Edição de Sábado: Como as democracias sobrevivem?
Lançado em janeiro de 2018, o livro Como as Democracias Morrem fez dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt celebridades instantâneas nos EUA — e também em muitos círculos fora. Ambos professores de Harvard, escreveram para o público de seu país embora não sejam especialistas em política local. Levitsky estuda política latino-americana e, Ziblatt, europeia. Mas, por isso mesmo, conheciam bem algo que era mais distante de seus pares por ali: o processo pelo qual democracias decaem ao ponto de se tornar ditaduras. Livro curto, fácil de ler, objetivo e escrito para ser um alerta. Perante Donald Trump, que naquele janeiro entrava em seu segundo ano de mandato, eles afirmavam que os EUA flertavam com um autocrata que poderia, sim, acabar com a democracia americana. A mais longeva do mundo. E, ao fazer seu alerta local, mostraram ao mundo como há um modelo novo de criação de ditaduras que não passa por golpes de Estado. Seus exemplos incluíam o venezuelano Hugo Chávez, o russo Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán, o turco Recep Erdogan. Até ali, todas as democracias que haviam elegido um autocrata potencial viram o lento desmonte de seus regimes. Mas, três anos depois, Joe Biden, um homem que seguiu uma carreira tradicionalíssima como senador do Partido Democrata, está sentado à mesa do Salão Oval. Os EUA são o primeiro país a resistir perante o avanço do autoritarismo populista. Trump se reelegeu. Cá no Meio, portanto, nos perguntamos: onde foi que a fórmula deu errado? Ou, ora, como as democracias sobrevivem?
A pergunta, por motivos óbvios, interessa diretamente a nós, brasileiros. Afinal, temos o nosso autocrata eleito.
Os argumentos de Levitsky e Ziblatt
Para que uma democracia liberal se sustente a longo prazo é preciso seguir alguns princípios. No topo está um acordo de tolerância: os grupos políticos, à direita e à esquerda, consideram os adversários que disputam o jogo democrático como legítimos. Desta forma, aceitam os resultados de eleições livres, mesmo quando perdem.
O regime começa a perder estabilidade quando esta tolerância se vê ameaçada. E isto, em geral, ocorre desde antes da aparição do líder autoritário.
No caso americano, a crise vem dos anos 1960. Conforme o país começou a se tornar mais diverso, o Partido Republicano não acompanhou a mudança. A diversidade social tomou muitas formas. Uma, evidente, é a étnica, com aumento da população latina e o fim da segregação que antes era legal de negros. Mas houve também a ascensão do feminismo, e com ele maior representatividade de mulheres em todas as esferas, inclusive a política. Assim como houve, mais recentemente, ampliação dos direitos da comunidade LGBT+.
Ao se isolar como uma legenda de brancos protestantes, o Partido Republicano passou a representar um percentual cada vez menor da população. E isto gera pressão: como se ganha eleições quase se tem sempre um número menor de eleitores? A tendência é de que o pacto de mútua tolerância seja rompido. Nos EUA, políticas para mudança de regras eleitorais de forma a dificultar o voto de negros, por exemplo, se tornaram mais comuns após os anos 1990. Como lá o voto é distrital, o mapa dos distritos onde são eleitos deputados também foi manipulado na década seguinte. Novos distritos foram desenhados de forma a dividir comunidades com predominância de eleitores democratas e concentrar as com muitos republicanos. Para, assim, artificialmente aumentar as possibilidades de eleger gente de um partido mais do que do outro.
Sinais de que este pacto foi rompido, também no Brasil, estavam claros já na eleição presidencial de 2014. A agressiva campanha entre PT e PSDB, no segundo turno, dava mostras disso. Por um lado, o discurso do PT se tornou cada vez mais populista — um nós contra eles de povo contra uma elite de “gente branca de olhos azuis”. Por outro, veio o questionamento pelo candidato tucano do resultado da eleição. Nada do tipo havia ocorrido nos pleitos anteriores. A mútua tolerância se perdeu, e o mero aceitar de resultados eleitorais se tornou difícil.
