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Lula, terrorismo e o lugar do Brasil no mundo

No café da manhã com o presidente, a live semanal que faz do Palácio do Planalto, Lula disse o seguinte:

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“Quanto dinheiro é jogado fora em uma guerra? Quantas vidas? Quanto uma bomba impacta a questão climática? Temos que garantir a paz e acabar com a fome no mundo, isso sim. Não acho correta a resposta de Israel ao ataque terrorista do Hamas. O ataque às crianças e mulheres inocentes se assemelha ao terrorismo. Se eu sei que está cheio de criança em um lugar, pode ter um monstro lá dentro, não se pode matar as crianças para matar o monstro. A guerra precisa acabar. A gente quer a criação do estado Palestino. A solução de dois estados que o Brasil sempre defendeu”.

Tem muitos recados nessa fala. E ela é bastante reveladora do que Lula está entendendo sobre a guerra e sobre seu papel. Acho que vale a pena a gente dissecar o que tem nela.

Na véspera, ao recepcionar os brasileiros finalmente resgatados da Faixa de Gaza, Lula já havia comparado a resposta de Israel a terrorismo.

Sua declaração gerou reação da Confederação Israelita do Brasil, a Conib, que a chamou de “equivocada e perigosa” e afirmou que “desde o começo dessa trágica guerra, provocada pelo mais terrível massacre contra judeus desde o Holocausto, Israel vem fazendo esforços visíveis e comprovados para poupar civis palestinos”, inclusive avisando a população da iminência de ataques.

Lula também já havia dito que o que está acontecendo em Gaza é um “genocídio” e, de novo, sofreu retaliações pelo uso do termo.

É uma discussão que está acontecendo na academia e na diplomacia, sem um consenso claro ainda. Há muitos especialistas dizendo que, tecnicamente, não dá para classificar assim os eventuais crimes contra a humanidade que estejam acontecendo.

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi ao X dizer que “Não estamos diante de uma disputa retórica sobre os conceitos de terrorismo ou genocídio. Estamos diante de uma tragédia que abate famílias inteiras, principalmente crianças”.

Só que Lula é um chefe de Estado. Retórica importa. É essencial que ele escolha muito bem as palavras pra que um equívoco não custe um desgaste desnecessário nas relações com outros países.

Isso posto, também parece importante para Lula fazer críticas, sem se amedrontar, a Israel, assim como fez à Ucrânia. Novamente, no caso da guerra com a Rússia, Lula também exagerou retoricamente e teve de modular depois a forma de apresentar suas ressalvas.

Mas o posicionamento é parecido: não se alinhar automaticamente ao lado defendido por Europa e Estados Unidos e tentar se apresentar, mesmo assim, como um agente pacificador. Ao manter um certo distanciamento crítico dos atores dos conflitos, Lula parece crer projetar ao mundo a imagem de autonomia, de grandeza, que sempre perseguiu.

Cá entre nós, não está claro ainda se isso pode funcionar. O Brasil tem tido, sim, algum protagonismo, especialmente se compararmos com os quatro anos de pária que fomos sob o ex-presidente. Só que os instrumentos que Lula tem hoje pra deixar o país forte internacionalmente são muito diferentes e, talvez, ainda mais complexos do que foram em seus governos anteriores. Aquela fala dele no café da manhã traz alguns dos caminhos possíveis.

A gente está vendo como essa guerra entre Israel e Palestina vem turbinando polarizações. Aqui no Meio, isso nos preocupa. No nosso jornalismo, sempre procuramos trazer as visões dos dois lados do conflito. E nas colunas de opinião, como esta aqui, temos vozes com diferentes perspectivas, mas com absoluto respeito pelos fatos. Pluralidade, com profissionalismo, é o que nos move. Se isso é o que te move também, assine o Meio.

Lula nunca escondeu seu desejo de deixar um legado na sua atuação internacional. Sempre falou com muito orgulho das gestões anteriores e de como, pela primeira vez, o Brasil era ouvido no debate com outros países — claro que com alguma dose de condescendência das potências, né?

Dois cartões de visita que Lula usava pra ser o “cara”: o combate à fome aqui e uma generosa injeção de recursos em nações onde ele queria aumentar a influência, notadamente do Sul global.

Um deles está contemplado ali na fala do presidente. O problema da fome não melhorou em nada no mundo e, em muitos lugares, como aqui mesmo, piorou muito com a pandemia. Mas já não parece comover tanto a comunidade internacional diante de outras crises globais como a própria pandemia foi, como as crises migratórias (motivadas, também, pela fome), como a escassez de chips, etc. Em termos de soft power, esse “ativo” de saber combater a fome, que Lula de fato tem, perdeu o ar novidadeiro que já teve. É uma pena.

