Edição de Sábado: De Alpha a Zap

De cabeça abaixada, os olhos brilham em frente a uma tela acariciada por dedos que repetem o mesmo movimento de arrastar, de cima para baixo, de lado a lado, em movimentos pinça para o zoom, a cada poucos segundos. O almoço chega. Nem é preciso olhar para o prato. A não ser para fazer uma foto. A rotina segue, agora, apenas com uma das mãos, enquanto a outra desempenha a mecânica tarefa de segurar o talher para a displicente alimentação. E assim passam-se minutos de um mergulho em interações virtuais — e virtualmente zero das reais. Essa cena pode descrever o almoço de muitos de nós em um dia qualquer. Mas também narra o cotidiano de crianças e adolescentes.

A geração Alpha, os nascidos a partir de 2010, é a primeira 100% digital. Embora a geração anterior, a Z, já tenha passado parte da infância acessando a internet e ostentando seus primeiros smartphones, os Alphas nasceram em um mundo transformado e dominado pelas inovações tecnológicas, que mudaram radicalmente as relações sociais. A sociedade digital não mais depende de mídias físicas para entretenimento ou informação: consome conteúdo escolhendo o que ver, quando e como quiser. Essa nova geração simplesmente desconhece o analógico.

O ser humano é um animal relacional. A forma como nos desenvolvemos é na conexão com os outros. Aprendemos a falar ao ouvir nossos pais, avós, tios e tias, pessoas do nosso ciclo. Definimos nossas identidades na troca. Nos exemplos. Conforme reduzimos os componentes familiares e o trabalho ultrapassa os limites antes mais claros entre vida pessoal e profissional, a nova leva geracional se desenvolve mirando outros espelhos. Pais e filhos dividem a atenção entre si com os dispositivos eletrônicos. A criança Alpha se acostumou a disputar a atenção dos adultos com as telas. E também a se entreter e perceber o mundo com essa intermediação.

É um assombro observar a facilidade com que os Alpha operam tablets e smartphones, transitando com desenvoltura por games, streamings, diferentes aplicativos e vídeos do YouTube, TikTok e Instagram. A sensação inicial de quem convive com essas criaturas digitais, mesmo os mais novinhos, é de que essa é a geração mais inteligente que já existiu. E há alguma dose de verdade nessa percepção. Ao menos, pode-se antever como uma das características da geração Alpha o fato de que ela vai ser a mais bem formada da história. “Eles são considerados mais inteligentes porque têm uma capacidade de observar o ambiente, de entender o que está acontecendo e transformar isso em conhecimento [de maneira] mais habilidosa do que as gerações anteriores”, explica Maysa Fagundes, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP com ênfase no estudo da geração Alpha. “Então, conseguem transformar o aprendizado em conhecimento com um pouco mais de facilidade.”

Parte dessa facilidade é inerente à própria visão de mundo desse tempo. Um mundo absolutamente sem fronteiras, tanto pela globalização quanto pela integração tecnológica. A vida em rede facilita a troca de experiências entre pessoas em polos opostos do planeta. Os Alphas se adaptaram a essa realidade das últimas duas décadas. É um universo tão novo que até o conceito de tempo e espaço foi alterado. Os Alphas, mesmo os não inteiramente alfabetizados, sabem trocar mensagens com parentes e amigos da escola. E ampliam seu entorno para amizades fora do círculo de convivência, em conversas virtuais esporádicas. Se para a geração X, dos nascidos entre 1965 e 1980, o contato físico e os papos “olho no olho” — ou ao menos por telefone — eram mais importantes, para os Alphas os encontros podem ser espaçados. “O conceito de tempo para eles fica diferente. Não precisa ser ao mesmo tempo. A gente pode ter uma conversa com uma diferença de uma semana e se sentir super próximo”, explica Fagundes.