Mas não é apenas o fim da mútua tolerância e o não reconhecer eleições livres que faz democracias derreterem. Este rompimento se dá por muitos caminhos e começa nos Três Poderes. Executivo, Legislativo e Judiciário têm meios pelos quais podem inviabilizar o funcionamento uns dos outros. Só que não o fazem. Não normalmente. Além disto, não só com base em leis se sustenta uma democracia — também há normas que, mesmo não escritas, são seguidas por gerações. Normas que garantem um funcionamento fluido, e respeitoso, do regime.
Em essência, faz parte do pacto que, mesmo quando controlados por partidos distintos, os Três Poderes vão cooperar. O Parlamento não vai inviabilizar o governo de aprovar suas indicações para os vários cargos da administração, por exemplo. O Judiciário não sairá bloqueando todas as ações dos outros dois. Assim como o Executivo não governará por decretos e acatará as decisões tomadas pelos outros. A cooperação entre situação e oposição, assim como entre os Três Poderes, é fundamental em algum nível.
No entorno de tudo isto está a mais grave das ferramentas da atual deterioração democrática: o jogo duro constitucional. É quando medidas legais que deveriam ser raramente usadas se tornam ferramentas de ação política para inviabilizar um outro Poder ou o adversário político. Hugo Chávez, por exemplo, ampliou o número de juízes na Suprema Corte venezuelana para ter maioria. Os republicanos se recusaram por um ano a avaliar um candidato à Suprema Corte indicado pelo presidente Barack Obama e esperaram pela possibilidade de uma vitória eleitoral para só avaliar, então, um indicado de seu grupo.
Há, na história recente do Brasil, exemplos destes caminhos de deterioração. É o caso, por exemplo, do Mensalão. A compra sistemática do voto de parlamentares não é só corrupção. É, também, um meio de bloquear a ação de outro Poder. Da mesma forma, procuradores de Curitiba e o juiz Sérgio Moro, se sabe por conta da Vaza Jato, discutiram sobre como dificultar os caminhos eleitorais do PT. É um exemplo de jogo duro constitucional. Assim como o próprio impeachment da presidente Dilma Rousseff é interpretado por Steven Levitsky como jogo duro constitucional. Legal. Mas usado como arma de neutralização política de adversários, assim como um ato de vingança pessoal do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha.
Como democracias morrem
Até aí, o que se tem é uma democracia funcionando mal, não necessariamente o caminho para sua morte. Mas, no momento em que o ambiente está desarrumado o suficiente, abre-se espaço para a chegada do autocrata. Em tempos passados, seria por meio de um golpe de Estado — foi assim no período da Guerra Fria. Hoje vem com o disfarce do processo democrático. É onde entram Donald Trump e Jair Bolsonaro.
A primeira instituição a falhar são os partidos políticos e seus líderes. São a primeira camada de proteção do regime. Em democracias, tradicionalmente, são os partidos que escolhem quem devem ser seus candidatos, são eles que decidem para quem abrir espaço. Quando acolhem extremistas ou autoritários, dão a eles legitimidade. Por conta do processo das eleições primárias, os líderes do Partido Republicano não tiveram como impedir a seleção de Donald Trump como presidenciável. Mas poderiam tê-lo condenado. Com raras exceções, casos do ex-presidente da Câmara Paul Ryan e do senador Mitt Romney, poucos o fizeram. Assim como muitos, após sua eleição, se converteram em dedicados trumpistas.
No caso brasileiro, em que a maior parte dos partidos são pouco ou nada consistentes, esta camada é naturalmente mais frágil. Mas lideranças políticas há. E, ainda assim, já na eleição, inúmeros políticos se aproximaram de Bolsonaro em busca de sua popularidade.
O populista autoritário surge quando a democracia já desandou. Por ser demagogo e, de alguma forma, carismático, é capaz de reunir muitos votos, ao menos no primeiro momento. Por isso, ele se torna tentador para políticos tradicionais. No caso de um partido como o Republicano, que representa um conjunto cada vez menor de eleitores, no primeiro instante o populista é uma esperança.
