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Edição de Sábado: Rui Barbosa já havia percebido

Ele era baixo — e feio. Mal passava do metro e meio de altura, pesava menos de 50 quilos de tão magro, mas tinha uma cabeça imensa. Desde jovem, quando o cabelo ainda era dum castanho bem escuro, tinha largas entradas. Conforme foi envelhecendo, o grisalho de fios finos foi sendo substituído por um branco muito branco que contrastava com a pele morena de caboclo. Como as entradas avançaram com os anos até o cocuruto, foi ganhando uma testa enorme, Rui Barbosa. Sempre teve bigode, o mesmo bigode imenso que parecia ir além do rosto. Nuns períodos o penteava de forma que as pontas curvassem para cima num deslizar plasticamente perfeito. Noutros deixava solto, natural, um amontoado de pelos sobre a boca. Ao nariz, um pince-nez ovalado. O relógio sempre no bolso do colete, a correia pendendo. Foi ficando mais miúdo com a idade e, no entanto, a cabeça grande, o bigode farto, os mesmos óculos pequenos que quase encaixavam na cavidade ocular e escondiam as olheiras, fizeram dele — mesmo num tempo de poucos retratos — um daqueles brasileiros que qualquer brasileiro reconhecia de presto. Tinha um rosto icônico. Mas o conheciam também pela verve. Em suas campanhas eleitorais, uma derrota presidencial após a outra pelas décadas de vida, juntava multidões para assisti-lo em todo o país. Falava com emoção, o sotaque baiano carregado de indignação, e se havia um assunto que o emocionava mais do que qualquer outro era democracia. Nasceu no Império, em 1849, foi deputado provincial e depois geral — estadual e federal —, se elegeu senador em 1890 e daí, se reelegeu consecutivamente até a morte. Foram cinco mandatos — só José Sarney igualou a marca.

Ruy morreu em 1923. Na República. Sem nunca ter vivido na democracia que imaginou.

Foram três as democracias que o velho Ruy desejou para o Brasil ao longo da vida. Desejou três democracias distintas porque é como se a cada passo o Brasil lhe impusesse uma dificuldade nova. É como se quase todos, ao seu redor, buscassem caminhos ligeiramente distintos que pudessem preservar certas características e fazer daquela democracia, ora, um pouco menos democrática. Não que a democracia que Ruy imaginou fosse utópica. Não era. O senador não perdia tempo com sonhos. Conviveu, por ser da mesma geração, com os muitos poetas românticos — dentre eles Castro Alves, seu amigo querido desde a adolescência em Salvador. Mas ele próprio não era um romântico. Nem no estilo de escrever — Ruy seria parnasiano —, muito menos no sentido mais comum do sujeito que sonha sem lá muito pé no chão.

Ruy Barbosa era um pragmático. Antes de ser intelectual, antes de ser jurista, antes mesmo de ser advogado ou jornalista, ele era essencialmente um político.

No Império, a causa que o lançou à vida pública foi a abolição da escravatura. Nesse tempo, Ruy falava de uma democracia racional. Imaginava esse regime baseado num tripé a ser construído em sequência: feita a abolição, seriam necessárias duas reformas. A primeira, eleitoral — a segunda, educacional. Ele tinha na cabeça a ideia de um sistema semelhante ao inglês, em que educação pública de qualidade formaria cidadãos capazes de participar do debate político e escolher seus representantes.

O que talvez não esperasse é que o processo de abolir a escravidão tomaria ainda dezesseis anos desde que se engajou. Demorou até 1888 e essa década e meia o convenceram de que, na monarquia, tudo seria lento demais. Quando enfim veio a Lei Áurea, para ele já estava claro que o Brasil não ia ser nenhuma Inglaterra. Ruy se radicalizara fazia tempo: defendia a mudança de regime para o republicano. E isso não viria sem impacto em sua ideia de democracia — começou a imaginar uma que fosse federativa, agora já inspirado pelo modelo dos Estados Unidos.

