Edição de Sábado: Fala que eu te escuto

O papo não tinha nem dois minutos — o uísque Old Camp e a maconha com tabaco ainda não haviam sido servidos. Mas Elon Musk, Occupy Mars na camiseta, já parecia à vontade. O anfitrião, o comediante, ex-apresentador do reality Fear Factor e ex-comentarista de WWE (o telecatch americano), Joe Rogan, tem esse poder. Despretensioso e despudorado, Rogan deixa os convidados de seu podcast The Joe Rogan Experience, turbinados ou não por álcool e drogas, soltos. Musk conta sobre como uma de suas empresas, a The Boring Company, tem uma seção de produtos com tiragem limitada. Inspirado no clássico de Mel Brooks Spaceballs, ele havia tido a ideia de fabricar e vender lança-chamas. Rogan ri. “Ninguém te diz não? Te dá uma dica de que talvez as pessoas que decidam comprar esse produto sejam desequilibradas?”. “Ah, sim, é uma péssima ideia. Eu mesmo falei ‘não comprem, é perigoso, é errado’. Mas as pessoas compraram e não havia nada que eu pudesse fazer para impedi-las.” Rogan agora gargalha, jogando a careca para trás. “Quantos você fez?”. Musk responde com o sorriso de uma criança travessa: “20 mil. E eles esgotaram em quatro dias”.

O programa de Rogan já existia desde 2009, mas o episódio que mudaria a cena de podcasts nos Estados Unidos foi ao ar no dia 7 de setembro de 2018. Bandeira americana desbotada na parede de tijolinhos de um lado, cortina de veludo vinho do outro, dois microfones à moda antiga no meio. Na mesa, um Buda, bonecos de lutadores, garrafas. Uma grande tela de TV ao fundo. Duas semanas depois de ir ao ar a entrevista de Rogan com Musk, dois brasileiros estreavam sua versão de um podcast transmitido em vídeo — um mesacast. A cortina de veludo está ali, só que cinza. O uísque na mesa também. No primeiro minuto do novo programa, o Flow, Monark e Igor celebram estar no ar pela segunda vez (o piloto não está disponível no canal). “Quanto mais vezes acontece o Flow, mais ele é real e mais a gente está próximo da glória de Joe Rogan”, vibra Monark, mãos ao alto. Eles dão risada e vaticinam: “A gente tem que se desvencilhar!”. É como se a maior inspiração do Flow os amarrasse de alguma maneira. “Sim, é totalmente inspirado”, diz Igor Coelho em papo com o Meio, contando que conheceu o programa do americano via Monark. Mas essa influência permanece até hoje. Na estética e em parte do conteúdo. E, principalmente, na relevância. O podcast de Rogan, atualmente uma exclusividade do Spotify, é o mais ouvido do mundo — somente a versão em vídeo do papo com Musk tem mais de 60 milhões de acessos. O episódio do Flow em que Igor, agora sozinho, entrevista o presidente Jair Bolsonaro, no último dia 8 de agosto, bateu 14,8 milhões de pageviews no YouTube e se tornou o mais visto de um mesacast no Brasil. O Flow e o formato que ele inaugurou por aqui estão em definitivo no jogo eleitoral.

A conversa entre Rogan e Musk é reveladora do que pauta esse tipo de programa lá e cá. A descontração é ambiente profícuo para confissões. A inconsequência de um bilionário que acha que não tem como controlar se alguém decide comprar os lança-chamas que ele mesmo fabricou e comercializou pode parecer risível. E Rogan realmente se delicia com a candura com que Musk ao mesmo tempo admite sua culpa e lava suas mãos. Talvez porque se reconheça nela. Seu podcast é conduzido com a mesma ambiguidade. Plataforma de teorias conspiracionistas e desinformação (de teses que envolvem alienígenas nazistas a outras mais populares, como as antivacinas), muitas vezes sob o puro pretexto de dar voz a todo tipo de ideia, o programa já foi quase extinto numa queda de braço com artistas que ameaçaram sair do Spotify se Rogan ali prosseguisse. Rogan ali prossegue. Mas baixou a fervura e passou a dizer que não queria ter a influência que lhe é atribuída, evitando, inclusive, falar de política.