Levitsky e Ziblatt listam as características do autocrata potencial para que seja fácil reconhece-lo. Ele é populista: ou seja, seu discurso é sempre de nós, o povo, contra uma elite que governa contra os interesses do povo. Mas, no populismo, ele dá um passo além. Ele trata toda a oposição como inimiga do povo. Um populista radical. Não raro, fala da necessidade de prender os principais líderes da oposição. Sempre ataca jornalistas e a imprensa livre — são, igualmente, inimigos do povo e sua atuação, a acusação é sempre a mesma, é movida por interesses políticos da elite. Todo protesto popular que não seja de seu grupo é considerado ilegítimo. Acompanha o modus operandi do autoritário a defesa da restrição de direitos civis, de direitos humanos, principalmente contra grupos particulares — podem ser étnicos, podem ser políticos, podem ser outras minorias. LGBT+, mulheres, o que for.
Embora um ou outro líder possa ter algumas destas características, é raro que tenha todas. Donald Trump e Jair Bolsonaro as têm.
Quando chegam ao comando, contando com a ajuda de políticos tradicionais que sempre acreditam que vão controla-los, o primeiro passo do autoritário é cooptar ou atacar as instituições que possam impor limites ao seu poder.
Ao demitir o diretor do FBI que tentou cooptar mas não conseguiu, Donald Trump estava fazendo isso. Assim como o fez Jair Bolsonaro, ao mudar o comando da Polícia Federal. Donald Trump encontrou no procurador-geral da República William Barr alguém que atacava seus adversários e segurava investigações contra o presidente. Jair Bolsonaro encontrou, em Augusto Aras, o mesmo. Durante seu mandato, Trump nomeou três ministros da Suprema Corte — algo raríssimo de ocorrer. Presidentes, em geral, só conseguem nomear um ou dois. E pôde contar sempre, no Senado, com uma barreira de proteção.
Mas, ao fim, ele seguiu a fórmula e fracassou. Chamou a oposição de inimiga do povo e tratou de forma igual a imprensa. Teve o apoio de políticos tradicionais, em Washington. Rompeu todas as normas que quis. Sacou os árbitros que conseguiu. O passo seguinte, de acordo com o processo descrito pelos professores, seria se reeleger e assim, com a confirmação eleitoral de que era aprovado, começar a mudar as regras de como funciona a democracia americana para dissolvê-la.
A confirmação eleitoral não veio.
Como democracias sobrevivem?
Por quê?
A imprensa americana não se intimidou. Embora no início tenha demorado a se reposicionar, quando percebeu que não poderia tratar um presidente que ataca as instituições democráticas como normal, redefiniu seu modo de atuação. Começou a falar com clareza quando o presidente mentia, a listar suas mentiras. Não disfarçou. Tratou-o como era: um potencial autocrata.
Não foi só a imprensa: durante a eleição, ao coibir mais e mais espaço para os extremistas, também as redes sociais tiveram um papel importante de não normalizar o extremismo. Custaram mais a compreender que ação era importante, mas agiram.
O Partido Democrata não agiu como se fosse uma eleição normal. Dentro da legenda há uma ala liberal e uma social-democrata, mais à esquerda. A esquerda está cada vez mais forte. É representada por nomes cada vez mais conhecidos e com mais popularidade do que em anos passados, como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren, e a deputada Alexandria Ocasio-Cortez. Ainda assim, quando ficou claro que o liberal Joe Biden assumira à frente da corrida eleitoral, os líderes todos do partido se uniram. Fizeram campanha pesado. Compreenderam que estava em risco a própria democracia e levaram aos eleitores esta mensagem, em uníssono.
A oposição agiu unida, apesar de suas diferenças.
