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Milícias do Rio, Bolsonaro e o Brasil

No início de outubro, três médicos foram assassinados a tiros na Barra da Tijuca. Esse bairro fica na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um quarto foi baleado e internado. Um dos mortos era irmão de uma deputada federal. Agora, na segunda-feira desta semana, 35 ônibus foram incendiados no Rio. Também na Zona Oeste.

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O Rio de Janeiro quebrou. Esse governador aí, Cláudio Castro, não vai resolver o problema. Ele é parte do problema. Porque o próprio Estado é parte do problema. As milícias são formadas pelas polícias, por gente dos bombeiros, e, sim, do Exército. Esta é uma máfia que controla grandes regiões do Estado. Uma máfia formada por funcionários públicos. Formada por políticos pois há na Assembleia Legislativa do Estado gente ligada às milícias. Está tudo podre por dentro.

Agora, este é um problema que não é só do Rio, tá? Pode parecer, mas não é. É um problema do Brasil por muitas razões, a mais óbvia é que uma das metástases deste câncer miliciano de um Estado que apodreceu por dentro é a família Bolsonaro. Esses caras chegaram à presidência da República impulsionados por poder político acumulado pelas milícias. Os valores que eles levaram para o Planalto Central são milicianos. Até em relação à Amazônia, os valores na origem são milicianos. A gente chega lá porque precisamos conversar sobre isso. É importante entender esta relação entre o modo miliciano de pensar e como ele se revela na extrema-direita brasileria. É importante porque a força política mais nociva da democracia brasileira, uma força política que ainda é poderosa, nasceu do Rio de Janeiro deste cancro miliciano. Vamos nos concentrar nisso.

Mas, antes, não é só por causa disso que consertar o Rio é importante. Durante a primeria metade do século 20, a República brasileira trabalhou duro para vender a imagem do Rio de Janeiro. Urbanizou o Centro para parecer menos a cidade colonial portuguesa que foi e se assemelhar mais à Paris da Belle Epoque. Depois fez de Copacabana, com o bom design do seu calçadão e todas as palmeiras, um dos ícones de praia tropical do mundo. Botou uma estátua em art decó do Cristo no topo da montanha mais alta, distribuiu a imagem do Pão de Açúcar até onde deu.

Josephine Baker desfilou no Rio dos anos 20, Fred Astaire e Ginger Rogers dançaram aqui nos anos 30, Walt Disney inventou um personagem carioca nos anos 40, Jayne Mansfield dizem que ficou quase nua no carnaval do Copa nos anos 50. A gente ouve Garota de Ipanema no elevador de Nova York, de Tóquio ou Ryahd. Não é à toa que, quando o Comitê Olímpico Internacional escolheu uma cidade sul-americana para fazer os jogos, foi o Rio. É a cidade símbolo do Brasil.

O ponto é o seguinte, depois de passar umas seis décadas vendendo o Rio como a cara do Brasil, a coisa está feita. O rosto do Rio é a cara do Brasil que o mundo conhece. Quando o Rio aparece em chamas, todas as TVs do mundo mostram. Se o Rio está em crise, se o Rio é violento, se o Rio derrete na frente de todos, a percepção é de que é o Brasil todo. Uma vitrine é isso. Quando está bem, é bom para todo mundo. Quando está mal, pois é.
A cidade do Rio de Janeiro é uma das cidades que diminuiu em população nos últimos dez anos, de acordo com o Censo. Isto não é à toa. O ponto de comprometimento do Estado pelas milícias é um tal que não haverá governador que resolva o problema. Porque a Alerj está contaminada, as polícias estão contaminadas, milicianos controlam uma quantidade imensa de votos, não haverá governador que não seja ou refém ou cúmplice. A figura institucional do governador não tem poder nas mãos capaz de resolver o problema.

Agora, como que este monstro nasceu? Essa história é importante de ser contada do início. Para a gente chegar no nascimento dos valores bolsonaristas. Vamos lá?

Você é assinante premium? Porque, se você quer entender o que aconteceu na Argentina, devia ler o Steven Levitsky. É o autor do livro que explicou ao mundo como as democracias morrem. É também o principal especialista em Harvard na política da América Latina. Se você assinar agora, pode correr lá e entender o tamanho do risco que Javier Milei representa. É. Nível Bolsonaro. E a assinatura é baratinha.

Este aqui? Este é o Ponto de Partida.

A Zona Oeste, que é onde as milícias se concentram, é uma região grande, tá? Em área é muito grande. A cidade do Rio é dividida em quatro regiões. A Zona Sul, Zona Norte, Centro e Zona Oeste. A Zona Oeste é a de menor densidade demográfica. Se na cidade toda moram pouco mais de seis milhões de pessoas, ali vivem duas milhões e 500 mil. Dá uns 40% da população que ocupa três quartos da área urbana.

É muito chão, né? Só por essa conta já dá para entender um pouco a configuração. Os bairros mais rurais ficam lá, os mais distantes do centro. Fisicamente mais longe. Tem gente que mora em chácaras, em sítios. Que planta comida, cria bicho. Mas, no geral, é uma zona toda muito desigual. Há desde bairros pobres a bairros ricos, como a própria Barra. As melhores praias da cidade, a Prainha, o Grumari, ficam lá. Embora tenha bairros com edifícios altos, luxuosos, coberturas de sonho, mansões, no geral é a região menos urbanizada do Rio. E este é um aspecto muito importante para as milícias.

Agora, o que isso tem a ver com as milícias e, portanto, com as ideias que os Bolsonaros levaram para o poder?

