Edição de Sábado: Como seria o Reino Unido pós-Brexit?

Foi um erro de cálculo que levou ao Brexit. No Reino Unido, a decisão de sair da União Europeia não divide a população entre esquerda e direita — os dois partidos tradicionais, o Conservador e o Trabalhista, têm alas a favor e contra. Mas a história do Brexit não pode ser contada ignorando o crescimento da direita populista que tomou o ocidente de surpresa durante a década de 2010. Com base na maior parte dos estudos, os britânicos que mais sofrerão coma saída, ironicamente, serão justamente aqueles com o perfil demográfico de quem votou pela saída: homens mais velhos, com menos tempo de escola do que a média, em geral empregados pela indústria manufatureira. Os poucos estudos que indicam um Reino Unido independente saindo melhor partem de premissas pouco realistas, como a necessidade de formar acordos bilaterais de livre mercado com quase o mundo todo. Não está claro o que vai ocorrer nas próximas semanas. No discurso, o premiê Boris Johnson afirma que pretende deixar a União em 31 de outubro, com ou sem acordo. Legalmente, suas chances de conseguir fazê-lo são cada vez menores.

Aqui o Meio conta esta história em duas partes. A primeira é a política. Como aconteceu o Brexit. A segunda, o impacto — o que acontecerá após o Brexit.

Como ocorreu o Brexit

Em 2014, o Partido da Independência Britânica, UKIP na sigla inglesa, chegou em primeiro no pleito para deputados europeus. Havia um quê de ironia, ali: o partido que tinha por plataforma deixar a União Europeia era o mais votado para o Parlamento Europeu. Liderado por um populista chamado David Farage, o UKIP via sua participação nas urnas crescendo paulatinamente desde 2004 e, pela direita, começava a pressionar o Partido Conservador que tinha sua própria ala de eurocéticos. Foi para acalmar este grupo, e ao mesmo tempo atrair de volta os eleitores que deixavam a sigla tradicional, que o premiê conservador David Cameron prometeu convocar um plebiscito para decidir no voto se o Reino Unido continuaria na UE. Parecia a Cameron e a boa parte dos analistas que era um voto sem riscos. As pesquisas não indicavam haver maioria para a decisão de deixar o bloco. Deu errado.

Os britânicos foram às urnas em 23 de junho de 2016 numa participação recorde: 72% dos aptos a votar o fizeram. O resultado mostrou um país rachado. 51,9% votaram por sair, 48,1%, por ficar. A campanha ocorreu em dois níveis. O discurso mais evidente era econômico, embora raso — o Reino Unido paga mais do que recebe à União Europeia, o dinheiro poderia ser melhor empregado em casa. Num nível mais profundo, foi o forte sentimento anti-imigração que contou. Até 1993, ano de formação da União Europeia, uma média de 100 mil estrangeiros vinham morar nas ilhas britânicas todos os anos. No ano anterior ao plebiscito, 2015, 630 mil estrangeiros migraram para lá. A população de imigrantes saltou de 3,8 milhões, em 1993, para 8,3 milhões, em 2014. Contando apenas aqueles com cidadania britânica, foi um pulo de 2 para 5 milhões. Neste mesmo período, o número de britânicos que em pesquisas diziam considerar imigração um dos problemas mais graves do país pulou de quase zero para 45%. E a maior parte dos estrangeiros vêm, justamente, da Europa.

David Farage, porém, perdeu sua oportunidade de explodir como líder político durante a campanha pelo Leave (Deixar). Seu lugar foi roubado pelo carismático prefeito londrino, um jornalista feito político conservador chamado Boris Johnson. Johnson tornou-se o rosto do lado vitorioso. E, saindo derrotado, o premiê David Cameron tomou a decisão de deixar o governo. Ele não poderia liderar um processo no qual não acreditava. Ascendeu Theresa May. Como Cameron, ela fez campanha pelo Remain (Ficar). Mas o seu era um discurso de união interna: a questão havia cindido o Partido Conservador, era hora de acatar a decisão popular e curar as feridas. O que boa parte dos parlamentares tinha em mente, quando escolheram alguém com seu perfil, não era apenas o desejo de reunificar os conservadores. Era negociar um Soft Brexit — uma saída que fosse a menos danosa possível.