Não foi só a oposição que agiu com dignidade. Se Trump conseguiu cooptar políticos republicanos em quantidade na esfera nacional, nos estados foi diferente. Quando o presidente atacou o processo eleitoral, acusou fraude, e tentou reverter à força o resultado, encontrou resistência de políticos de seu partido. No Michigan, no Arizona e, principalmente, na Geórgia. No caso do Michigan, foram deputados e agentes eleitorais republicanos os pressionados. No Arizona e Geórgia, governadores e secretários de Estado do partido. Se mantiveram irredutíveis e não cederam, assumindo um risco eleitoral grande para eles próprios. Eleitores trumpistas podem retribuir nas urnas e tirá-los dos cargos. Ainda assim, agiram dentro das regras.
A Geórgia, um estado que nas últimas décadas enrijeceu as regras para quem pode votar ou não, dificultando acesso às urnas dos mais pobres, merece uma menção especial. Lá, nos últimos anos, o conjunto de eleitores foi ampliado, com acesso ao voto facilitado. Foi na contramão da tendência de outros estados do sul republicano, e assim deu a Joe Biden uma vitória eleitoral que poucos esperavam.
Por fim, os eleitores foram às urnas num nível que há muito não era percebido. Imprensa, redes sociais e líderes partidários foram em conjunto coadjuvantes deste processo — ele terminou com votos nas urnas, tirando Donald Trump da presidência. Após a derrota, tentou de tudo. A democracia americana sobreviveu.
Não há outro caminho que não este para que uma democracia sobreviva: o próprio caminho democrático. A compreensão por parte de imprensa, redes, líderes políticos e eleitores de que o momento é grave e que reação é necessária. Em uma só voz.
Por Pedro Doria
Como a poesia roubou a cena na posse de Biden
Quem poderia imaginar que a grande sensação da posse de Joe Biden como 46o presidente dos Estados Unidos fosse ser uma jovem poeta? Pois é. Amanda Gorman e seu poderoso poema The Hill We Climb (Assista) dominaram a conversa nas redes sociais durante o evento, segundo um estudo da NewsWhip. As 4 matérias que mais viralizaram nas redes sociais foram todas sobre Gorman, que em média teve 4 mil interações para cada artigo que a citava. Quase quatro vezes mais do que os Obamas os segundos colocados. Deixou bem para trás nomes como Trump, Lady Gaga, Jennifer Lopez e o próprio Biden. Em menos de 24 horas, o perfil de Gorman no Instagram passou de cerca de 56 mil seguidores para mais de 25 milhões. E seu livro pulou para líder na lista de mais vendidos tanto da Amazon como da Barnes and Noble.
Convidar um poeta para ler um poema na posse presidencial é uma recente tradição de presidentes do partido democrata. Começou com John Kennedy, que para sua posse convidou Robert Frost para recitar. Frost, então já com 86 anos, escreveu um poema inédito chamado Dedication especialmente para a ocasião, mas na hora de recitar, o vento e o reflexo do sol foram demais para sua avançada idade e ele não conseguia ler o poema. Richard Nixon, candidato derrotado por Kennedy na eleição, ainda tentou ajudar, segurando seu chapéu para fazer uma sombra sobre a folha. Mas não foi suficiente. Frost então desistiu do poema novo e recitou de cabeça seu famoso The Gift Outright. Veja. Bill Clinton resolveu repetir Kennedy e convidou Maya Angelou para ler In the Pulse of the Morning na posse de seu primeiro mandato e Miller Willians que leu Of History and Hope em sua posse após a reeleição. Obama, por sua vez, escolheu Elizabeth Alexander com Praise Song for the Day; em sua primeira posse e Richard Blanco com One Today na posse de seu segundo mandato.