É aqui que Igor Coelho e Joe Rogan se separam. Além de cravar que não embarca em teorias da conspiração, Igor quer, sim, ter impacto. Quer pautar o papo político. De camiseta da banda Angra, bermuda e descalço, deitado num sofá de couro em seu estúdio em São Paulo, Igor, um carioca de 37 anos que se formou em Letras e dava aulas de inglês, explica que a inspiração em Rogan foi a ideia de poder trabalhar ouvindo gente de todo tipo. “O mais interessante são as pessoas que tenho a chance de conhecer melhor. Não sou muito da conspiração, dessas coisas mais absurdas, mas tendo a gostar da possibilidade de a gente poder debater qualquer coisa. Acho que a gente consegue expandir um pouco o diálogo no Brasil. Mas também sei que essa liberdade, de certa forma, diminui à medida que a gente vai se tornando mais relevante.” (Além da inspiração de Rogan, Igor costuma contar que o Flow nasceu de um estado de espírito de “ódio e depressão” que ele e Monark sentiam como streamers de games). Igor foi cobrado por parte da imprensa tradicional por, na entrevista com Bolsonaro, não ter sido mais rigoroso ao confrontar mentiras do presidente. Ele argumenta que o espírito do Flow não é de antagonizar ou lacrar em cima do convidado. “Estou ali para conversar e ouvir o que o cara tem a dizer. O Flow tem uma função social, que é uma parada que tento imprimir, que é importante ser relevante no debate público, trazer pro mundo real o que é que esses caras [políticos] estão fazendo e como isso afeta de verdade a vida do cidadão comum. Eu coloco como um certo dever trazer pro mundo real, aproximar da população.”

Ao longo do programa, vão aparecendo recados para os espectadores checarem, por si mesmos, as informações oferecidas pelos entrevistados e pelo apresentador. Igor acredita que parte de seu público compreende essa lógica e é capaz de formar sua opinião dessa maneira. No caso da conversa com Bolsonaro, que durou mais de cinco horas, a percepção, baseada em uma enquete do Flow, é de que 80% dos espectadores já são bolsonaristas e estavam ali apenas para reafirmar seu ponto de vista — seguindo a lógica das redes sociais. “Mas a gente tem um público que é do Flow, e essa galera, que graças a Deus vem crescendo, entendeu a proposta. Quando os caras falam que eu sou entretenimento, fico até meio puto. Não quero ser visto como entretenimento. Tem episódios que são pra você rir, espairecer. Mas a gente tenta trazer assuntos relevantes. Outro dia eu estava conversando, por exemplo, com Paulo Artaxo, um físico reconhecido internacionalmente, tido como um dos maiores cientistas do mundo, e ele estava falando sobre aquecimento global. Muitas coisas que ele fala ali têm viés ideológico, nossa galera saca e se informa acerca daquilo além do programa.” Aos 59 minutos da entrevista com Bolsonaro, o presidente faz uma defesa apaixonada da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Igor contesta. Conta de um papo que teve com a cientista Ester Sabino, mas diz não lembrar a explicação em detalhes. Olha para a câmera e ordena: “Pesquisem”. Na tela, aparece uma tarja com os dizeres: “Lembre-se de pesquisar sobre tudo que for dito nesse programa”. Bolsonaro emenda, então, mentiras sobre vacinas. O lança-chamas está aí, pode te queimar, mas só compra quem quer.

Corta!

Rogan e Igor não inventaram os mesacasts. No caso americano, Rogan apenas modernizou uma longa tradição dos talk radios e de apresentadores carismáticos — o mais famoso deles é Howard Stern — capazes de hipnotizar sua fiel audiência por muitas horas. Em paralelo, figuras como Rush Limbaugh tornaram essas horas em pregação política — neste caso, no evangelho da extrema-direita. Mas nas eleições de 2016 os podcasts de política de sucesso nos Estados Unidos eram progressistas. Era o caso do Keepin’it 1600, feito por membros da equipe de Barack Obama (e que depois se transformaria no Pod Save America e daria origem à Crooked Media, uma das maiores produtoras de podcasts dos EUA), ou mesmo o With Her, que acompanhava a campanha de Hillary Clinton. “Criou-se, inicialmente, uma ideia de que podcasts e talk radios competiam em ideologia, sendo podcast um ambiente propício para progressistas. Talvez isso não fosse verdade, mas o fato é que essa aparente vantagem liberal desapareceu”, explica Valerie Wirtschafter, analista de dados sênior na Iniciativa de Inteligência Artificial e Tecnologias Emergentes da Brookings Institution e Ph.D em ciência política pela Universidade da Califórnia. E uma das razões para isso é o que ela chama de “fábrica de conteúdo” que comentaristas de direita parecem ser. “Steve Bannon, por exemplo, chega a botar no ar três episódios num dia. Os radicais inundaram as redes no 6 de janeiro da invasão ao Capitólio.”