Era uma mudança grande na forma de pensar. Ruy gostava de Parlamento e gostava de Judiciário. Via na relação destes dois Poderes a liga que constrói uma democracia. “Com a lei”, escreveu após a proclamação num manifesto, “pela lei e dentro da lei. Porque fora da lei não há salvação. Este é o programa da República.” O Parlamento, representativo das ideias correntes na sociedade, iria elaborar as leis. E o Judiciário, com boa técnica, teria plena autonomia para interpretar estas leis.

Mas deixar o modelo inglês na direção do americano exigia trazer um novo elemento — um Executivo autônomo em relação ao Legislativo. Uma República Presidencialista. Estudioso dos exemplos reais que existiam no mundo, desconfiava da ideia de Repúblicas Parlamentaristas. Lhe parecia um sistema híbrido e ainda sem exemplos concretos de sucesso no tempo, uma aposta arriscada. Ruy enxergou também o risco que o modelo presidencialista trazia: o de um presidente autoritário. Não era um risco qualquer. Os vizinhos sul-americanos davam mostras de que presidentes autoritários brotavam à toa. Aquele era um problema a resolver. Um problema que poucos tinham condição de resolver como Ruy. Afinal, seria ele a escrever o anteprojeto da Constituição republicana.

“Não somos uma federação de povos até ontem separados e reunidos de ontem para hoje”, escreveu. “É da União que partimos, a União é talvez o único benefício sem mescla que a Monarquia nos assegurou.” Já desde o Império, ele desejava um sistema federalista à americana. Um no qual a capital não tivesse tanto poder sobre as províncias — os estados. Mas, diferentemente dos EUA, o Império havia feito do Brasil uma coisa só desde a nascença. Não partia de vários estados independentes que desejaram se unir. Uma vantagem evidente de dar mais poder aos estados era distribuir para evitar um ditador. Só que, num país como aquele Brasil prestes a entrar no século 20, a ideia de federalismo trazia também seus riscos. A consolidação, por exemplo, do poder local das oligarquias regionais. Ruy tinha um quebra-cabeças difícil. Até por isso, desenhou na Carta um modelo federativo e, simultaneamente, tratou de fortalecer o Judiciário. O Supremo Tribunal Federal tinha de ser forte para poder se impor.

Quando jovem deputado, imaginou que abolição, voto e educação resolveriam o Brasil. A abolição foi tão difícil de realizar, que passou a se preocupar em como fazer o desenho da estrutura do Estado — criou uma República Federativa, com Supremo forte e relativo poder para os estados. Não deu certo. Já logo o segundo presidente se tornou um ditador — com ou sem Constituição —, um autocrata daqueles dado a matanças. Mas Floriano Peixoto caiu, veio Prudente de Moraes que aos trancos e barrancos estancou as diversas rebeliões que existiam e a ele sucedeu Campos Salles. Foi este quarto presidente que enfim conseguiu dar alguma lógica, um jogo que trouxesse estabilidade à República prestes a fazer dez anos. Fez o acordo da República dos Governadores, da República Oligárquica. O presidente não se meteria no poder local, deixaria caudilhos e coronéis com suas regiões, seus espaços. Em troca, estes homens fariam de tudo — inclusive forjar os resultados das urnas — para que alternadamente o candidato de Minas e ou de São Paulo fossem eleitos presidentes. A República do Café com Leite.

Ruy havia virado as costas para o Império porque ele se recusava a fazer a federação, a descentralizar o poder. Havia renegado a monarquia porque ela resistia à transformação necessária do sistema eleitoral, do educacional. Quis construir a República mas temeu que o sistema presidencialista fizesse um presidente autocrático e quis impedir que a necessária descentralização do poder servisse para manutenção das oligarquias. Com uma década de vida, entrando no século 20, a República já havia produzido um ditador, reforçado as oligarquias, e assim se afastado por completo de um regime realmente democrático.