Mas não é de hoje que a leitura de um poema causa comoção e domina a repercução de algum evento. Na segunda noite da Semana de Arte Moderna de SP em 1922, Ronald de Carvalho subiu ao palco do Theatro Municipal de São Paulo para recitar o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, que por problemas de saúde não pode estar presente. O poema, uma ácida ironia com os poetas parnasianos, que dominavam a cena na época, foi recebido com vaias, gritos e patadas pelo público, que interrompeu a sessão e acabou marcando o fim de uma era cultural. Infelizmente, ao que se saiba, não há registros gravados do corrido, mas em 2012 o ator Eduardo Tornaghi leu o poema em um sarau em comemoração aos 90 anos da Semana de Arte Moderna. Já em 1955, um grupo de escritores e poetas se reuniu na pequena livraria City Lights em São Francisco para uma noite de poesia. Allen Ginsberg, então com 29 anos, começou a ler um longo poema, chamado Howl, enquanto lia de forma cadenciada, o público gritava e o encorajava. Nasceu ali o que veio a ser conhecido depois como o movimento Beat, que iniciou uma revolução de costumes nos Estados Unidos. Também não houve gravação, mas o Reed College preservou uma gravação em audio de Ginsberg lendo o poema no ano seguinte.
E para mostrar de vez que poesia não é apenas aquela matéria que se estuda na escola. Separamos mais dois exemplos que valem ser curtidos com calma: Neste vídeo, o ator e diretor Antonio Abujamra, lê o Poema em Linha Reta, de Alvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (Youtube). Apesar de escrito há cerca de um século, parece descrever perfeitamente como nos sentimos navegando pelas redes sociais, em que todos os conhecidos são campeões em tudo. Neste outro, o poeta e grande figura, Mano Melo, recita seu conhecido Madonna, com todos os impropérios e palavrões a que tem direito (Youtube).
A verdade é que em tempos difíceis, há de ter poesia.
Por Vitor Conceição
Quando a política atropela a música
Desde que surgiram as parcerias musicais, apareceram também as regras não escritas mas socialmente aceitas para que elas se desfaçam. São fatores ligados à própria atividade dos parceiros. Diferenças artísticas, desgaste do convívio constante, brigas por dinheiro, Yoko Ono, abuso de substâncias químicas, chifre... enfim, o de sempre. Mas, eventualmente, assuntos diversos, opiniões e posições que não são diretamente ligadas à arte, acabam desgastando a parceria a ponto de torná-la inviável.
Foi o que aconteceu há exatamente uma semana, quando os cantores Zé Renato e Lourenço Baeta anunciaram seu desligamento do Boca Livre. Foi um choque. Além de ter participado da fundação do quarteto em 1978, Zé Renato é autor de seus dois primeiros e maiores sucessos, Toada (Youtube) e Quem Tem a Viola (Youtube). Baeta, que já colaborava como compositor, entrou em 1980, substituindo Cláudio Nucci. Na quarta-feira foi a vez de outro fundador, David Tygel, pedir o boné. O motivo foi o mesmo: divergências políticas e sociais com Maurício Maestro, quarto integrante original, dono da marca Boca Livre e apoiador fervoroso de Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho.
Não foi o primeiro grupo brasileiro a se desintegrar por divergências políticas, mesmo antes do atual cenário de polarização política. Em 2012, o Garotos Podres, uma das mais importantes bandas do cenário punk paulista da década de 1980, literalmente rachou. De um lado, o vocalista José Rodrigues Mao Júnior e o guitarrista Cacá Saffiotti; do outro, o baixista Michel “Sukata” Stamatopoulos e o baterista Leandro Caverna. Sukata fala em outras desavenças, mas Mao afirma que a questão era política. O grupo nasceu com uma postura de esquerda, exposta em canções como Papai Noel Velho Batuta (Youtube), mas, segundo Mao, Sukata e Caverna foram adotando posições cada vez mais conservadoras. Após a ruptura, houve uma briga judicial pelo nome da banda. Hoje, Sukata defende o bolsonarismo, condena o aborto e a “ideologia de gênero”, enquanto Mao voltou a se apresentar com o nome Garotos Podres e gravou um compacto digital independente (mais punk, impossível) em 2018.