Essa disputa ideológica no ecossistema de podcasts segue, em larga medida, a das demais redes sociais e mídias digitais. Antes de mergulhar nela, vale fazer a distinção conceitual dos formatos. Ou, na verdade, mostrar como essa distinção é difícil. Valerie explica que um podcast, a partir da definição dada pelo Guardian em 2004, é a de um arquivo de áudio, disponível num feed de RSS, “baixável e pausável”. Ou seja, é o ouvinte que escolhe onde, quando e em que velocidade ouvir no seu tocador. Mas o mundo digital é vivo e vai se reinventando em alta velocidade. “Já nos anos 00, as pessoas faziam podcast e subiam no YouTube. Flow, PodPah e outros não são podcast, mas também não são TV. E se todo mundo chama de podcast, é podcast e pronto”, diz Cris Dias, pioneiro digital no Brasil e ele próprio um podcaster, criador e apresentador do Boa Noite Internet, e fundador da Ampère, produtora de podcasts. PodPah, para quem não conhece, é atualmente o maior mesacast do Brasil — e sua criação foi impulsionada pelo pessoal do Flow, com equipamentos e dicas. Em dezembro de 2021, o PodPah furou a própria bolha ao entrevistar o ex-presidente Lula. Até a entrevista de Bolsonaro no Flow, esse papo de Lula com o PodPah era detentor do recorde de views nesse formato.

O nome que se deu a esses podcasts com vídeo em que amigos batem papo sobre tudo e recebem convidados foi mesacast. O próprio Spotify entendeu que a fusão de áudio e vídeo é irreversível e passou a permitir que os criadores subam seus podcasts em vídeo na própria plataforma. Então, Cris faz uma observação que explica a razão da simbiose dos podcasts com os vídeos: os cortes. Uma lista de podcasts num tocador não viraliza. A pessoa tem que escolher ir lá, ouvir aquele material, engajar com ele. Não à toa o índice de fidelidade a podcasters é tão alto. Mas para explodir mesmo os cortes de vídeo no YouTube são fundamentais. E esses cortes são feitos pelos próprios criadores dos podcasts ou por terceiros. “O Rogan mesmo não inventou nada, mas o corte do Elon Musk fumando maconha no show viralizou. E o hábito de consumo no YouTube é fortíssimo. Não demanda aplicativo. Então, os números que eles exibem são covardia. Porque o algoritmo fica educado a te oferecer mais e mais daquele tipo de conteúdo.”

O mecanismo praticamente desenha o sucesso da extrema-direita nesse formato. O volume de produções com esse viés é imensamente maior e, portanto, mais sugerido e reforçado pelo YouTube, além de muito mais compartilhado em mensageiros como WhatsApp e Telegram. Ainda assim, há quem escape da lógica. Guilherme Felitti, cientista de dados e sócio da Novelo Data, estuda esse fenômeno há quatro anos. Ele descreve as fases do mundo dos podcasts no Brasil, apontando que Cris Dias foi um dos desbravadores. Vieram, depois, Flow e PodPah e a disputa por audiência entre os dois acabou gerando o ecossistema de mesacasts no Brasil, tendo o YouTube como habitat. “O modelo de negócio se mostrou viável, eles começaram a ter espaço comercial. Além disso, o YouTube é a plataforma onde é mais fácil se monetizar conteúdo.” Felitti frisa que o PodPah escolheu um caminho menos político em seu conteúdo, o que é corroborado pela negativa de seus apresentadores de participar desta reportagem. “O Flow sempre fingiu ser sério para discutir polarização política. O PodPah era diversão pura. E a polarização cansa nossa saúde. Esse cansaço começou a se manifestar na escolha da audiência pelo PodPah.” Os dados levantados por ele confirmam isso. Criado dois anos depois do Flow, o PodPah ultrapassou o concorrente em números de inscritos no YouTube em agosto de 2021. E não parou de crescer. Hoje, tem 5,8 milhões de inscritos. O Flow tem 4,3 milhões — e ganhou 450 mil da entrevista com Bolsonaro pra cá.

