O que está em jogo nas eleições municipais de 2024?
Oi, pessoal! Vou abrir uma exceção na minha política de só dar feliz ano novo até dia 14 de janeiro, porque eu estava de férias e estou retomando a coluna hoje. Então, um excelente 2024 pra todos que me acompanham aqui.
E por falar em 2024 e em férias, cabeça de jornalista não desliga nunca, né? Pois na minha pausa fui de carro de São Paulo ao sul da Bahia e, pelo caminho, me saltou aos olhos o tema desse nosso primeiro encontro do ano.
Como vocês sabem, este é um ano de eleições municipais. Você pode não estar pensando nisso ainda, mas os políticos e os partidos estão. Quase sempre estão.
Na minha viagem, passei por muitas cidades, algumas bem pequenas, outras médias. E na margem delas havia aqueles tradicionais outdoors de deputados e senadores desejando boas festas para seus conterrâneos.
Só que com uma diferença. Em muitos desses cartazes, além dos votos de feliz natal e próspero ano novo, vinha uma cifra. Estava descrito ali quantos milhões aquele parlamentar havia destinado ao município em 2023.
Cá entre nós, que natal virou data comercial a gente já sabe. Mas essa eu realmente nunca tinha visto.
Eu contei mais ou menos uma dúzia desses cartazes, que indicavam os milhões de emendas que o excelentíssimo tinha repassado pra cidade. Aquele parlamentar não necessariamente será o candidato a prefeito. Mas certamente terá um candidato de seu grupo de influência.
E em que isso é diferente do que sempre aconteceu nas eleições municipais? Afinal, emendas parlamentares existem há tempos e são, sim, um instrumento legítimo tanto de política pública quanto de política eleitoral.
É disso que quero falar hoje. De como essa desmesura no quanto de dinh eiro cada deputado e senador pode mandar para sua base vai pautar essa eleição, esse ano e, tudo indica, este governo Lula III.
Eu sou a Flávia Tavares, editora executiva de conteúdo premium do Meio. A gente tem a newsletter gratuita, diária, com a curadoria de tudo que você precisa saber pra começar o seu dia. E tem as newsletters especiais para assinantes premium, com reportagens e análises mais aprofundadas, às quartas e aos sábados. São essas assinaturas que financiam nosso jornalismo — e quem assina ainda recebe a news diária mais cedo no email, além da editoria de economia. São só 15 reais por mês. Assine!
As eleições municipais de 2024 vão ser diferentes das anteriores. São as primeiras em que as emendas parlamentares completamente infladas vão realmente definir e pautar a disputa.
Eu digo isso porque essa desproporção do quanto um parlamentar define do que fazer com os recursos públicos começou no ano de 2020.
Só que naquele momento, embora esse fator já tivesse um peso bastante importante, o que estava na cabeça do eleitor e dos políticos era pandemia, vacina, máscara, negacionismo.
Por mais que esse não fosse o tema central das campanhas para prefeito, estávamos no auge da pior crise sanitária da história moderna e não havia como escapar desse domínio.
O orçamento secreto já vigorava em 2020. Foi uma manobra promovida pelo Congresso para se aproveitar da fraqueza do ex-presidente Jair Bolsonaro, de sua resistência e incompetência para formular e aprovar políticas públicas e sequestrar as verbas do Executivo.
Bolsonaro vetou. Mas o então ministro da Secretaria-Geral do Governo, o general Luiz Eduardo Ramos, apresentou um novo projeto de lei instituindo exatamente a mesma coisa e o Congresso aprovou. Ou seja, Bolsonaro não foi vítima do orçamento secreto, foi cúmplice.
Seus efeitos práticos já foram sentidos em 2022, no plano das eleições para deputados e senadores. Teve muito parlamentar que se reelegeu graças ao rio de dinheiro que pôde usar pra irrigar sua base.
Na corrida presidencial, do Executivo, naturalmente a polarização e os costumes foram centrais. O orçamento secreto foi usado mais como arma retórica. Lula e Simone Tebet atacaram com força a gambiarra. Bolsonaro, pra variar, mentiu, dizendo-se impotente para impedir a manobra do Congresso.
O Supremo Tribunal Federal decidiu, em dezembro de 2022, que essa forma de repasse de dinheiro do Executivo pro Legislativo era inconstitucional.
Mas a condição política criada pela fraqueza de Bolsonaro se manteve. Um Congresso hipertrofiado na capacidade de gerir recursos e de emparedar o governo federal, chantagear mesmo.
O orçamento secreto não existe mais nos mesmos termos. Ainda há, sim, problemas de transparência, só que não na mesma proporção de antes. O que acontece é que as emendas parlamentares estão infladas, há menos margem de manobra para o Executivo usar esse instrumento para conquistar apoios.