Em 29 de março de 2017, May disparou o Artigo 50 do Tratado de Lisboa. De acordo com as regras da União, antes de deixa-la um país membro deve informar ao Conselho Europeu de sua decisão para que, num prazo de dois anos, após negociação, o desligamento ocorra. O Artigo 50, no entanto, não detalha o processo. Ele teve de ser inventado. A premiê negociou um Soft Brexit, projeto que trouxe de volta ao Parlamento britânico para ser aprovado. Não foi. O 29 de março de 2019, quando terminou o prazo de dois anos, passou. Por três vezes May levou o acordo à Câmara dos Comuns, e em todas foi derrotada. Renunciou para que Boris Johnson assumisse. Ele também começa seu governo com derrotas acachapantes.

O Parlamento está dividido em três grupos. Um quer sair, não importa se com ou sem acordo. Outro concorda em sair, desde que com acordo. E, um terceiro, não quer sair. Os deputados trabalhistas que vêm de distritos mais industriais, tradicionalmente sindicalizados, sofrem a pressão de seus eleitores pela saída. A direita populista, idem. Quem está mais ao centro nos dois partidos tradicionais, assim como a terceira força na Câmara, os Liberais Democratas, oscilam entre concordar com a saída negociada ou trabalham para que um novo plebiscito seja convocado. As pesquisas indicam que, desta vez, o Remain venceria. Mas a margem não tem muita folga. Neste jogo em que três forças disputam e lealdades oscilam, a Câmara dos Comuns travou. Não há votos suficientes para sair com acordo, para aprovar um acordo, ou para convocar um novo plebiscito.

Soft Brexit, Hard Brexit

Inúmeros estudos tentam prever o impacto do Brexit. Não é um cálculo trivial porque as variáveis são muitas. Mas quase todos indicam uma piora considerável da economia britânica. A União Europeia é, na verdade, o fruto de muitos acordos distintos e complementares. O Reino Unido, por exemplo, não adotou a moeda comum, o Euro. No entanto, faz parte do Mercado Único e da União Alfandegária. E são justamente estes os dois pontos fundamentais para compreender.

Ao longo das últimas três ou quatro décadas, os países europeus lentamente assinaram acordos, deram forma a tratados, se reorganizaram politicamente para construir um mercado comum. Isto não quer dizer apenas que não são cobradas tarifas de importação de um dos 28 países membros para o outro. É mais complexo. Há também barreiras não-tarifárias, em geral regulações. Algumas regras de importação são criadas para dificultar acesso ao mercado, abertamente protecionistas. Mas outras servem para proteger a saúde dos consumidores, garantir sua segurança, ou defender o Meio Ambiente. Os 28 membros trabalham com o mesmo pacote de regulações e não podem modifica-las isoladamente. É isto que permite o livre fluxo de bens e serviços.

Imensamente complexo de construir que foi — e como simplifica a economia. Qualquer um que exporte para a Europa precisa se preocupar apenas com um pacote de exigências. Cumprido, tem acesso a um mercado de meio bilhão de consumidores. Dinheiro, produtos e serviços transitam de um país para o outro como se houvesse uma única nação. Este mercado comum construiu acordos bilaterais com quatro países europeus que não fazem parte da UE — Islândia, Noruega, Liechtenstein e Suíça. Não fazem parte, porém mantém a mesma política de tarifas zero.

Há outro aspecto para levar em consideração: as Irlandas. Na Sexta-Feira Santa de 1998, que caiu em 10 de abril, Reino Unido e Irlanda assinaram o Tratado de Belfast, o grupo terrorista separatista IRA depôs suas armas, e após décadas de conflito formou-se a paz. A pequena Irlanda do Norte, de maioria protestante, segue parte do Reino Unido e todos seus moradores têm direito à cidadania britânica, irlandesa ou mesmo ambas. A Irlanda é um país independente. É um delicado equilíbrio este, o da identidade nacional norte-irlandesa. Dentro das famílias as lealdades se dividem. O pleno tráfego de um país para o outro, sem qualquer burocracia ou questionamento, é a parte central do acordo de paz. Só que a Irlanda, parte da União Europeia, não tem autonomia para fazer um acordo de fronteiras em separado com o Reino Unido. Após o Brexit, as fronteiras fecham. E ninguém é capaz de afirmar que os sentimentos nacionalistas norte-irlandeses não possam aflorar novamente.