Igor, do Flow, garante que essa competição não mexe com ele. E reforça que seu microfone está igualmente disponível para esquerda e direita. Mas que convidados da esquerda simplesmente se recusam mais frequentemente a comparecer. “Sinto, no campo da esquerda, uma certa resistência em falar com o contraditório. Gostaria que isso não fosse real. Mas te afirmo de todo o coração que a gente convida esses caras. Já recebemos o [Guilherme] Boulos e o [Fernando] Haddad. Estamos convidando o Lula há mais de dois anos. Tem diversos nomes que eu poderia citar, mas eles não aceitam. Não sei, não se sentem confortáveis.” Será que essa resistência tinha a ver com a figura de Monark, fundador do Flow que se envolveu diversas vezes em controvérsias e fez declarações beirando o crime, bem à la Joe Rogan? Igor diz que não. “Existem pessoas que não vieram porque não gostavam do Monark. Mas elas não são necessariamente da política. São pessoas que só não gostavam do Monark, sabe? O programa em si tem uma personalidade que vai além disso. A gente é conhecido por não debater ou forçar a barra, encher o saco dos cara. Mas tocamos nos pontinhos que incomodam. Já vi o Lula participando de outros programas e não é a mesma coisa...”

A solução encontrada por Igor para dar alguma diversidade ideológica ao programa é a de trazer “um analista político, um cara que é diametralmente contrário. A pluralidade de trazer muitos pontos de vista aqui ajuda nesse sentido”. Com isso, como esperado, Igor já foi tachado de, em seus termos, esquerdalha, bolsominion e anarcocapitalista. No fim, ele se define como alguém com visões políticas muito próprias, que é a favor do porte de armas, da legalização da maconha, de o Estado não interferir na decisão da mulher de fazer um aborto. Cris Dias e Guilherme Felitti concordam que não dá para se partir do princípio de que esse tipo de programa e apresentador, com esse nível de liberdade discursiva, prejudicam o debate político. “No fim, a gente cai no paradoxo da democracia. Se ela é um sistema onde todo mundo tem voz, estamos no auge da democracia. Não falaríamos de racismo, homofobia como falamos hoje se não fosse a internet. Mas há um preço a se pagar. Há malucos que também ganham voz. Ainda acho o saldo positivo”, defende Dias. Felitti, então, pondera que a enorme relevância que os mesacasts estão ganhando não seria um problema se houvesse espaços para o confronto com jornalistas mais preparados. Mas a imprensa está desacreditada e os políticos estão evitando a imprensa tradicional. “Essas entrevistas são o que sobrou. Talvez seja essa a sina da comunicação digital, mediada por algoritmo e rede social. De falar só para convertidos, nas bolhas.” Se for esse o caso, Igor Coelho, do Flow, é o pastor do “Fala que eu te escuto”.

Até onde vai o seu rosto?

É cada vez mais perceptível que os nossos rostos estão sendo utilizados para comprovar nossa identidade em alguns serviços. Quem nunca precisou tirar uma selfie para realizar um cadastro em um aplicativo? Nos apps de bancos, por exemplo, isso já virou rotina. Até porque, se com o passar do tempo passamos a carregar a carteira no smartphone, nada mais importante do que termos acesso a outras formas de autenticação além do bom e velho e-mail e senha. Mas os bancos não são os únicos serviços a apostarem na identificação biométrica facial. Nos apps bancários a lei é a segurança e evita fraudes. Já nos serviços públicos a promessa é de mais agilidade. Desde o início do mês, quem embarcar em voos domésticos saindo dos aeroportos de Congonhas, em São Paulo, ou Santos Dumont, no Rio de Janeiro, pode optar pela biometria facial na hora da identificação. O projeto, encabeçado pelo Ministério da Infraestrutura em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), promete um ganho de 27% no tempo de processamento do embarque de mais passageiros.

Apesar da suposta eficiência, esse tipo de solução é cercada de dúvidas relacionadas à privacidade e ao uso dos dados coletados. Em São Paulo, por exemplo, a utilização de biometria facial para detecção de reações no metrô da capital paulista coletou dados dos passageiros sem o consentimento dos usuários. No Rio, o sistema do estado falhou ao confundir uma mulher inocente que caminhava em Copacabana com uma pessoa que estava presa. É uma tecnologia cercada de implicações éticas em relação aos riscos de uso impreciso e discriminatório.