Vale aqui abrir uma discussão. A teoria geracional criada pelas ciências humanas busca entender o comportamento de uma sociedade nascida em um mesmo período ou contexto histórico. Foi assim que os Baby Boomers, nascidos entre as décadas de 1940 e 1960, começaram a ser estudados. Foi o momento da explosão demográfica, quando os homens voltavam para casa após o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas definir gerações, enquadrá-las, é, necessariamente, fazer um recorte. E, assim, evidente, deixar nuances de lado. Não raro, pode-se cair na armadilha dos estereótipos. Numa reportagem da The Atlantic sobre o assunto, Dan Woodman, professor de sociologia da Universidade de Melbourne que estuda rótulos geracionais, crava: "Provavelmente ficaríamos irritados se fizéssemos com gênero ou raça o que ainda conseguimos fazer com gerações”. Por outro lado, rotular uma geração ajuda a descrevê-la e pode ajudar a compreendê-la. “Uma das coisas que fazemos com rótulos geracionais é fazer afirmações sobre o quão diferente essa turma é – eles são tão diferentes, quase estranhos em suas atitudes, que você precisa pagar alguns especialistas para entrar e explicá-los para você.” E paga-se muito bem, ele conta. Neil Howe, um dos criadores do termo Millenials, há cerca de 30 anos, fez uma lucrativa carreira em consultoria, palestrando e escrevendo sobre gerações.

De qualquer forma, é com esses recortes que nos acostumamos a tentar avaliar e prever comportamentos. O próprio Woodman reflete, sobre os Alphas, que “eles ainda são crianças”. “Muitas coisas que atribuímos a uma geração estão na maneira como ela começa a pensar sobre política, na maneira como se envolve com a cultura e [se] é uma fonte de novos movimentos sociais.” Mas compreende-se mais a fundo uma geração, de forma mais substancial, quando eles entram na adolescência. Depois dos Baby Boomers, sociólogos, antropólogos, cientistas sociais e outros estudiosos das humanidades buscaram compreender como seus filhos se diferenciavam de seus antecessores. Robert Capa, fundador da agência Magnum, cunhou o termo geração X, por não encontrar uma definição específica para os nascidos no pós-guerra. Mas a expressão se popularizou após o lançamento da banda Generation X, criada pelo cantor inglês Billy Idol e o lançamento do livro Geração X: contos para uma cultura acelerada, de Douglas Coupland.

As gerações seguintes sempre foram definidas por letras, como a Y, entre 1980 a 1995 (que também ficou conhecida como Millenial), e a Z, de 1995 a 2010. Esgotadas as letras do alfabeto romano, o sociólogo australiano Mark McCrindle, que também tem uma agência de consultoria, fez, em 2008, uma pesquisa — online, claro. Vários nomes associados à tecnologia surgiram ali, como os “Onliners”, “Generation Surf” ou “Technos”. Outros atribuíam à nova geração o peso de redimir os pecados das anteriores, como “Regeneração”, “Geração Esperança”, os “Salvadores”, “Geração Y-não”. McCrindle, porém, optou por adotar um novo alfabeto. Para os bebês que nasceram a partir de 2010, chamou-os de geração Alpha, a primeira letra grega.

Eu, robô

Voltemos a ela. Com uma exposição tão ostensiva às telas, o comportamento dos Alphas também é moldado pelo conteúdo consumido nas plataformas digitais. Os referenciais, dos ideais de beleza do corpo de mulheres e homens até o de seus adereços, vêm com o filtro da publicidade e dos influenciadores. “Estamos falando sobre todo um ideal de existência física, que é manifestado de uma forma totalmente editada nas redes”, explica Pedro Almeida, mestre em antropologia pela UFBA e gestor de inovação. Ele ressalta que os conteúdos nesses espaços, principalmente dos perfis profissionais, são editados para mostrar a vida sempre por um ângulo positivo. Nas raras vezes em que o aspecto negativo é abordado, as mensagens são pensadas de maneira a favorecer a personagem no vídeo. É uma realidade fantasiosa.

Com isso, claro, vem uma crise na construção da autoimagem. A referência para o jovem, que antes eram os pais e os professores, se desloca para influenciadores digitais e artistas. Não que antes os astros de Hollywood não assumissem esse lugar. Mas a convivência entre fãs e ídolos estava restrita às páginas de jornais e revistas. Agora, todos têm perfis nas principais redes sociais, compartilham seu cotidiano, muitas vezes distorcido pelo glamour e a ostentação. São objetos de desejo ao mesmo tempo acessíveis e inalcançáveis. O pré-adolescente, sujeito a uma esperada crise de identidade que vem quando ele não se reconhece mais como igual aos indivíduos de seu círculo familiar, vai procurar sua “tribo” nesse ambiente. Um mundo artificial onde os pratos são perfeitos, as pessoas são lindas, saudáveis, e vivem em constantes viagens a locais deslumbrantes. Na terra onde a grama do perfil alheio é sempre mais verde e florida. “É uma crise da representatividade, da referência que antes estava atribuída a uma paternidade, a um professorado e hoje isso está nas autoridades digitais”, acrescenta Almeida.

