Edição de Sábado: Enquanto o Ocidente se distraiu, a China ganhou a corrida do 5G

China, Estados Unidos e Europa têm culturas de negócios diferentes. Seguem lógicas macroeconômicas distintas. E cada um tem igualmente suas características geográficas particulares. Para compreender como a China disparou na frente em infraestrutura de telecomunicações para vencer a corrida do 5G, seguida num distante segundo por empresas europeias, e os EUA foram eliminados no mapa da concorrência é preciso compreender os três. A lógica dos negócios, o pensamento macroeconômico e a geografia. Porque esta é uma guerra na qual o modelo americano saiu derrotado de forma retumbante. Não é uma derrota irreversível. Mas aponta para um momento de fragilidade crítico para os americanos ao longo da próxima década.

Primeiro, aos números frios. Quatro empresas respondem por quase 70% do mercado mundial de equipamento de infraestrutura para a indústria de telecomunicações. Trata-se de antenas, estações radio-base, aquele maquinário que faz com que nossos telefones celulares funcionem. A chinesa Huawei é a número um — tinha 28% do mercado em agosto deste ano e, apesar da pressão americana, deve aumentar esta fatia. Os números são do Dell’Oro Group. Em segundo, da Finlândia, vem a Nokia, com 16%, seguida da Ericsson sueca, com 13%. A ZTE da China é a quarta, e tem 10%. O resto é fragmentado.

Nenhuma empresa americana está neste ramo. Vinte anos atrás, porém, empresas americanas lideravam o mercado — eram Motorola e Lucent. Uma quebrou, outra encolheu. Há vinte anos, a Huawei era uma fabricante de equipamentos de terceira categoria usados na zona rural chinesa. Entender o que aconteceu é fundamental.

Uma tragédia americana

Em 1999, a Lucent Technologies era a maior fabricante do mundo de equipamentos de telecomunicações. Faturou, naquele ano, US$ 38,3 bilhões. Tinha 153 mil funcionários. Havia aberto capital na NYSE apenas três anos antes — o maior IPO da história americana até aquele momento. Tudo em sua história podia ser traduzido em sucesso. E era um sucesso explicável: o mundo vivia duas revoluções simultâneas na área de telecomunicações. O surgimento da internet e o da telefonia celular.

Cada geração da telefonia celular trouxe uma característica nova. A primeira era a própria existência de telefones celulares. Ainda analógicos, permitiam a alguém que caminhasse pela cidade enquanto se mantinha conversando ao telefone. Coisa sofisticadíssima, nascida de ficção científica — quem viveu, lembra. A segunda geração digitalizou o que era analógico e, assim, permitiu o envio de dados — mensagens de texto SMS, também imagens. A terceira, 3G, viabilizava o uso de internet oferecendo uma velocidade mínima. Foi aí que explodiram os smartphones. Mais recentemente, 4G trouxe velocidade suficiente para streaming.

No momento em que a telefonia celular se digitalizou, em meados dos anos 1990, surgiram vários padrões. É sempre assim com tecnologia — o caso emblemático é o do surgimento dos videocassetes com fitas Betamax e VHS. Nestes momentos, há duas formas distintas de lidar com o desafio. Quem banca um padrão e tenta impô-lo ao mercado, quando ganha, tem nas mãos uma fortuna em patentes. Há outro jeito — os concorrentes chegarem em conjunto a um acordo e todos investirem numa mesma tecnologia. Não vão faturar com licenciamento de patentes, mas diminuem o risco de fabricar algo que pode encalhar.

A Lucent apostou num protocolo de celular digital chamado CDMA. As operadoras de telefonia europeias, por sua vez, em conjunto decidiram apostar em um outro protocolo. O GSM. Por conta disto, as concorrentes europeias da Lucent — a francesa Alcatel, além de Nokia e Ericsson — se especializaram em produzir todo seu equipamento neste padrão. Na Europa, as operadoras poderiam comprar das três ao mesmo tempo sem dano às redes que montavam. Tudo era compatível.

Nos EUA, a Lucent tinha dois trabalhos. O primeiro, convencer as operadoras locais de que CDMA era melhor do que GSM. Das quatro grandes operadoras americanas, duas adotaram seu padrão. As outras foram para GSM. Mas o fato de que a Europa tinha ido toda para o outro lado deu um nível de escala a quem construía equipamento GSM. O resultado é que os preços terminavam melhores. A Motorola, que era menor, não aguentou o tranco.

A Lucent se arrastou nos anos seguintes. Em 2006, entrou num processo de fusão com a Alcatel e, em 2016, a companhia resultante foi adquirida pela Nokia.

O mercado de tecnologia aprendeu esta lição. Não faz mais este tipo de apostas. Todos os protocolos e padrões que usamos — entradas USB, tamanhos de HD ou cartão de memórias, linguagens de rede e, sim, 4G ou mesmo 5G — são desenvolvidos por consórcios de várias empresas que combinam para que todos os equipamentos sejam compatíveis. Até os emojis, as carinhas que distribuímos via redes sociais, são combinadas em consórcio. O erro da Lucent, que apostou alto e perdeu feio, não será mais repetido. Mas este foi um caso no qual a agressividade americana nos negócios perdeu para uma tendência mais colaborativa dos europeus. Ao apostar alto num padrão que terminou minoritário no mundo, a Lucent desapareceu.