O Supremo forte não resistiu ao ditador. O poder descentralizado, federativo, serviu aos senhores, não ao povo. Não havia um Estado organizado a partir do qual democracia brotasse. Não era este o caminho para a democracia. Devia haver outro — uma terceira concepção do regime. A democracia teria de vir do povo. E assim fez-se candidato eterno ao Catete. À presidência.

Chegou em quarto na disputa de 1894. Retirou a candidatura em 1905. Disputou novamente em 1909 — agora contra o Marechal Hermes da Fonseca, alertando ao país naquilo que batizou ‘campanha civilista’ que era perigoso ter, no comando da nação, um militar. Chegou em segundo, com metade dos votos do Marechal. Disputou mais uma vez em 1913. Como estava para perder, pela segunda vez renunciou à candidatura. Em 1919 jogou-se novamente na corrida — perdeu de novo, e morreu antes do pleito seguinte.

Foram, cada uma delas, eleições impossíveis de vencer pois não fazia o pacto, não costurava com os governadores, queria era levantar o povo com seus discursos. Queria instruir sobre a ideia de democracia. Manteve-se senador o tempo todo, ocasionalmente abraçou missões como diplomata. Foi sempre respeitado, sempre ouvido, e sempre derrotado.

Ruy Barbosa entendia o Brasil — entendeu o tempo todo. E o Brasil que ele enxergou, as dificuldades que encontrou para implantar no país uma democracia sólida, continuam de pé. O federalismo é necessário mas não funciona — ajuda na manutenção de oligarquias regionais e o poder central continua ditando as regras. Mais Brasília, menos Brasil. Os mecanismos mudaram — mas a lógica do Centrão como base de apoio de inúmeros presidentes é justamente a de proteger as estruturas oligárquicas, locais, de poder. Da mesma forma, a educação ainda falha continua um entrave. O Supremo ainda é a última barreira para impedir autocratas.

A democracia, ao menos, tem melhor qualidade. É algo que o pai da democracia por aqui não conseguiu viver.

Por Pedro Doria

Então... Professor da Uerj, e da Casa de Rui Barbosa, o cientista político Christian Lynch escreveu sobre Ruy e a democracia. Vai mais a fundo. Em PDF.

Outro que escreveu sobre o assunto foi Leonel Servero Rocha, da UFSC. Também em PDF.

Começa uma reorganização da direita nas redes sociais

Este começo de ano foi de muito trabalho para quem acompanha como a extrema direita se organiza nas redes sociais, na medida em que os sistemas começaram a apertar o cerco contra fake news. Embora o movimento mais significativo até agora tenha sido o banimento do ex-presidente americano Donald Trump por diversas plataformas, o movimento não se restringiu apenas aos EUA. Aqui no Brasil tivemos em janeiro o banimento do Terça Livre pelo YouTube. Já na última sexta-feira, o ministro do STF Alexandre de Moraes ordenou que Facebook, Instagram e Twitter bloqueassem as contas do deputado Daniel Silveira, que está preso por ter feito ameaças ao próprio Supremo.

Desde os primeiros banimentos, a extrema direita tem reagido e tentado se reorganizar digitalmente. Houve primeiro a tentativa de migrar para o Parler, uma nova rede social que caiu no gosto dos seguidores do QAnon nos EUA e por isso entrou na mira dos bolsonaristas. A reação lá fora foi forte demais e com a Amazon cancelando o contrato com o Parler, a rede passou um mês fora do ar e não conseguiu se aproveitar o êxodo. Já o Telegram...

Quem deu o primeiro alerta de que havia algo diferente foi a turma do Aos Fatos. No começo de fevereiro, a equipe publicou uma matéria com análise dos 20 maiores canais de direita no app de mensagens. O estudo mostra que a visualização do conteúdo compartilhado por esses canais teve um aumento de quase 5 vezes em um mês, passando de 27,7 milhões de visualizações em dezembro de 2020 para 134,6 milhões em janeiro deste ano. Analisando uma amostra com as 10 mensagens mais visualizadas de cada canal, Aos Fatos identificou que quase um terço continha informações falsas.