O problema começa com um drama brasileiro. Ocupação urbana desordenada. O Brasil se urbanizou a partir dos anos 50 e 60. Veio o êxodo rural com trabalhadores para erguer os edifícios. Espigão pra todo lado. Depois, na maioria das cidades, esses homens e mulheres foram para as periferias urbanas. Menos no Rio Aqui, foram para os morros que circundam a cidade. Tudo certo. É mais perto. As favelas eram miseráveis, lugares horrorosos de se viver até os anos 1980. Aí, um governador, Leonel Brizola, nosso primeiro governador eleito no espírito da democratização, liberou alvenaria. As tábuas de madeira prensada, as telhas de amianto, as lonas foram substituídas por tijolo e cimento.

Tudo certo. É preciso permitir dar dignidade às pessoas. Em como elas moram. Só que Brizola ficou no populismo. A maneira de fazer isso direito incluía mais dois movimentos. Dar título de propriedade e urbanizar. Ou seja, o Estado decidiu que esse morro aqui é um bairro onde as pessoas vão morar? Dá o título. Dá a propriedade da terra. Faz de forma legal. Faz algum jogo, alguma combinação. Fica isento de imposto territorial por dez anos, sei lá. Isso é política de moradia, tem de fazer direito. Dá o título, traça rua pra caminhão de lixo passar, põe poste com eletricidade, encanamento de esgoto. Se é para tomar a decisão de permitir que as pessoas se afixem nos morros, se é para decidir que ali estarão moradias definitivas, transforma em bairro.
Sabe qual é a diferença? Presença do Estado. Se transforma num lugar como qualquer outro da cidade. Mas no momento em que não deu título, não abriu rua, virou um aglomerado de vielas onde polícia não entra e o crime se instala. Mais do que isso. Com a política de incentivar o uso de alvenaria em construções irregulares, foi uma corrida por toda cidade.

Onde, principalmente? Pois é. Na Zona Oeste. Grilagem. Tomar um pedaço de terra, lotear, começar a vender sem título, construir. Depois quem vai tirar? Não o vereador, não o deputado estadual que chega lá, vê dezenas ou centenas ou milhares de pessoas e diz, vou trabalhar por você, pela sua casa, e leva o voto. Sem ter oferecido a presença do Estado em troca. Ofereceu, na verdade, a promessa de que o Estado não vai se meter ali.

Não é só com o Brizola. Um governador após o outro teve a oportunidade de regularizar de alguma forma. Moreira Franco, Marcello Alencar, Anthony Garotinho, Rosinha. Aqui e ali houve momentos. Um prefeito como o Cesar Maia iniciou uma boa política de urbanização das favelas. Teve pouca continuidade. Sérgio Cabral Filho realmente trabalhou para levar o Estado, serviços públicos, para dentro de comunidades grandes. E funcionou por um tempo. É. Ele era monstruosamente corrupto. Mas a política caminhou um pouco, ali. Nunca virou política de Estado. Sempre desmoronou.

Teve uma hora que a polícia percebeu que mais negócio do que tomar a grana de suborno dos traficantes era assumir o próprio negócio do tráfico. Primeiro evitaram as drogas. Ocuparam o ramo da grilagem, da venda de gás irregular, o Gatonet, a TV paga pirata, os gatos de luz. Querem ter uma noção da escala desse negócio? A Companhia Light, que fornece energia elétrica para a cidade do Rio de Janeiro, perde 54% da sua energia para o gato controlado pelo tráfico e pelas milícias. Principalmente pelas milícias. É isso mesmo. Mais da metade. Os funcionários da Light não podem sequer entrar nas regiões em que a energia é roubada.

O que é o bolsonarismo, gente? Incentivo à grilagem na região Norte, a tomada de terras na Amazônia, é um valor aprendido onde? Essa ideia de que o Estado não tem de atrapalhar quem quer tomar terras pela força. É um valor de onde? O prazer das armas, a ideia de que problemas do Estado se resolvem com sangue, com morte. A barbárie no poder. Estes são os valores das milícias. Estes são os valores do bolsonarismo.

Milícia existe porque o Estado se ausentou. Isto que milícia é. Um poder paralelo formado por funcionários públicos que substitui o Estado com ordem própria, regras que ela mesmo inventa, regiões inteiras onde a Constituição não vale.
O governador Cláudio Castro vestiu na segunda sua cara de indignado dizendo que vai mandar prender fulano, beltrano e sicrano. Não quer dizer nada. Outro assume e continua tudo igual. O fato é que este poder hoje considera tudo bem matar três médicos numa Orla rica e tascar fogo em 35 ônibus quando quer nas ruas. Faz isso nas áreas que não controla, onde teoricamente o Estado ainda manda, porque naquele um terço do Rio que de fato controla, lá o terror é pleno. Faz isso na rua e na orla porque sabe que, mesmo que prenda um ou outro, o governador não fará rigorosamente nada para mudar as coisas como são.

Governadores do Rio são ou cúmplices, ou reféns. Vai continuar assim. Até que um dia alguém em Brasília decida fazer algo porque percebe que esta doença contagia, se espalha pelo país de muitas formas. Na mais escancarada, com outras milícias que imitam a matriz. Na mais sutil, tomando a forma de um grupo político demagogo, violento, corrupto e sedutor. Mas para fazer algo tem de ser algo de verdade, né? Porque botar general interventor, a gente já sabe no que dá. Reforça a milícia, a política miliciana e catapulta os caras para o Planalto Central.

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