Só que esse tipo de encrenca não é exclusividade nossa nem de tempos de polarização tão intensa. Em 1980, o apoio a um político abateu em pleno voo The Eagles, uma das mais populares bandas de rock dos EUA, responsável pela imortal Hotel California (Youtube). As coisas já não estavam boas no ninho, é verdade, quando o grupo decidiu, por pressão do guitarrista Glenn Frey, encerrar a turnê do disco The Long Run com um show em apoio ao senador democrata Alan Cranston, que tentava a reeleição pela Califórnia. Antes da apresentação, Cranston entrou no camarim para cumprimentar os músicos e agradecer o apoio, ao que o outro guitarrista Don Felder respondeu: “De nada, senador... eu acho.” Frey reclamou, e os dois passaram o show se hostilizando. Foi preciso mais de uma década para que a banda subisse ao palco de novo.
Mesmo quando não é o fator determinante para a ruptura, a política contribui. Paul Simon já queria matar Art Garfunkel por este ter dedicado mais tempo às filmagens de Ardil 22 que à gravação do álbum Bridge Over Troubled Water (1970). Garfunkel não querer que a canção política de Simon Cuba Si, Nixon No (Youtube) entrasse no disco foi só a cereja do bolo – o álbum acabou saindo com uma música a menos que o previsto, e a dupla se separou em seguida.
Mas a política não é o único elemento desagregador de uma parceria. Às vezes pesa também a religião. Quando a fé (ou a ausência dela) já está estabelecida desde o início, é mais fácil. No U2, o ateu Adam Clayton convive bem há décadas com os católicos Bono, The Edge e Larry Mullen Jr. – e olhe que os primeiros discos deles eram quase homilias. O problema é quando as regras mudam no meio do caminho.
Por exemplo, fundado em 1970, o Kansas era quase um paradoxo, um grupo de rock progressivo dos EUA – na época algo tão raro quanto um comunista no Alabama. Em 1976, estourou com o disco Leftoverture e o sucesso Carry On Wayward Son (Youtube). Outro hit, Dust In The Wind (Youtube), do ano seguinte, parecia indicar um futuro brilhante. Até que, no início dos anos 80, dois fundadores, o guitarrista Kerry Livgren e o baixista Dave Hope, se converteram ao cristianismo neopentecostal e decidiram mudar a linha temática da banda. O vocalista Steve Walsh foi substituído pelo também evangélico John Elefante (juro, esse é o nome mesmo), e o público foi pendendo o interesse.
Às vezes esse tipo de mudança radical pode levar até a “rupturas póstumas”. No fim da vida, Baden Powell (1937-2000), um dos maiores violonistas que o Brasil produziu, tornou-se evangélico e abandonou parte importante de seu repertório, em particular os “afrossambas” compostos com Vinícius de Moraes (1913-1980). Canto de Iemanjá (Youtube) e Canto de Ossanha (Youtube), por exemplo, foram banidos. “Não falo saravá, porque é um louvor a satanás”, disse Baden em uma de suas últimas entrevistas.
Alguns rompimentos são superados, outros não. Mas a música, o que realmente importa, permanece.
Por Leonardo Pimentel
As polêmicas da tecnologia de reconhecimento facial
Lá em junho com os protestos antirraciais nos EUA e pelo mundo, algo que parecia sair de concreto era a regulamentação das tecnologias de vigilância, mais especificamente de reconhecimento facial. Considerada uma das tecnologias mais polêmicas atualmente, legisladores democratas apresentaram um projeto de lei que proibiria o seu uso pelas autoridades federais. A pressão nas ruas também chegou no Vale do Silício. A IBM, Amazon e Microsoft pausaram ou limitaram o acesso das autoridades a seus próprios programas de reconhecimento facial. Porém a situação já começou a mudar.
Em junho, termina a paralisação prometida pela Amazon e é esperado que as big techs aumentem ainda mais o lobby no Congresso americano pela tecnologia. As empresas defendem maior regulamentação, mas não proibições. E quando viram o Capitólio ser invadido por apoiadores de Trump, ficou claro para as autoridades uma de suas vantagens: as mais de 100 prisões feitas até o momento foram com ajuda de um banco de mais de 100 mil imagens do dia.
