneiras de compreender ideologias. É assim que eu as entendo, em grande parte grande ao Michael Freeden. Aquele cientista político britânico. Se você compreende de outro jeito, que bom. Conte. Vamos conversar.

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