Essa semana foi a vez do Núcleo publicar uma nova análise sobre a migração da direita para o Telegram. Analisaram mais de 600 mil mensagens publicadas por mais de 12 mil pessoas diferentes durante um mês em 15 dos principais grupos de políticos e influenciadores da extrema direita no aplicativo. O maior deles, do presidente Jair Bolsonaro, conta 420 mil membros. O principal uso da plataforma é para organizar a tropa de forma a agir em outras redes. A turma do Núcleo identificou mais de 1.500 arquivos diferentes de mídia (como fotos, áudios e vídeos) e quase 200 mil links diferentes. 44% dos links apontavam para o YouTube, 12% para o Twitter e 5% para o Facebook.

Não surpreende o YouTube figurar de forma tão proeminente entre o conteúdo mais compartilhado. Enquanto o Telegram é usado para coordenar e mobilizar a militância, a rede de vídeos é onde bolsonaristas alcançam novas pessoas. Usar a militância para alavancar a audiência de novos vídeos é parte de uma estratégia que rende frutos há tempos. O mesmo Núcleo, com a ajuda da turma da Novelo Data, publicou no começo do mês uma profunda análise sobre os canais de direita no YouTube e o principal achado do estudo é que o banimento do Terça Livre pouco afetou a máquina bolsonarista na plataforma. Apesar de seu histrionismo, o canal não está nem entre os com mais inscritos, nem entre os com mais visualizações da direita. Por trás está uma estratégia adotada no começo de 2020 de criar novos youtubers bolsonaristas 100% alinhados e não depender mais daqueles já consolidados que possam romper com o bolsonarismo caso discordem de alguma ação. Em maio de 2020 a PF cumpriu uma série de mandados e apreensões relacionadas a canais ligados ao presidente. Apesar de um súbito crescimento nos dias seguintes à operação, nos meses posteriores o crescimento do Terça Livre e outros canais investigados estagnaram enquanto os canais de novos bolsonaristas como Gabriel Monteiro continuaram crescendo com força.

Segue a análise: “A estratégia rendeu frutos a Bolsonaro. Em dezembro de 2020, o canal de Jair Bolsonaro passou o de Nando Moura em base de assinantes para se tornar o segundo mais popular da extrema-direita no Brasil. Tudo indica que Gabriel Monteiro, líder em novos assinantes junto ao canal do programa Pingos nos Is, da rádio Jovem Pan, deverá passar Nando também nas próximas semanas. É por isso que o banimento do Terça Livre do YouTube é uma perda enorme para Allan dos Santos, mas não para Bolsonaro. O presidente perdeu uma das suas linhas auxiliares mais rábicas e antigas, mas, dado o sucesso da estratégia de bombar o próprio canal e ‘criar’ outros youtubers que repetem seu discurso, o impacto é quase nulo.”

Mas essa disputa ainda está nos rounds iniciais. Desde a prisão de Daniel Silveira, com a interpretação de flagrante continuado pelo fato de um vídeo continuar no YouTube, bolsonaristas começaram a limpar seus canais de possíveis vídeos comprometedores. Como conta Guilherme Felitti, fundador da Novelo Data nesse fio aqui. Esse jogo de gato e rato deve seguir se desenrolando pelos próximos meses e anos.

Por Vitor Conceição

Marte e a corrida espacial 2.0

O mês de fevereiro está sendo agitado para Marte. Foram lançadas três missões de diferentes agências espaciais no período de duas semanas. Tem um motivo técnico: as três sondas (uma dos EUA, da China e dos Emirados Árabes) foram lançadas em julho de 2020, quando a distância entre a Terra e Marte era relativamente curta, fenômeno que ocorre uma vez a cada 26 meses. Mas também sinaliza que a corrida espacial 2.0 está acelerando, com uma nova forma e mais atores em jogo. Ou melhor, em órbita.