Quanto à injeção de recursos, bem… vários elementos internos impedem que Lula sequer sonhe em empreender algo assim. A começar pela pura e simples falta de recursos, né? A economia brasileira está com dificuldade, tem discussões de meta de déficit, inflação, juros, industrialização, reforma tributária — o cenário não está propício para que se decida botar dinheiro em outro país.

Teve também uma Lava Jato no caminho. E a forma principal pela qual Lula injetava dinheiro em países da África e da América Latina era com obras subsidiadas das empreiteiras brasileiras. Não dá mais pra fazer isso.

Então, que caminhos existem pra um presidente de esquerda brasileiro tentar deixar uma marca nas relações internacionais? Lula o reconhece e piscou pra ele na fala sobre a guerra. É a Amazônia. É o clima. É a liderança ambiental que o país pode exercer.

Essa é sem dúvida alguma a frente em que o Brasil mais pode brilhar — e, com esse brilho, atrair apoios e recursos internacionalmente, como já vem fazendo em boa medida. Há alguns entraves pra que essa bandeira seja empunhada plenamente. Conciliar o discurso ambiental com o agronegócio pujante — e majoritariamente conservador — é tarefa hercúlea e que vai levar tempo. Desfazer o estrago do governo anterior, que empoderou madeireiros ilegais e garimpeiros na Amazônia, idem.

Manaus está sob uma fumaça sufocante de queimadas criminosas e ainda há terras indígenas ocupadas por invasores, o combate a tudo isso está visivelmente mais lento do que deveria e se esperava. E chega uma hora que o discurso ambiental tem que, acima de tudo, mostrar resultado. O desmatamento caiu, sim, mas ainda há muito, muito a ser feito. Não há sucesso suficiente pra exibir num tour global.

Então, Lula se lançou a falar de guerras. Não de todas, claro. Há vários conflitos absurdamente sangrentos acontecendo no mundo e, simplesmente, não é da natureza da diplomacia tradicional do Brasil dar palpite em guerras. Mas das duas que mais mobilizam as potências — Estados Unidos, China e Rússia —, sim, Lula decidiu falar.

Ele entrou com uma postura mais à esquerda ideologicamente. Embora tenha evitado termos comuns à esquerda, como imperialismo e colonialismo, as críticas que fez aos Estados Unidos na questão da Ucrânia, por exemplo, embutiam algumas dessas ideias — e ignoravam o imperialismo russo ou chinês, a quem ele estava se alinhando, em contrapartida.

Agora, no caso de Israel, Lula tem sido mais cuidadoso. Foi mais ágil em condenar claramente o terrorismo do Hamas. Só que também se furtou a apoiar Israel e seu direito de se defender, como fez seu colega, Joe Biden. Essa parece ser uma aposta mais certeira de Lula, se olharmos como o próprio Biden tem sofrido pressão para criticar a desproporção da resposta israelense. Por outro lado, parte da comunidade judaica no Brasil não enxerga “neutralidade” nisso, mas um abandono do governo brasileiro.

Essa posição pró-dois Estados, pendendo a uma defesa da Palestina, é comum a muitos da esquerda moderada, que evidentemente se recusa a aderir ao terrorismo do Hamas. A implicação geopolítica desse alinhamento é Lula novamente fechado com China e Rússia.

O Oriente Médio, assim como a África, são zona de alto interesse pra ambos na briga com os EUA. Enquanto Putin foi claro, e agressivo, em seus comentários contra Israel e pró-Palestina — na verdade, apoiando o Irã, que apoia o Hamas —, a China foi mais delicada. Vem praticando o que um pesquisador de um centro de estudos britânico nomeou de “neutralidade anti-Ocidental”. Ou seja, uma neutralidade que consiste em não condenar qualquer país ou força que mine a centralidade ocidental na ordem global.

Xi Jinping vai a São Francisco se encontrar com Biden e a relação entre ambos está tão por um fio que analistas vêm apostando que temas da magnitude de uma guerra sequer entrem na pauta.

É nesse contexto incrivelmente complexo que Lula está navegando – e falando. Reposicionar o Brasil e insistir em multipolaridade nas forças, enquanto Estados Unidos e China, com a Rússia na pochete, tentam manter o mundo bipolar.

Falar de paz, apontando eventuais abusos cometidos por um dos lados, quando tudo isso está em disputa é um exercício bastante arriscado.

Quanto maior o risco, maior o ganho. Se der certo, o Brasil pode ser, sim, uma voz relevante.

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