O ponto central do acordo costurado por Theresa May, e rejeitado três vezes no Parlamento, era a manutenção das fronteiras abertas entre as duas Irlandas. Resolvia o problema do espírito nacionalista, e ao mesmo tempo dava uma saída para que empresas britânicas tivessem um caminho facilitado ao mercado europeu. A linha dura do Brexit, liderada por Johnson, não aceita esta fronteira aberta.

Neste momento, Johnson diz estar negociando com a União Europeia um novo acordo. A oposição o acusa de mentir. Não há pista de qual seja a versão de um Soft Brexit para BoJo.

O futuro

No instante em que o Reino Unido se desligar da União Europeia — se acontecer — haverá tarifas de importação e exportação, barreiras não-tarifárias, regulamentos de garantia de origem novos, mudanças de padrões. O comércio entre os países não ocorre apenas em produtos para o consumidor final. Há também insumos para a indústria — o livre fluxo, por exemplo, de tecidos italianos para a importante indústria de vestimenta inglesa assim ocorre porque existe o mercado único. E há investimentos em empresas, que hoje é igualmente livre de impostos. Tudo mudará, mas em ritmos diferentes.

Tarifas alfandegárias, êxodo de trabalhadores estrangeiros, qualificados ou não, e queda de investimento direto serão mudanças rápidas. Novas regulações por parte do Reino Unido, já não tanto. Tende a demorar mais. Barreiras para o setor de serviços são mais altas do que as para produtos, na UE. E muito da economia britânica está ancorada em serviços.

A perda, pelo Reino Unido, de acesso preferencial ao mercado europeu não será barata. Hoje, a UE representa 47% das exportações britânicas e 48% das importações. O custo para os 27 países membros que sobrarem é menor. O Reino Unido representa 6% das exportações europeias e 5% das importações. Para os europeus, um único acordo bilateral grande, como com os EUA, já substituiria o Reino Unido e traria lucro. Para compensar sua perda, por outro lado, os britânicos teriam de costurar acordos bilaterais de livre comércio com a maioria dos países do mundo. E não seria simples. Afinal, como parte da União Europeia, representa, para exportadores, meio bilhão de consumidores. Solitário, tem a oferecer um mercado de pouco menos de 38 milhões. O custo de negócios também aumenta. Tanto interna quanto externamente, será preciso se adequar a regulamentações distintas.

O mais completo estudo sobre o futuro é assinado por três economistas. A espanhola María Latorre, de Harvard; o japonês Hidemichi Yonezawa, do Departamento Nacional de Estatísticas da Noruega; e a ucraniana Zoryana Olekseyuk, do Instituto Alemão de Desenvolvimento. Levaram em consideração 21 setores da indústria, avaliaram mudanças em produtividade de cada um, incluíram no cenário variáveis como consumo, salários, remuneração sobre o capital, e fluxos de importação e exportação. O trio define um Soft Brexit como a costura, pelo Reino Unido, de um acordo com a União Europeia similar àquele que já existe com a Noruega. Ou seja: alfândega com tarifas zero, porém com diferenças de regulamentação e barreiras para investimento estrangeiro direto. (Veja uma análise dos estudos — PDF.)

No ano seguinte ao Brexit, o PIB britânico teria uma contração de 1,23% no cenário soft e 2,53% no hard. A contração europeia, por outro lado, seria de 0,16% e 0,35% respectivamente.

Mas PIB é uma medida abstrata. As famílias britânicas deixariam de consumir US$ 30,82 bilhões no primeiro ano. No cenário soft. É uma queda de 1,56%. No hard, a queda no consumo seria de US$ 62,7 bi, ou 3,17% menos. Os salários também sofreriam queda — 1,3% ou 2,8%. A queda da exportação seria de 7,5% ou 17%.