Essa não é a primeira vez que Marte esteve tão ocupado. Durante a Guerra Fria, a corrida era entre os americanos e soviéticos: os dois países chegaram a lançar, nos anos 60, 12 missões à Marte - quatro dos EUA e oito da União Soviética.

A de agora, no entanto, tem outra cara. E objetivo. O poder espacial tem deixado de ser apenas para atingir marcos científicos. É sobre poder econômico e estabelecer uma base industrial e logística de longo prazo. Os Emirados Árabes, por exemplo, já demostraram interesse em colonizar Marte e com sua sonda Hope, sua primeira missão espacial, que chegou na órbita do planeta no dia 9 de fevereiro, quer que sirva de estímulo para mais pessoas seguirem as carreiras em ciência e tecnologia no país.

Cada nação tem um modelo de desenvolvimento espacial. A China já entendeu que se liderar essa nova era espacial, sua visão também lidera. Na última década, seu desenvolvimento espacial avançou em ritmo acelerado. Esse esforço ainda é amplamente financiado pelo governo e liderado pelos militares, enquanto os EUA, por exemplo, cada vez mais têm contado com ajuda de empresas, como SpaceX. A expectativa dos chineses é que, com essa abordagem, ultrapassem o poder espacial dos americanos até 2045, com uma nova estação espacial, um colônia lunar e o desenvolvimento de uma tecnologia de captação de energia solar em órbita. A China tem investido em tecnologia espacial como impressão 3D, robótica e inteligência artificial já esperando para quando conseguir coletar recursos da Lua e asteróides. Enquanto, para críticos, os americanos ainda estão presos à uma cultura que favorece projetos simbólicos. Por pressão do governo Trump, o programa Artemis, por exemplo, foi acelerado, retirando as partes mais complexas, para conseguir levar novamente o homem, e pela primeira vez uma mulher, à Lua até 2024.

Os EUA, no entanto, não vão ser facilmente superados. Com o robô Perseverance, que pousou na quinta (18) no solo marciano, por exemplo, a NASA quer encontrar evidências de vida no planeta após missões passadas apontarem que Marte era quente, repleto de lagos e rios e que tinha matéria orgânica complexa. A tecnologia é uma grande aliada para essa nova missão: o robô tem 23 câmeras, alguns microfones e instrumentos para coletar evidências e captar imagens e áudios. E ainda, se tudo der certo, o Ingenuity, aclopado ao Perseverance, será o primeiro mini-helicóptero a voar em Marte e pode desbloquear o acesso a regiões de mais difícil acesso para robôs terrestres.

O que é certo é que a corrida espacial entre nações e empresas está só começando. A China agora também está se aproximando de Marte com sua missão Tianwen-1, que chegou na órbita do planeta no dia 10 de fevereiro. A expectativa é que pouse em Marte entre maio e junho. A missão não só vai marcar a primeira viagem bem-sucedida do país para outro planeta, mas uma nova era da corrida espacial.

Em vídeos, detalhes do robô Perseverance e simulação do voo do Ingenuity.

E por falar... Dentro da Perseverance chegou a Marte um pequeno helicóptero chamado Ingenuity. Mas o mais interessante é que o Ingenuity roda Linux, é a primeira vez que o sistema operacional chega a outro planeta.

Por Érica Carnevalli

Quer destruir um filme? Chame um executivo de Hollywood

Ao saber da “morte” de Julieta, o desesperado Romeu consegue um frasco de veneno para se unir a ela e tenta retornar a Verona, de onde fora banido pela morte de Teobaldo. Mas é capturado pelos soldados do príncipe Escalo e vai ser executado na manhã seguinte, diante de toda a cidade. Quando o carrasco já levantava o machado, Frei Lourenço surge trazendo pela mão a falecida, que, como sabíamos estava apenas sedada. Estupefata, a população ouve então a história de amor dos dois. É tão comovente que o príncipe anistia Romeu, e os Senhores Montecchio e Capuleto abençoam a união de seus filhos e selam a paz entre as famílias. Parece ridículo? Claro, mas possivelmente seria o final da história se William Shakespeare tivesse de submetê-la aos executivos de um estúdio de Hollywood.