Ao tratarmos das implicações éticas da biometria facial é necessário explicar como essa tecnologia funciona. A maioria das tecnologias de reconhecimento conta com imagens 2D em vez de 3D. O software faz a leitura da geometria do seu rosto, mapeando a distância entre os seus olhos, a profundidade de suas órbitas oculares, a distância entre a testa e o queixo, entre outras características. O objetivo é identificar os pontos de referência faciais que distinguem o rosto humano. Depois disso, as informações de um rosto são transformadas em dados digitais e passam a ser impressões únicas, assim como uma impressão digital, por exemplo. Toda vez que o sistema é utilizado, ele realiza o cruzamento das informações entre a imagem que está sendo mostrada pelo usuário e as imagens digitais já armazenadas. Vale lembrar que esses sistemas utilizam algoritmos e softwares para mapear padrões nos rostos, especialmente com inteligência artificial (IA).

Uma pesquisa de 2020 feita pela Surfshark, empresa que desenvolve ferramentas de proteção de privacidade na internet, mostrou que 98 países usavam tecnologias de reconhecimento facial em algum tipo de vigilância. Entre as aplicações estão o controle em aeroportos e fronteiras, a busca por pessoas desaparecidas, serviços de saúde e reconhecimento de suspeitos em crimes. Por parte das empresas existem as soluções mais comuns que usamos em nosso dia a dia, como desbloqueio de dispositivos, operações bancárias digitais, no varejo e em marketing e publicidade. Mas o reconhecimento facial é mais comum e amplamente aplicado na segurança pública em muitos países, incluindo o Brasil. Nos Estados Unidos, o uso da tecnologia está aumentando entre os órgãos de aplicação da lei. O FBI, por exemplo, tem acesso a até 650 milhões de fotos extraídas de vários bancos de dados estaduais. A polícia tira fotos de presos e compara com imagens de bancos de informações. As fotos são adicionadas aos bancos para serem verificadas sempre que a polícia fizer uma pesquisa criminal.

Por aqui, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro chegou a publicar, no início deste ano, uma recomendação para que os magistrados reavaliassem com urgência as decisões em que a prisão preventiva é decretada com base apenas no reconhecimento facial. Isso porque um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais apontou que foram realizadas ao menos 90 prisões injustas baseadas no método em delegacias do país, de 2012 a 2020; 73 delas no Rio. O estudo mostrou que 81% dos registros que contavam com informações sobre a raça dos acusados indicavam que eles eram negros. Por conta disso, o fim do reconhecimento facial na segurança pública vem sendo debatido em comissões no Senado, com destaque para os riscos de reprodução do racismo nas aplicações da biometria.

Na pandemia de covid-19, a tecnologia passou a ser usada até mesmo em rostos mascarados. Países como China e Rússia aplicaram a biometria facial para rastrear pessoas que “furaram” a quarentena, e começaram a treinar os algoritmos para identificar indivíduos potencialmente infectados com base na temperatura corporal. A Coreia do Sul chegou a testar em 2021 um projeto piloto para usar inteligência artificial (IA), reconhecimento facial e milhares de câmeras para rastrear o movimento de pessoas infectadas com o coronavírus. O projeto financiado nacionalmente iria analisar imagens coletadas por mais de 10.820 câmeras. Na Austrália, pessoas com covid-19 devem permanecer em quarentena domiciliar por sete dias, como em vários países que adotam medidas de controle e combate ao vírus. Porém, a polícia checa o paradeiro do paciente mandando mensagens de texto periódicas e exige que uma selfie seja enviada em 15 minutos. O reconhecimento facial e o rastreamento por GPS são usados para determinar se a pessoa que tirou a selfie está de fato em casa.

A preocupação com a privacidade é um dos fatores centrais na discussão sobre os dilemas do reconhecimento facial. Por essa razão, Patrícia Peck, advogada especialista em Direito Digital e Sócia do Peck Advogados, ressalta que o nível de segurança da biometria facial depende da qualidade da base de dados de imagens e da tecnologia que está sendo utilizada. Isso envolve desde quantos pontos da face são verificados, luminosidade, quantidade de pixels entre os olhos e demais itens que possam ajudar a diminuir o eventual “falso positivo” e viés do algoritmo. “Por certo é um método que tem se demonstrado mais eficiente que outros, especialmente no combate à fraude, pois dificulta a chamada ‘fraude de uso’ em que alguém pode ‘emprestar’ sua identidade para outra pessoa, como ocorre com senhas”, explica a advogada.