A surpresa chinesa

No momento em que Lucent e Alcatel se fundiam, em 2006, a perspectiva no ocidente é de que o ramo de equipamento para infraestrutura em telecomunicações havia ficado para os europeus. A ideia de que uma companhia chinesa pudesse ultrapassar qualquer uma destas não era levada a sério.

Mas a China já vivia, neste momento, seu arranque de desenvolvimento, com o governo investindo toda sua energia econômica para implantar uma infraestrutura moderna no país. Foi quando houve o boom de commodities. Gastaram dinheiro no mundo inteiro comprando comida, combustível e material bruto para construção. (O Brasil fez fortuna como nunca. Os chineses ergueram um país.)

Enquanto compravam fora commodities, produziam dentro a tecnologia de seu crescimento. Com um país do tamanho da China para atender, empresas como a Huawei cresceram barbaramente. As três operadoras de telefonia móvel no País do Centro são estatais — China Mobile, China Telecom e China Unicom. E bancos igualmente estatais subsidiaram a compra de equipamento. Ou seja: a Huawei é privada. Mas, tendo atendido às exigências técnicas do Estado e encontrando nele um comprador de peso, a empresa cresceu e se desenvolveu. Ao mesmo passo, o governo investia na formação de engenheiros para que houvesse gente o suficiente para trabalhar em todas as fases da indústria — do desenvolvimento das tecnologias até a implementação das máquinas pelo país.

No caso da tecnologia 5G, o desenvolvimento começou em 2013. Em 2016, já havia testes. As três principais cidades da China já estão para ter redes de telefonia de quinta geração — Beijing, Shangai e Shenzen. O governo decide que fará, paga para fazer, forma profissionais qualificados, e empresas chinesas brigam para ver quem atende melhor. É o capitalismo comunista à moda chinesa. Dificilmente funcionaria noutro país. Mas, com a escala geográfica e demográfica que a China tem, funciona.

A geografia faz toda a diferença.

O pânico ocidental

5G é diferente das gerações anteriores de telefonia celular porque não traz apenas uma inovação. Traz várias. Vai diminuir delay, permitindo que a informação que sai de um aparelho chegue instantaneamente no outro. Permitirá conectar um número de aparelhos na casa dos muitos bilhões. Poupa energia de bateria das máquinas conectadas por ser muito mais eficaz. E oferecerá velocidades 100 vezes maiores do que as do 4G. O Partido Comunista Chinês tem um plano: quer liderar esta tecnologia, no mundo, até 2025. Nada indica que perderá a disputa. E, nessa, a tática de guerra comercial adotada pela Casa Branca de Donald Trump é, provavelmente, a pior que o governo americano poderia adotar.

O negócio do equipamento de infraestrutura para telecomunicações é diferente de outras indústrias tecnológicas. Envolve um maquinário muito caro e não são tantas assim as operadoras de telefonia celular no mundo. Desta forma, uma aposta agressiva que dê errado como a feita pela Lucent põe, de fato, tudo a perder. Mas com o desenvolvimento de tecnologias para o consumidor final é diferente. Os custos para inventar um celular novo são muito mais baixos. Para criar um software, ainda menor. E, nisto, os EUA ainda imperam. Facebook, Microsoft, Google, Apple e Amazon são mostra disso. Muitas startups deram errado no meio do caminho. As cinco gigantes foram startups que deram muito certo porque, nelas, o método americano funciona. Valem, em média, US$ 1 trilhão no mercado. Cada uma das cinco.

5G traz outro jogo para a mesa. Permitir um número imenso de máquinas conectadas à rede, todas gastando muito menos bateria, quer dizer que a internet das coisas poderá explodir. Sensores de todo tipo, utensílios domésticos, qualquer coisa poderá estar ligada à internet. Não apenas celulares. Marca-passos, óculos, lâmpadas de rua, sapatos — a imaginação é o limite.

Quem começar a ligar tudo à internet ao mesmo tempo vai produzir uma montanha de dados. Como os pés que calçam aqueles sapatos se comportam, como funciona o olho do usuário dos óculos, quanta luz é necessária naquele ponto da rua, quão errático é o coração do sujeito com o marca-passo. Estes dados de comportamento, em vastas quantidades, alimentarão algoritmos de inteligência artificial que poderão passar a prever infartos, compreender a relação entre peso e caminhada, descobrir como economizar luz e intuir a necessidade de mudança de grau dos óculos. O comportamento de consumidores em uma loja. Onde economizar bateria num automóvel elétrico. Que comportamento leva a câncer. Sabe-se lá.

Sabe-se, porém, que o boom tecnológico que está para vir nasce do encontro entre 5G e internet das coisas com uma camada de inteligência artificial aplicada em cima. A China é uma ditadura. Não haverá leis para proteger a privacidade de ninguém.