Porém, o receio dos críticos e especialistas é que o uso dessa tecnologia já está indo para além das autoridades. O site Faces of the Riot, por exemplo, foi aberto ao público por hackers dias depois da invasão do Capitólio com imagens de seis mil invasores coletadas a partir de vídeos postados na rede social Parler. A ideia é que os usuários possam ajudar o FBI a identificar os invasores. Muitos produtos com essa tecnologia também já estão nas mãos dos usuários. Celulares são desbloqueados com reconhecimento facial, por exemplo. E o Facebook já identifica e sugere marcar seus amigos em fotos.
O que as empresas não deixam claro é como esses dados são usados ou até mesmo coletados. Enquanto para obter a impressão digital exige a cooperação da pessoa a ser identificada, o uso da imagem é uma tecnologia bem mais invisível e não demanda cooperação nem consentimento. Em 2016, mais da metade dos americanos estavam em algum banco de imagem. A Clearview AI, por exemplo, criou uma ferramenta de reconhecimento com base em um banco de mais três bilhões de imagens tiradas de redes sociais, como Facebook e Instagram. Com a invasão ao Capitólio, o uso do seu software, usado por empresas e órgão públicos, cresceu 26%. Já a Apple tem usado o seu recurso de marcação do aplicativo Fotos para alimentar o novo recurso de reconhecimento facial em câmeras de segurança habilitadas para HomeKit e campainhas inteligentes. Os rostos que aparecem na câmera podem ter referências cruzadas com o banco de dados do aplicativo para que você seja notificado quando, por exemplo, um amigo específico estiver batendo à sua porta. O mesmo tem sido feito com o Google Nest e até smart TVs.
Mas a pressão de reguladores por enquanto só está em como os órgãos públicos manuseiam esses dados. Não é a toa. O seu uso tem resultados diretos nos direitos dos cidadãos. O maior estudo nos EUA sobre o assunto apontou que os rostos afro-americanos e asiáticos eram 10 a 100 vezes mais falsamente identificados do que rostos caucasianos. Isso acontece porque normalmente os algoritmos são alimentados com mais imagens de pessoas brancas. O sistema também teve mais dificuldade em identificar mulheres do que homens.
Mesmo com bancos de dados mais diversos, a possibilidade dessa tecnologia ser aplicada para políticas autoritárias também fica claro. Um estudo na China foi criticado ao criar um sistema para separar etnias no país. Os pesquisadores tinham consentimento dos participantes, mas o sistema poderia ser usado para perseguir a etnia uigur, por exemplo, que tem sido detida pelo governo chinês. A China é um dos países que mais utilizam reconhecimento facial — só no ano passado, mais de 100 cidades compraram sistemas de vigilância.
O Brasil não tem ficado para trás. Desde 2019, o interesse de autoridades por essa tecnologia tem aumentado. No mesmo ano, foi realizada a primeira prisão com base em reconhecimento facial. No final de 2019, já tinha sido identificadas mais de 150 e nos casos onde havia informações, mais de 90% das pessoas eram negras, a maioria presas por crimes sem violência.
Com o debate sobre privacidade, monopólio das big techs e direitos civis em alta, a discussão sobre o uso de reconhecimento facial está longe de acabar. Legisladores americanos já falaram que vão voltar a pressionar por novas regras. Por aqui, também é necessário — a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), apesar de ter sido um avanço em termos de proteção de dados pessoais, não estabeleceu parâmetros para a área de segurança pública.
Então... Um TED Talk de Joy Buolamwini, pesquisadora do MIT, sobre vieses em algoritmos. Assista.
E um outro sobre como o reconhecimento facial tem avançado entre as empresas. Veja.
Por Érica Carnevalli
E fechando a edição, os mais clicados da semana:
1. Folha: Imagem de Bernie Sanders sentado com frio durante a posse de Biden vira meme nas redes.
2. O Globo: Rio registra recusa de profissionais de saúde em tomar a vacina contra Covid-19.
3. Washington Post: Infográfico interativo – Quem estava presente na posse de Biden.
4. G1: Entenda os impactos do compartilhamento de dados do Whatsapp com o Facebook.
5. Atlantic: Galeria de fotos da posse de Biden.