No Brasil, o uso do reconhecimento facial se submete à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), uma vez que trata de dados pessoais e sensíveis dos cidadãos brasileiros. O artigo 11, por exemplo, diz que o tratamento de dados pessoais sensíveis sem o consentimento do titular somente poderá ser usado em hipóteses como uso pela administração pública em caso de políticas públicas, cumprimento de obrigação legal, proteção da vida do titular ou terceiro, entre outros. Entretanto, o artigo 20 afirma que “o titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses (...)”

Cada país tem protocolos e legislações próprias de segurança e privacidade. Mas a Organização das Nações Unidas (ONU) ressalta que as soluções precisam ser ajustadas para respeitar direitos humanos e regulamentações de proteção de dados. “Mesmo em casos nos quais a tecnologia é usada para fins de segurança pública, é preciso ter um comitê de ética de IA para tratar estas questões”, explica Patrícia Peck. “Para garantir a transparência são necessários avisos prévios e claros do uso de autenticação com reconhecimento facial. Isso precisa estar em políticas e documentos de fácil acesso, com redação clara e também no próprio local de captura.” Em relação à segurança, a advogada enfatiza o investimento em criptografia e demais medidas e salvaguardas de cibersegurança para evitar vazamentos de dados biométricos. Assim como outras tecnologias, o reconhecimento facial tem inúmeras vantagens. Evitar fraudes, longas filas em serviços e até mesmo como uma opção mais higiênica de identificação em meio à pandemia. Só no Brasil, estima-se que o mercado de biometria facial deve movimentar R$ 53 bilhões até o fim do ano. Está mais do que na hora de voltarmos os nossos olhos para o que essa tecnologia pode oferecer, mas com atenção a como ela está sendo usada.

Sangue em nome de Deus

Quem leu A Tormenta de Espadas (A Storm of Swords, lançado em 2000) ou assistiu ao episódio As Chuvas de Castamere, da série Game of Thrones ficou chocado com a extrema brutalidade do “Casamento Vermelho”, no qual o clã Stark é massacrado por aliados traidores após uma celebração de paz. Igualmente chocante foi descobrir que a trama não nasceu inteiramente da imaginação de George R.R. Martin, mas de um acontecimento real, muito mais sanguinário, que completa 450 anos na próxima quarta-feira: o massacre do dia de São Bartolomeu. Naquela data, a maioria católica de Paris assassinou nas ruas homens, mulheres e crianças protestantes, na culminação sangrenta de uma guerra religiosa que varria a França havia décadas e que se refletiu cá em terras brasileiras.

O reino da França era palco de conflitos religiosos pelo menos desde o século 13, mas a situação do país em agosto de 1572 não tinha precedentes. De um lado, a doutrina protestante do francês João Calvino conquistava milhares de seguidores, chamados huguenotes, especialmente entre a nobreza das regiões oeste e sul, ameaçando o domínio até então inquebrantável da Igreja Católica. De outro, a ascensão ao trono em 1559 de Henrique II, então com 15 anos e uma saúde frágil, marcou um domínio do governo francês pela poderosa e ultracatólica família de Guise – a ponto de o monarca ter se casado com Maria, rainha da Escócia e prima do duque Francisco de Guise.

Para conter a influência dos de Guise, que haviam estimulado a perseguição religiosa nos reinados anteriores, um grupo militante de huguenotes teve a ideia, em agosto de 1560, de sequestrar o rei e entregá-lo aos cuidados do príncipe Luís de Condé, um dos principais nomes do calvinismo no reino. O duque e seu irmão, o poderoso cardeal de Lorraine, seriam presos ou mortos. O plano foi descoberto e abortado, e seus líderes executados, dando início a uma nova onda de violência religiosa no país. Condé foi preso e só não perdeu a cabeça por conta, em dezembro daquele ano, da morte do jovem rei.

Um rei menino, um país dividido

A França virou de cabeça para baixo. Carlos IX, o sucessor, tinha apenas nove anos. A rainha-mãe, Catarina de Médicis, fez-se nomear regente, isolou os de Guise e buscou inicialmente uma política de pacificação. Em troca da libertação de Condé, o rei Antônio de Navarra abriu mão da regência. Ele e especialmente a mulher, Joana, eram huguenotes devotos, sendo ela a parente mais próxima da família real francesa. Para completar o quadro, o almirante Gaspar de Coligny, possivelmente o mais importante militar da França, havia assumido anos antes a já suspeitada conversão à nova fé.
Ao longo de 1561, Catarina promoveu uma série de mudanças nas leis aumentando a tolerância com a prática do calvinismo, embora cultos públicos dentro das cidades continuassem banidos. Em março do ano seguinte, inconformados com a leniência religiosa da coroa e com a perda de poder, tropas dos de Guise invadiram uma cerimônia calvinista em Vassy, deixando 50 mortos. Em retaliação, huguenotes liderados por Condé atacaram guarnições e cidades, especialmente no Vale do Loire. Começadas as Guerras Religiosas estavam.