Desde a década de 1910 até o fim dos anos 1960, o cinema dos Estados Unidos foi moldado pela cultura dos grandes estúdios. Ao contrário da maioria dos países, o protagonista não era o diretor, mas o produtor, e o estúdio tinha a palavra final. Poucos eram os cineastas com vontade forte e renome para impor sua visão artística, ainda mais sob a rígida vigência do Código Hays, a censura autoimposta por Hollywood. Mesmo após a geração autoral do início dos anos 70 – Francis Ford Coppola, Stephen Spielberg, Martin Scorcese e companhia – dar maior poder de fogo aos diretores, os executivos continuam tendo uma grande ingerência sobre o que se vê na tela, e raramente com bons resultados.

O tema voltou à baila no último fim de semana com a divulgação de mais um trailer da versão do diretor Zack Snyder para Liga da Justiça (Youtube), que estreará no próximo dia 18 em streaming na HBO Max. Ao assumir a direção do filme, em 2014, Snyder pretendia fazer dois longas, embora não necessariamente em sequência. Porém, em 2016, a má recepção da crítica a Batman vs. Superman, também de Snyder, fez com que a Warner tolhesse cada vez mais o poder do diretor. Ao término das filmagens, Autumn, filha do cineasta morreu, fazendo com que ele se afastasse da pós-produção, substituído por Joss Wedhon, que já havia “simplificado” o roteiro. Sob orientação do estúdio, Wedhon cortou a maior parte do que Snyder planejara, refilmou 20% das cenas usadas e entregou em 2017 um imenso fracasso de público e crítica, que custou à Warner um prejuízo de US$ 60 milhões. Batman vs. Superman ao menos tinha dado lucro.

A mutilação feita por Wedhon foi tão grande que o ator Ciarán Hinds, que deu voz ao vilão Steppenwolf, disse, após a estreia, não reconhecer na tela o filme de que havia participado. Isso, a reclamação de atores cuja participação havia sido limada e os comentários do próprio Snyder deram início a um movimento para que o diretor tivesse a chance de fazer o filme como ele deveria ter sido. Finalmente, no início do ano passado, a Warner deu sinal verde, e Snyder assumiu a nova pós-produção, além de filmar poucas cenas adicionais em outubro. Inicialmente uma minissérie em quatro episódios, a versão do diretor será um “muito longa” metragem de quatro horas. Será bom? Só vendo, mas será o que deveria ser.

Liga da Justiça é o caso mais recente de interferência danosa do estúdio, mas não é o mais famoso. Em 1982, o diretor Riddley Scott entregou à Ladd Company, pertencente à Warner, aliás, Blade Runner, uma sombria e visualmente espetacular adaptação muito livre da ficção científica Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick. Entrou em cena então a famigerada “plateia de teste”, um grupo de pessoas comuns selecionadas pelo estúdio para assistir e opinar. Detestaram. Acharam sombrio, para baixo, deprimente – exatamente como Scott pretendia – e confuso. A Warner impôs várias mudanças, incluindo uma narração, que o astro Harrison Ford gravou com extrema má vontade, como se constata no trailer original (Youtube), e um final feliz que destoava de toda a narrativa. Um imenso fracasso de bilheteria. Em 1992, Scott lançou uma versão, ainda sob a supervisão da Warner, sem os dois adendos, mas somente 2007 conseguiu mostrar ao público seu “corte final”, hoje considerado um clássico.

Scott voltaria a ser vítima dos estúdios em Cruzada (2005) (trailer no Youtube), do qual a Fox cortou 45 minutos, deixando pontas soltas em diversos pontos do roteiro e privando personagens de sentido. O filme foi bem na Europa e nos países árabes, mas fracassou nos EUA e no Canadá, além de dividir os críticos. Mas desta vez a espera não foi longa. No fim daquele mesmo ano Scott apresentou sua concepção. Segundo um crítico, que escrevera negativamente sobre a primeira versão, “os 45 minutos reinseridos são a peça que dá sentido ao quebra-cabeças.

