Brasil no Vale do Silício: O dia um da conferência

Visto do Vale do Silício, o Brasil ocupa um lugar único, importantíssimo — e de todo peculiar. Não é o único país estrangeiro importante para o Vale. A China tem se mostrado, ano a ano, uma concorrente cada vez mais agressiva. A Índia forneceu os CEOs de Google, Microsoft, além de inúmeros altos-executivos espalhados pela península de San Francisco, aqui na Califórnia. Israel e Suécia lançaram startups importantes para o ecossistema local — Waze e Spotify são exemplos notáveis. O que o Brasil tem de único é que é bom consumidor — é o segundo ou terceiro país mais frequente no Google, no Facebook, com iPhones na mão ou de olho na Netflix. O Brasil tem uma notável cultura digital voltada, essencialmente, para o consumo. O brasileiro gasta nove horas por dia conectado, contra seis horas e meia de americanos e chineses. Mas, diferentemente de todos, não faz dinheiro com o digital, não tem empresas da Nova Economia com relevância para seu PIB e, fechada para o mundo como é a economia nacional, este quadro não deve mudar tão cedo. Ávido pelo digital, a não ser que abra sua economia, o país continuará consumindo sem empregar ou fazer dinheiro com o novo negócio. A conclusão é da primeira edição do Brazil Digital Report (PDF), compilado pela McKinsey e divulgado ontem na conferência Brazil at Silicon Valley. E é justamente na Califórnia, ao sul de San Francisco, que o Meio está essa semana.

A Universidade de Stanford e o Vale do Silício, com todas suas companhias, são indistinguíveis. Inventores, empreendedores e investidores são alunos e professores, palestrantes ou visitantes contumazes, sempre mantendo relações estreitas entre escola e a comunidade ao redor. A conferência Brazil at Silicon Valley, que ocorre na segunda e terça-feira desta semana, é uma iniciativa de alunos brasileiros de Stanford que pretendem não concorrer, mas oferecer uma versão paralela à conferência de Brasil que ocorre também anualmente naquela Stanford da Costa Leste, Harvard. A diferença essencial é que o foco não é uma visão geral do país — é, isto sim, uma busca de aproximar o Brasil da Nova Economia.

“Em Minas, percebemos que um dos problemas das startups é o preço do aluguel”, explica numa conversa o governador Romeu Zema, o único político em cargo executivo que veio. “Vamos oferecer imóveis do estado com valor mais baixo para eles”, segue. “Queremos também abrir as escolas estaduais para cursos de programação que qualquer aluno poderá fazer. Faltam programadores.” O problema de Zema é que não basta. O relatório lembra que o Chile tem 27 acordos de livre comércio que dão, para suas empresas, acesso a 95% do mercado consumidor mundial. O Brasil tem nove acordos — acesso a 5% deste mercado. Se por um lado, sugere quem defende esta política, protege as empresas nacionais da qualidade melhor dos produtos fabricados fora, por outro aumenta imensamente o custo de computadores, celulares e tudo o mais que a nova economia exige e dificulta, para startups brasileiras, acesso ao mundo.

O resultado se vê rapidamente. Em 2018, as cinco maiores empresas americanas já pertencem à economia do século 21: Apple, Amazon, Google, Microsoft e Facebook. Em 2010, apenas três delas estavam no top-5 e a maior era a ExonMobil, de petróleo. É o tamanho da mudança desta década que começa a se encerrar. No mesmo 2010, a China não tinha nenhuma empresa digital no seu top-5 em valor de mercado. Hoje as duas maiores são Alibaba e Tencent, ambas startups 15 anos atrás. Mas veja-se o ranking brasileiro de 2018: Petrobras, Itaú, Vale, Bradesco e Banco do Brasil. Uma petroleira, uma mineradora, três bancos — um deles, estatal. Pior. Cada uma delas, vale aproximadamente metade do que valia em 2010. Não só são negócios que moviam a economia do passado como tiveram seu valor destruído entre escândalos de corrupção e a pesada recessão que o Brasil enfrentou simultaneamente.

Outro número, ainda mais sério, dá mostra da diferença entre Brasil e China, países que em 1994 tinham o mesmo PIB. A produtividade do trabalhador brasileiro dobrou entre 1964 e 2014. É a conta que mostra quanto o conjunto das pessoas que trabalham geraram em valor para a economia. Este ganho não ocorreu porque empresas passaram a gastar menos para empregar mais, tampouco do fruto de um esforço para aumento de eficiência da gestão. O ganho ocorreu por conta do bônus demográfico. Nasceram muito mais brasileiros, a população dobrou de tamanho desde os 90 milhões em ação, o governo seguiu cobrando pesados encargos e tributos, a economia permaneceu essencialmente parada e, protegida da concorrência, a indústria brasileira manteve o mesmo passo. Dobrou porque tinha o dobro de pessoas trabalhando. No mesmo período, a produtividade do trabalhador chinês aumentou vinte vezes. Sua economia comunista se abriu para o mundo, o governo facilitou o crescimento das indústrias que, passo a passo, ganharam competitividade internacional. O PIB chinês se aproxima do americano.