Durante um ano o país foi varrido por conflitos, que não pouparam seus líderes. Condé foi capturado na batalha de Dreux, e seu irmão, o rei Antônio de Navarra, morreu no cerco de Rouen. Francisco de Guise foi morto a tiros perto do cerco de Orleans, mas, como a morte não aconteceu em combate, a família afirmou se tratar de um assassinato, culpando Coligny. Em março de 1563, a rainha regente conseguiu mediar um acordo de paz, mantido por quatro anos a contragosto pelos dois lados.

A segunda guerra religiosa começou em 1567 com ataques protestantes a igrejas em Flandres e mais um complô fracassado dos huguenotes para sequestrar o rei – alguém realmente achou que isso era uma boa ideia. Após uma breve paz em 1568, o conflito foi retomado, agora em escala continental. Guilherme de Orange, herói da independência da Holanda protestante, e o duque calvinista Wolfgang de Zweibrücken comandaram pessoalmente suas tropas em auxílio aos huguenotes, enquanto os católicos contavam com o apoio militar dos Estados Papais, do Ducado da Toscana e do rei Felipe II da Espanha, então o monarca mais poderoso da Europa. Em março de 1569, Condé foi capturado e executado sumariamente, deixando Coligny como comandante de fato dos huguenotes.

O reino estava exausto, e o rei, já reinante mas ainda sob influência da mãe, mediou um acordo de paz em 1570, que culminaria no casamento de sua irmã Margarida (Margot) com o primo Henrique de Navarra, filho da rainha Joana, a mais importante nobre huguenote. A cerimônia foi marcada para 18 de agosto de 1572 na ferozmente católica capital Paris.

Duas versões para um massacre

Mesmo ressabiada, a elite do huguenotes convergiu para Paris, liderada por Coligny e pelo príncipe Henrique de Condé, primo em primeiro grau do noivo, agora rei Henrique III de Navarra após a morte, dois meses antes, de sua mãe. O casamento aconteceu sem maiores incidentes, a despeito do clima tenso na corte e da cada vez mais virulenta pregação antiprotestante nas igrejas da capital.

Parecia mesmo que a pacificação era possível, até que, no dia 22, Coligny foi baleado quando voltava para casa, ficando gravemente ferido. Carlos IX, acompanhado de seu séquito, o visitou e prometeu que os culpados seriam punidos, mas os huguenotes não ficaram satisfeitos. Um grupo invadiu um jantar de Catarina, exigindo justiça e fazendo ameaças – embora os de Guise fossem os suspeitos preferenciais, dizia-se que a rainha-mãe tinha interesse na morte do almirante por temer que sua parceria com a Holanda levasse a uma guerra contra a Espanha. Enquanto isso, cerca de quatro mil soldados huguenotes acamparam fora da cidade, comandados pelo cunhado de Coligny.

Foi nesse clima que Catarina de Médicis e o filho se reuniram no início da noite do dia 23 e decidiram matar os principais líderes protestantes que ainda estavam na capital. Até hoje se debate o nível de premeditação do expurgo. Para os protestantes, o casamento foi arquitetado desde o início para trazer a elite huguenote para o abate; para os católicos, o rei e sua mãe ficaram assustados com a perspectiva de um ataque protestante à capital e decidiram agir. O consenso é que a situação escapou do controle, degenerando para um massacre que não era desejado.

Com os portões da cidade fechados e uma parte da população armada, o próprio de Guise, à frente de uma pequena tropa, invadiu a casa de Coligny e o matou. Seu corpo foi atirado pela janela na rua, onde a multidão o esquartejou e jogou os pedaços no Sena. Ao som dos sinos da matina, já na madrugada do dia 24, mercenários suíços retiram à força os nobres huguenotes hospedados no Palácio do Louvre e os matam na rua. Pela cidade, grupos de católicos perseguiam e assassinavam todos os protestantes que conseguissem pegar. A despeito de ordens reais para que a carnificina fosse contida, ela continuou por pelo menos três dias.