Ter ganho a corrida do 5G num país com mais de um bilhão de habitantes quer dizer que os chineses desenvolverão os novos Facebook, Microsoft, Google, Apple e Amazon. Têm escala de testes e milhões de pessoas começarão cedo a usar 5G. Ter chegado primeiro e com a vantagem da escala de usuários faz toda a diferença. E a decisão dos americanos de impedir a entrada da Huawei no país e retardar seu acesso a outros mercados — como o caso brasileiro — resultará apenas em atraso maior na concorrência digital.

Um último ponto: Este estudo trata com bem mais detalhes do que o breve resumo do Meio o caso da implosão da Lucent. Em PDF.

Quando consórcios perdem a guerra de padrões

Mas nem sempre padrões definidos por consórcio levam a melhor. Às vezes as brigas políticas são tantas e as complexidades do padrão aceito por todos são tantas, que outro padrão, em geral mais simples, ocupa o espaço mais rápido, derrotando o poderoso comitê. Isso aconteceu no início dos anos 90. Durante toda a década de 1980, os maiores fabricantes de computadores como IBM, Digital e Honeywell se uniram às grandes operadoras de telecomunicações europeias para desenvolver um padrão de interconexão entre redes. Ficou conhecido como modelo OSI e por muito tempo foi visto como inevitável. Era ensinado em todas as universidades de engenharia de computação e cursos de especialização em redes. Mas no começo dos anos 90 a Internet explodiu, e o TCP/IP desenvolvido por alguns cientistas, com a simplicidade de apenas 4 camadas dominou o mundo no lugar das 6 camadas propostas pelo OSI. É a língua que faz a internet funcionar.

E enquanto o 5G não chega, ao menos uma startup tenta ocupar o espaço oferecendo uma solução inovadora para a Internet das Coisas. É a Helium Networks, que já captou mais de US$ 50 milhões e lançou no final de outubro sua rede em São Francisco e, essa semana, em Nova York. A empresa vende um roteador para você ligar em sua casa, plugar na Internet e oferecer conexão para outros usuários pela rede Helium. Em troca, você ganha tokens de uma cryptomoeda própria, que pode usar depois para acessar a rede Helium em outros lugares. Em NY já contam com 133 pontos de presença funcionando.

Charging Bull recuperado

Nova York, setembro de 2019. O Charging Bull, o maior símbolo de poder da bolsa de valores de Wall Street, e uma das atrações gratuitas mais visitadas pelo turistas, foi atingido por um caminhoneiro de Dallas. Ele amaldiçoou o presidente dos EUA, Donald Trump, a cada golpe. O ataque deixou um corte de dez centímetros e vários arranhões na base direita da estátua. Logo depois, os danos foram reparados por Peter Ross e Nick Bell, da Polich Tallix, a fundição do norte de Nova York, de propriedade da empresa de fabricação UAP. Os dois deixaram o touro parecendo novo. E embora tenha sido a primeira vez que a estátua precisou de reparos extensivos, ela é vista como um símbolo de Nova York — tanto  bom, quanto o ruim — há décadas. Veja como ela foi recuperada.

Histórias falsas que marcam a História

Não acredite em tudo que você lê ou em tudo que ouve. No livro A Colorful History of Popular Delusions (Amazon), Robert Bartholomew e Peter Hassall descrevem como ‘histórias que carecem de evidências substanciais’ impactam a História. Os autores também avaliam o que o sociólogo Tamotsu Shibutani aponta como ‘notícias improvisadas’, que tendem a se espalhar quando a demanda por informações excede a oferta. Esse déficit de informações ocorre com mais frequência durante guerras e outras crises, o que pode explicar por que alguns rumores tiveram resultados tão dramáticos. Caso das crianças que desapareceram das ruas de Paris, em 1750. Ninguém parecia saber o motivo, e pais preocupados começaram a se revoltar nas ruas. No meio do pânico, houve um boato de que o rei Luís XV estava sequestrando crianças para que pudesse banhar-se no sangue delas (na época, algumas pessoas pensavam que o banho era eficaz contra hanseníase).

Ainda: Outros rumores que marcaram a História.

Leonard Cohen ganha disco póstumo

19 dias antes de morrer, em 2016, Leonard Cohen supostamente lançou seu último disco, You want it darker (Spotify). Mas Cohen gravou uma série de músicas que não conseguiu finalizar para incluir no álbum. Agora seu filho, Adam, que foi produtor do disco, finalizou as oito músicas e lançou o trabalho, Thanks for the Dance, que Adam descreve como uma continuação do anterior. O disco entrou nas plataformas de streaming essa semana (Spotify) e o New York Times conta a história com mais detalhes.

Natal 2019: Trilha sonora

Piano. Uma trilha sonora para dar as boas-vindas para o Natal.

E os links que fizeram sucesso nessa semana interrompida.

1. Healthline: 10 alimentos que melhoram habilidades cognitivas.

2. Estadão: 20 tiras de Calvin e Haroldo para refletir sobre a vida e sobre o mundo.

3. History Lovers Club: 21 fotos antigas de pessoas indo às compras.

4. Motortrend: Fotos do Cybertruck, a nova pickup da Tesla.

5. UOL: 2020 terá 9 feriados prolongados; dicas para viajar muito e gastar menos.

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