As indústrias mais afetadas serão as de vestuário, automobilística, químicos e farmacêuticos, e finanças.

O setor financeiro é muito importante para o Reino Unido e muitos bancos americanos e suíços têm grandes operações em Londres. Dificilmente deixariam a capital, mas a perspectiva de mudanças regulatórias os obrigaria a mover parte gorda do negócio para algum país europeu — talvez a Alemanha.

No conjunto, porém, em número de pessoas atingidas, é no chão de fábrica que mais gente vai sofrer. São setores que empregam mão de obra mais barata, mais velha, menos qualificada e, ironicamente, estão dentre os que menos absorveram estrangeiros. Quem votou pelo Brexit é quem mais sofrerá seu impacto.

Há cenários, noutros estudos, que enxergam um Reino Unido mais pujante economicamente. Em geral, partem do princípio de que o governo promoveria uma total liberalização de sua economia. Livre das sempre difíceis negociações tocadas pela União Europeia, as terras de Sua Majestade a rainha Elizabeth II abririam completamente seus mercados ao mundo. Mas aí há um problema. Os eleitores que desejam o Brexit votaram para aumentar, não diminuir, o protecionismo. Na esquerda pró-Brexit, os políticos são protecionistas. Na direita, se divide. O lado que fala mais alto é trumpiano, populista. Igualmente protecionista. E o premiê BoJo evita sempre que pode qualquer manifestação. O maior líder da campanha pelo Brexit não fala como imagina o Reino quando independente.

Streaming faz indústria da música dar a volta por cima

A indústria da música, que tanto sofreu no começo da virada para o digital, conseguiu se reinventar e começa a colher os frutos da mudança para o modelo de assinaturas. A RIAA, Associação da Indústria de Gravação Americana, publicou um relatório com os resultados do primeiro semestre. A indústria da música nos Estados Unidos faturou US$ 5.4 bilhões na primeira metade do ano. Tudo indica que será a primeira vez, desde 2007, quando CDs ainda eram o principal produto, que a indústria vai faturar mais de US$ 10 bilhões em um ano. O streaming, puxado pelas assinaturas pagas, é responsável por 80% desse faturamento, ou pouco mais de US$ 4 bi. Vendas físicas e downloads pagos continuam perdendo espaço e já rendem menos do que a publicidade dos planos gratuitos de streaming. Curiosamente o vinil cresce e está quase alcançando o CD, seu antigo nêmesis.

Vale ver no gráfico a evolução de vendas de 1973 até 2018. Impressiona como as vendas de CD disparam nos anos 90, atingem o pico em 2000 e depois despencam, levando toda a indústria junto. Surgem os downloads, mas logo são suplantados pelo streaming, que começa agora sua fase de ouro.

E já que o tema é música, anda circulando pelo Twitter esse singelo vídeo de Marvin Gaye cantando seu clássico I Heard It Through The Grapevine, mas com a música e o acompanhamento suprimidos. Sobram a voz e a imagem do grande cantor.

A playlist do casal Obama é a PLAYLIST

No Spotify, a playlist do casal Obama é cheia de surpresas. Rihanna, Drake, The Black Keys e Ella Fitzgerald estão lá.  Vale escutar no fim de semana. E durante a semana também.

Imagens da semana no mundo

Uma batalha de barba e bigode em Los Angeles. Um rinoceronte sonolento na França. Um pôr do sol em Frankfurt. Protestos na Nigéria e Hong Kong. O furacão Dorian. A semana no mundo em 35 imagens.

E a novela do Brexit marcou presença forte na lista dos mais clicados essa semana:

1. Youtube: O momento em que Phillip Lee troca de lugar no parlamento, decretando o fim da maioria dos Conservadores.

2. Cagômetro: Site levado ao ar por opositores do governo.

3. Verge: Light Phone, tão minimalista quanto é possível a um smartphone.

4. Guardian: ao deixar o Parlamento,Theresa May, a ex-premiê derrotada por Johnson,  sorria.

5. Youtube: E a discussão entre Johnson e o líder trabalhista, Jeremy Corbyn. Uma troca de insultos como só o Parlamento Britânico é capaz.

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