Somam-se a elas os buscadores, como o Google. As dúvidas e os medos dessa fase são levadas a uma ferramenta que não oferece necessariamente as respostas, mas apenas interpretações de um algoritmo sobre o que seria o resultado adequado para as pesquisas. Encontrar material confiável online não é trivial, principalmente para os que acabaram de desembarcar ali e ainda não entendem os perigos da desinformação e das ciladas cibernéticas. A abundância de informação na rede tem evidentes vantagens. Pode ser uma grande aliada da curiosidade das crianças. Mas a quantidade não quer dizer que haja qualidade no consumo — tampouco maturidade, intelectual ou emocional, para lidar com o conteúdo que recebem. “Isso me preocupa, porque agora as crianças buscam essas referências na internet e se validam por falas dessas autoridades digitais. Mas para se construir como autoridade digital, principalmente para uma criança, você não precisa ter muito conhecimento, bagagem. Precisa apenas de um atrativo lúdico”, comenta o antropólogo.

Sempre alerta

Os efeitos dessa vida em tela vão além dos comportamentais. Sempre envoltos em estímulos novas informações, os Alphas estão em permanente estado de alerta. "Com isso, nós temos algumas questões de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade”, explica a psicóloga Maysa Fagundes. “Mas também a atenção deles é o tempo todo desviada porque há um letreiro, uma música, ou um vídeo, que é curto.” Pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia monitoraram 2,6 mil adolescentes por dois anos e descobriram que jovens que fazem o uso excessivo de telas como celulares, tablets e outras mídias têm duas vezes mais chances de apresentarem sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) que os demais.

Muito tempo com celular na mão, pouco tempo para descanso da mente. As muitas horas de uso ao longo da noite têm reduzido a qualidade do sono dos jovens, impactando diretamente no aprendizado e no rendimento escolar. O professor de pediatria de Harvard, Michael Rich, conduz estudos e atendimento clínico desse público em Boston. Ele explica que o cérebro humano, em sua fase de crescimento, está constantemente construindo conexões neurais. Ao mesmo tempo, vai eliminado aquelas menos usadas, num processo de limpeza. Acontece que o uso de mídias digitais desempenha um papel ativo nesse processo, ao oferecer, nas telas, uma estimulação “empobrecida” em comparação com a realidade. Ele defende que o mix entre experiências online e offline é essencial. Mais ainda, o tédio. “O tédio é o espaço em que a criatividade e a imaginação acontecem”, explica Rich.

Mas separar uma criança ou um adolescente de seu gadget não é simples. Isso porque eles ativam uma área extremamente prazerosa e gratificante. “Praticamente todos os jogos e mídias sociais funcionam no que é chamado de sistema de recompensa variável, que é exatamente o que você ganha quando vai ao Mohegan Sun [cassino nos Estados Unidos] e puxa uma alavanca em uma máquina caça-níqueis. Equilibra a esperança de que você vai se tornar grande com um pouco de frustração e, ao contrário da máquina caça-níqueis, um senso de que basta melhorar suas habilidades para chegar lá.”

O futuro

Como o sociólogo Dan Woodman, de Melbourne, explica, os Alphas ainda são muito jovens para que se façam previsões de sua vida adulta. Mas dá para se imaginar os desafios. Além de desenvolver algum nível de controle sobre o uso dos dispositivos e redes sociais, a favor da própria saúde física e mental, será necessário que os Alphas se prepararem para as constantes transformações tecnológicas a que já estão sujeitos. Segundo Pedro Almeida, “existe uma possibilidade muito grande de termos uma crise no mercado de trabalho em nível global, potencializada pela aceleração da automação”.