Os Henriques de Navarra e Condé foram poupados, em parte pelo parentesco real, mas forçados a se converterem ao catolicismo, ato que abjurariam após conseguirem fugir da capital.

Ainda no dia 24, Carlos IX mandou ordens para que a violência fosse coibida nas províncias, mas uma carta de seu irmão caçula, o duque de Anjou, incitando a matança chegou antes. Durante pelo menos dois meses houve registro em todo o país de violência religiosa contra huguenotes, cuja população encolheu drasticamente, não só pelas mortes, mas pelas conversões motivadas pelo medo. O total de vítimas é incerto, com estimativas variando de dez mil a trinta mil em toda a França. O único número oficial foram os 1.100 corpos retirados do Sena.

No campo externo, o massacre foi alvo de repulsa por governos protestantes, como Inglaterra e Holanda, e por católicos moderados, como o imperador Maximiliano II, do Sacro Império Romano-Germânico, sogro do rei da França. Já na Espanha católica e em Roma houve júbilo. O Papa Gregório XIII fez cunhar uma medalha comemorativa – apenas em 1997 o Vaticano pediu perdão.

Embora a perda dos líderes mais importantes tenha enfraquecido os huguenotes, as guerras religiosas continuaram. Carlos IX morreu de tuberculose em 1574, sucedido por seu irmão, o mais pragmático Henrique III. Quando este morreu em 1589 sem deixar herdeiros, a coroa passou para o parente homem mais próximo, ninguém menos que o rei Henrique III de Navarra. Para vencer a resistência (armada) dos católicos, ele abjurou da abjuração com a célebre frase “Paris vale uma missa”. Mas o conflito só teria fim no reinado de seu neto, Luís XIV, que, em 1685, tornou o protestantismo ilegal em todo o país.

Não existe heresia do lado de baixo do Equador

Mas o que o Brasil tem a ver com a longa guerra religiosa na França? Muito. Em 1555, sob o patrocínio de Henrique II e do ainda católico Coligny, Nicolau de Villegagnon fundou na Baía de Guanabara uma colônia chamada França Antártica, após firmar aliança com os Tupinambás que viviam na região. Embora fosse cavaleiro da Ordem de Malta, organização militar-religiosa católica remanescente das Cruzadas, ele trazia em sua tripulação figuras protestantes de destaque, como o piloto Nicolau Barré. Também era amigo do próprio Calvino, com quem estudara Direito na Universidade Paris.
No ano seguinte, precisando de homens que a coroa não tinha como enviar, Villegagnon apelou a Coligny, já abertamente protestante, que pretendia transferir para a colônia huguenotes perseguidos. A pedido de ambos, Calvino enviou três navios com 300 pessoas, entre soldados, pastores e mulheres para se casarem com os colonos.

A princípio, a convivência entre as duas crenças foi pacífica, mas os conflitos de sacudiam a França se reproduziram na Guanabara. Sob acusação de incitarem a desordem, três protestantes foram executados. Os principais enviados de Calvino voltaram para a França, onde espalharam o rumor de que Villegagnon se convertera ao protestantismo e depois traíra a religião. O governador voltou à metrópole para se defender e, em sua ausência, os portugueses, comandados por Mem de Sá, destruíram, em 1560, o Forte Coligny, principal fortificação francesa.

Na década seguinte, com as guerras religiosas já esfacelando a França, os portugueses foram lentamente expulsando os colonos da Guanabara, até que o último bastião caiu em 1567. Foi nesse período que Estácio de Sá fundou ali o Rio de Janeiro. Após a expulsão dos franceses, o padre José de Anchieta afirmou que a colônia era formada exclusivamente por protestantes, fake news do século 16 que deu à guerra por território um ar de conflito santo contra a heresia.

E os mais clicados de uma semana um tanto quanto política.

1. Metrópoles: Empresários bolsonaristas defendem golpe em grupo de Whatsapp.

2. Metrópoles: Randolfe Rodrigues pede ao STF que PGR avalie prisão de empresários golpistas.

3. g1: PF vê crime de Bolsonaro por live em que associou vacina da Covid à Aids

4. Metrópoles: Dilma, Sarney, Lula e Temer sentados lado a lado na posse de Moraes.

5. g1: A íntegra do discurso de posse de Alexandre de Moraes como presidente do TSE.

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