“Um bom produto da indústria digital”, contou no palco Scott Cook, CEO da Intuit, “nasce da intersecção entre três círculos. O primeiro é qual o problema grande, e não resolvido, o consumidor tem em mãos. O segundo está dentro da empresa, qual o problema podemos resolver bem. E, o terceiro, que problema resolvido por nós é também uma vantagem competitiva que outra empresa terá dificuldade de resolver. A resposta que estiver presente nos três círculos é a aposta que devemos fazer.”

A Intuit, uma empresa pequenina que faz softwares dedicados a gestão financeira como Quicken e QuickBooks, é uma pequena joia do Vale. Seu chairman por décadas, morto há pouco tempo por um câncer cruel, era um velho treinador de futebol americano chamado Bill Campbell. Aqui, todos o chamavam de coach. Técnico — ou, numa tradução mais típica de jogadores de futebol brasileiros, ‘professor’. Formado por uma universidade regular e sem qualquer credencial particular, entendia intuitivamente de liderança como mais ninguém. Era para Campbell que Steve Jobs ligava quando tinha um problema complexo e queria conversar com alguém. Foi Campbell que os investidores puseram para ensinar gestão aos então jovens Larry Page e Sergey Brin, quando acabaram de fundar o Google. Como foi ele, também, o mentor oferecido a Mark Zuckerberg quando ele iniciou a jornada do Facebook.

Cook, outro discípulo de Campbell, estava no palco sendo entrevistado pelo brasileiro Jorge Paulo Lemman. A chave de uma empresa digital, ele explicou, não tem nada a ver com geografia. “Veja a China, as empresas que eles têm criado longe da cultura do Vale.” A chave, conta, segue por outro caminho: a capacidade de rigor na administração, com processos bem estruturados e seguidos por todos, e simultaneamente a liberdade dada a todos para experimentar. “O trabalho do chefe não é decidir”, ele conta, “não mais. Seu trabalho é criar na equipe uma cultura de livre experimentação.” Não é fácil ter rigor de produção e liberdade de experimentação ao mesmo tempo. E, no entanto, é o que Apple, Google, Facebook, Amazon, Microsoft e outras tantas companhias da região têm.

“Esta é a missão que eu levo para o Brasil”, conta Pedro Bueno, CEO da Dasa, empresa que é uma das patrocinadoras da conferência. “Nós já temos isto, esta busca pela excelência operacional com inovação, mas é um equilíbrio difícil que precisamos refinar sempre.”

Outro discípulo de Campbell que subiu ao palco foi Dan Rosensweig, CEO da Chegg, uma empresa de educação que oferece de aluguel de livros didáticos caros a tutoria online. “Certa vez, Bill soube que me haviam oferecido o emprego com que sempre sonhei. Ele ligou imediatamente. ‘Dan, que tipo de líder é você que, num momento difícil, ameaça sair? Seu time precisa saber que você está com os dois pés dentro.’” Rosensweig ficou. O executivo, ele diz, está sempre em busca de um emprego melhor. A maior parte dos fundadores de empresas com frequência comete erros por teimosia. Mas há o empreendedor — aquele que junta a experiência do executivo e a criatividade do fundador. Para erguer uma empresa da nova economia, este é o perfil fundamental, a necessidade de constantemente estar passando à equipe o compromisso com o futuro da companhia, a segurança de que estará lá.

A conferência Brazil at Silicon Valley está ocorrendo no Museu da História do Computador, em Mountain View, cidade do Google. E continua hoje.

Em tempo: um grupo de discípulos de Campbell se reuniu para escrever um livro em sua homenagem, The Trillion Dollar Coach (Amazon), que sai no fim deste mês. Terminou, acidentalmente, por ser o nome mais citado nos painéis do primeiro dia. Acidental é exagero. Ter sido o mestre de gestão para empresas que no conjunto passaram de US$ 1 trilhão não tem nada de trivial. Se a conferência conseguir contaminar o Brasil, terá sido um ganho.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Já é assinante premium? Clique aqui.

Este é um conteúdo Premium do Meio.

Escolha um dos nossos planos para ter acesso!

Premium

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 180 por R$ 150 no Plano Anual

Premium + Cursos

  • News do Meio mais cedo
  • Edição de Sábado
  • Descontos nos Cursos do Meio
  • 3 dispositivos
  • Acesso ao acervo de Cursos do Meio*
ou

De R$ 840 por R$ 700 no Plano Anual

*Acesso a todos os cursos publicados até o semestre anterior a data de aquisição do plano. Não inclui cursos em andamento.

Quer saber mais sobre os benefícios da assinatura Premium? Clique aqui.