As escolas já começaram a buscar um novo modelo de ensino, mais focado no desenvolvimento tecnológico e nas habilidades que cada indivíduo apresenta. A reforma do Ensino Médio permite que os alunos escolham a área do conhecimento em que queiram focar. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Com a possibilidade de extinção de profissões existentes e a criação de novas áreas de trabalho, muitos desses jovens estão em formação para atividades que nem mesmo foram criadas. “Essa criança, quando terminar o ensino médio, entrar num curso superior, finalizar, entrar no mercado de trabalho... é uma escala de tempo em que tudo pode ter mudado. Será que estamos dando uma educação para essa criança viver o que ela vai necessitar daqui a pouco?”, questiona Almeida. “Se não estamos preparando para o que já temos como pontos essenciais da vida de hoje, imagine daqui a 15, 20 anos.”

Um ponto importante para a nova leva de profissionais é a diferença de visão de carreira no mercado de trabalho. “Eles têm muita dificuldade hoje no mercado porque a maneira como ele está formatado prevê que as carreiras tenham uma continuidade. Você precisa de um tempo numa empresa para crescer, se desenvolver. E eles entendem que o aprender e o se desenvolver é experiência. Então, eu venho, fico nessa empresa seis meses, já aprendi como é que faz, posso sair pra uma outra e aprender outra forma de fazer”, explica Maysa Fagundes. Segundo a psicóloga, um outro ponto de conflito é a falta de foco em uma única área de ação. “É um grande desafio para eles conseguirem fazer uma escolha de carreira, de profissão. Porque para eles, a vida não tem mais isso de você ser uma coisa só a vida inteira. Você pode ser tudo ao mesmo tempo e parar e começar de novo, toda hora.” É aquela alteração no conceito espaço e tempo de que a geração Alpha é ao mesmo tempo vítima e protagonista. Mas tudo indica que essa também é a geração mais preparada para inventar um futuro — e um mercado — em que ela se encaixe perfeitamente.

Deixou seu coração no Porto

Pedro de Bragança e Bourbon, o quarto com seu nome a chegar ao trono português, era epilético. Nem ele, nem a família faziam qualquer mistério da síndrome. Não tratavam com pudor, como coisa a esconder. Uma vez, ele tinha 18 anos, acompanhava seu pai, João, numa cerimônia de rua. Era aniversário de dom João. E perante o povo carioca Pedro esbugalhou o olhar fixo à frente, perdeu a cor do rosto, a boca começou a espumar e caiu no chão em convulsões. A população ficou espantada, os ajudantes do príncipe nem tanto. Esperaram o pico da crise passar, aí o carregaram para uma casa próxima que os recebeu. Pedro sairia de lá umas duas horas depois. Exausto. Em seu palácio, tanto no Brasil quanto depois, em Portugal, sempre manteve um sofá especial. Era para suas “crises de nervos”. Uma vez, explicou a um diplomata francês que era coisa “sem importância” — “uma moléstia que a Casa de Espanha trouxera para sua família”. Aí perguntou se os Bourbon de Nápoles também tinham o mal. Embora as convulsões sejam a face mais visível das muitas formas de epilepsia, a síndrome não para aí. Ela ajuda a moldar a personalidade de quem a carrega. Impulsividade, hipersexualidade, sono curto. Dormia tarde, acordava cedo, sempre disposto. Viveu quase 36 anos — até quase 30, era pura energia. Tinha dias que acordava tão cedo e, impaciente porque todos dormiam, dava tiros com a espingarda de caça no jardim até acordar alguém. As alterações de humor eram bruscas. Dom Pedro I do Brasil, IV de Portugal, era capaz de muita agressividade. Era capaz, também, de ser o mais ponderado da sala, de expor um charme que a qualquer um seduzia. E era abstêmio. Cedia a uma taça de vinho por obrigação protocolar. O homem que desejou deixar seu coração no Porto, pedido que Portugal e Brasil decidiram desrespeitar este ano, gostava de beber água.

Ele foi, claro, dom Pedro I do Brasil. Mas, quando precisou escolher, preferiu Portugal. Dom Pedro IV é mais adequado. Nasceu em 1798, quarto filho, segundo homem, dos nove que seu pai e mãe tiveram. Como o irmão mais velho morreu aos 6, quando Pedro chegou ao Brasil no ano de 1808 já era príncipe-herdeiro.