Nem mesmo lendas do cinema estão imunes a esse tipo de ação. O italiano Sergio Leone (1929-1989), um dos mais influentes cineastas da segunda metade do século XX, viu o que deveria ser sua opus magna, Era Uma Vez Na América (1984) (trailer no Youtube), ser destruída pelo distribuidor dos EUA – aliás, da Warner. Leone dedicou mais de uma década a escrever e filmar a grande epopeia sobre a ascensão da Máfia (judia, não italiana) em Nova York ao longo de 40 anos. A concepção do diretor era de dois filmes de três horas de duração, mas, após negociação com os produtores italianos e americanos, aceitou contar sua história em um longa de 3 horas e 49 minutos, mantendo a narrativa não linear. Essa foi a versão exibida na Europa. Nos EUA, mesma Ladd Company reeditou o filme sem conhecimento de Leone, reduzindo-o a 2 horas e 19 minutos e montando-o em ordem cronológica. Desnecessário dizer, mais um fracasso de bilheteria e uma saraivada de críticas negativas que o mestre italiano não merecia. Hoje a versão europeia é a única oficial, reconhecida como um clássico digno de Leone.

Como foi dito acima, um dos grandes males de Hollywood é a plateia de teste. Quem sentiu isso na pele foi o diretor Tony Scott, irmão mais novo de Riddley. Em 1983 ele dirigiu Fome de Viver (trailer no Youtube), uma adaptação simplificada mas razoavelmente fiel ao livro homônimo de Whitley Strieber. Estiloso e erótico, o filme era estrelado por uma trinca irrepreensível: a deusa Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon. Aqui, spoilers são inevitáveis. Deneuve é Miriam, uma vampira (embora o termo não seja usado nem no livro nem no filme) que coleciona amantes ao longo dos séculos, dando-lhes a vida eterna, mas não a juventude eterna. Quando finalmente, e questão de dias, a velhice e a putrefação os alcançam, ela os guarda, conscientes, em caixões. Bowie é John, o amante envelhecido da vez, e Sarandon é Sarah, a escolhida para sucedê-lo. Mas ela não aceita o dom recebido e tenta se matar. A narrativa termina com Sarah em um dos caixões, e Míriam seguindo seu ciclo eterno.

A plateia de teste simplesmente odiou a “vilã” não ser punida no final. Ato contínuo, a Metro, o estúdio responsável pela produção, fez Scott virar o filme em 180 graus e deixar Míriam encaixotada, com Sarah sendo a nova imortal. Pesou também a ideia de fazer uma continuação estrelada por Sarandon, uma estrela em ascensão. Pena que, como de hábito, o resultado tenha sido um fracasso. Os críticos que não conheciam o livro odiaram o filme; os que conheciam, odiaram o final. De bom, restou a cena de abertura ao som de Bauhaus (Youtube NSFW).

A lista é praticamente infinita: Eu Sou A Lenda, A Bússola de Ouro, Robocop de José Padilha e até o clássico Cleópatra, além de tantos outros. Claro, não existe cinema sem estúdios e produtores, mas será que é tão difícil aceitar que cineastas sabem o que estão fazendo e que a visão deles é mais importante que a opinião de meia dúzia de pessoas comuns numa plateia de teste?

Por Leonardo Pimentel

E os mais clicados de um curta, porém intensa semana:

1. EBC: Como saber se seu CPF foi usado por terceiros.

2. G1: Como confirmar se a vacina de Covid foi realmente aplicada.

3. Poder 360: O que disse Daniel Silveira e o que levou o STF a prendê-lo.

4. G1: Veja o pouso da Perseverance em Marte.

5. Meio: O mundo transformado pelo 5G – A internet das Sojas.

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