E aqui vale uma pausa pra entender por que eu falei lá no começo que elas são um instrumento legítimo de política pública e eleitoral. E por que estou falando agora que, apesar disso, a coisa saiu totalmente de controle.
Uma noção que pode soar muito básica de como o Estado brasileiro funciona, mas parece estar perdida para muitos. São três os poderes da República. Um que formula e executa as políticas públicas, o Executivo. Outro que formula leis e fiscaliza se as políticas públicas do Executivo estão de acordo com o que a população precisa e demanda, o Legislativo, a Casa do Povo. E um terceiro que aplica a lei, guarda e impõe a Constituição, o Judiciário.
Conforme a democracia foi se assentando, se acomodando, o Legislativo encontrou uma forma de participar da execução de políticas públicas. Usando emendas parlamentares, ou seja, dinheiro público, do Estado, deputados e senadores passaram a destinar um pequeno porcentual para suas bases eleitorais. Em parte, porque realmente conheciam as demandas mais específicas daqueles locais, daquelas pessoas. Em parte, porque isso os beneficiava eleitoralmente.
O jogo democrático foi sendo jogado assim. O Executivo entendia isso. Formulava políticas, recebia endossos, persuadia, convencia de que elas eram válidas, e liberava cargos, de um lado, e recursos para deputados e senadores de sua base de apoio aplicarem esse dinheiro ali na ponta.
Formava, assim, sua coalizão.
Quando esse jogo falha, os poderes se desequilibram.
Quando Lula enfrentou um Congresso arisco em 2003 e tentou escapar dessa dinâmica de liberar cargos e recursos, o PT acabou criando o mensalão pra suprir esses outros mecanismos. Deu muito errado, era ilegal e tisnou a imagem de partido anticorrupção do PT pra sempre.
Quando Bolsonaro abriu mão, por incapacidade e indisposição, de governar o país, deu muito errado. Hipertrofiou o Congresso, delegando ao Legislativo uma função que é do Executivo e tornando o governo federal praticamente imobilizado.
Arthur Lira, o artífice do orçamento secreto, gosta de apregoar que o parlamentar é mais qualificado para saber onde colocar o dinheiro público, porque conhece os rincões como ministros não conhecem. E chama essa hipertrofia orçamentária do Congresso de “política municipalista”.
Rodrigo Pacheco, do Senado, também anda falando coisas nesse sentido.
É uma completa inversão de valores. Justamente por ter uma visão do micro é que os parlamentares não estão qualificados para formular políticas públicas para o país e decidir onde investir uma fatia tão grande do dinheiro.
É também por isso que as emendas parlamentares representavam uma fração pequena desses recursos. O governo federal, com a visão do todo, pensava uma política. O deputado ia lá, pegava um pedacinho, colocava num rincão que talvez não estivesse contemplado. Não o contrário.
E olha que até aqui nem falei de corrupção, de desvios. De parlamentar mandando dinheiro pra fazer 50 mil exames de raio X em cidade de 20 mil habitantes, etc. Falei só da parte limpinha da coisa. Simplesmente não faz sentido que os parlamentares tenham a prerrogativa de decidir de forma tão ostensiva onde o Brasil carece de investimentos.
Vamos fazer um exercício de boa vontade e excluir os deméritos que um eventual parlamentar ou um programa do governo possam ter. Vamos imaginar que todos estejam bem intencionados. O governo federal formula o PAC, um programa em tese de infraestrutura para o país.
Isso é um dos efeitos do que está acontecendo. O outro é a perpetuação de grupos de poder. Um deputado ou senador com esse tipo de poder financeiro vai sempre se reeleger e eleger seu grupo. Acaba a alternância, acaba a oposição. E, no mandato seguinte, claro, vai querer repetir a dinâmica. É um ciclo sem fim.
Quem ganha com ele? O Centrão. É o grupo mais forte do Legislativo e, na política “municipalista” de Lira, vai seguir forte também no Executivo das cidades. E vai seguir fazendo prefeitos, deputados e senadores.
É muito difícil sair dessa amarra, tá? Lula se elegeu dizendo precisar respeitar o Congresso, sua autonomia, seu tamanho. E querendo retomar a arte de fazer política. Cedeu sempre porque foi eleito com pequena margem e sem base. Se não ceder, não governa. É por isso que ele está tão investido nas eleições municipais. Ele sabe que precisa romper esse ciclo que eu descrevi.
Precisa fazer prefeitos em 2024 e deputados e senadores em 2026, caso seja reeleito ou faça um sucessor, com menos apetite por emendas. Para poder governar com um pouco mais de controle sobre suas próprias políticas. Para reequilibrar os poderes.
É uma tarefa hercúlea. Um ciclo dificílimo de quebrar. 2024 vai ser um ano de eleição municipal, mas o que está realmente em jogo é o equilíbrio entre os poderes da República.