Os dilemas políticos de Pedro capturaram sua vida e estiveram, todos, longe do seu controle. Veio com a família para o Brasil aos 10 porque Napoleão havia invadido Portugal. Comandou o processo de independência porque a alternativa era ver o Brasil se tornar independente sem os Bragança. O mesmo movimento que determinava a independência brasileira, a crise do absolutismo, fez também com que fosse o primeiro da família a jamais ter o tipo de poder que reis haviam tido até ali. Um rapaz com costeletas compridas que se juntavam ao bigode, que dava tiros de manhã, hiperativo de dormir tarde e acordar ainda no escuro, com rompantes de raiva e que passou a vida seduzindo. Um rapaz que gostava de ter poder, que foi criado para ter poder absoluto, mas que calhou de nascer no meio de um redemoinho de grandes forças históricas que lhe negaram muito do que desejou. Ainda assim, mesmo com a educação autoritária, caiu seduzido pelos escritos de Voltaire e de Burke e tinha lá uma simpatia pela ideia do poder mais distribuído. Não foi imperador brasileiro muito tempo — ficou no poder nove anos. Aí voltou para Portugal porque o pai, de energia bem mais baixa que o filho, não conseguiu segurar o movimento liberal que exigia um novo tipo de governança. Pedro, criado para ser rei absoluto, entendia o novo mundo que nascia.

Passou os últimos dois anos de sua vida em guerra com o irmão Miguel. Ele encabeçou o movimento liberal contra os absolutistas do caçula. Pedristas contra miguelistas, dizem os portugueses. Por muito pouco não perdeu — ele e seu exército se viram cercados na cidade do Porto. Mas o imperador mimado que fundou o Brasil era bom diplomata e bom general. Fez-se amigo de um dos raros nobres liberais franceses, o marquês de La Fayette, que uns tantos anos antes, ao lado de George Washington, havia conquistado a independência dos EUA. Construiu pontes com a França, então com o Império Britânico, enfim com sua prima dona Maria de Bourbon, da Espanha. A Quádrupla Aliança ganhou no Porto a guerra e aí Pedro morreu de tuberculose. Tinha 35 anos. Por aquela vitória, pediu para que deixassem seu coração no Porto.

A filha dona Maria da Glória, princesa do Grão-Pará, herdou o trono português. O filho dom Pedro de Alcântara herdou o brasileiro.

Arqueologia do horror

“Os fins de semana, quando podia, eram dedicados à família. Ia com minha mulher e minha filha, de três anos, a um parque de diversões. Na volta para casa, sempre preocupado, passava pelo DOI para ver o andamento do serviço. A nossa ida até lá era ótima para nossa filha. Ela brincava com o Cabeção e a Neguinha, cachorros mascotes do Destacamento, corria pelo pátio, passeava de colo em colo”, lembra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra nas páginas de sua autobiografia, A Verdade Sufocada. Geograficamente, suas memórias se ancoram em um complexo de prédios situado no bairro do Paraíso, em São Paulo — um terreno de 1,5 mil m² entre as ruas Tutoia, 921, e Dr. Tomás Carvalhal, 1030. Nos fundos, uma das construções se diferencia por ter cara de casa. Naquele sobrado, muitas vezes, Ustra dividia as noites com a família. Nos outros anexos, separados pelo pátio, ocorriam espancamentos, afogamentos, estupros, choques elétricos e assassinatos. No prédio principal já funcionava a 36ª Delegacia de Polícia da capital – em plena atividade até hoje. As cinco construções constituíam a sede do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2º Exército, um dos principais centros de inteligência da ditadura militar.

Entre 1970 e 1974, sob o comando de Ustra, mais de seis mil opositores ao regime foram presos nos edifícios. Destes, um número incontável de torturados. Não há registro do destino de ao menos 50 pessoas – terminaram desaparecidas e mortas, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade. Sob o codinome de Major Tibiriçá, em 2008, ele se tornou o primeiro militar a ser reconhecido como torturador pela Justiça. Embora documentos e relatos nos ajudem a ter uma ideia de como se articulava o órgão símbolo da repressão política no período, muitas questões seguem em aberto. Por isso, pela primeira vez, um projeto arqueológico, histórico e forense disseca o espaço físico de um antigo DOI-CODI para explicar o que ocorria entre suas paredes. Ao Meio, a doutora em história Deborah Neves, que integra o projeto como pesquisadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, contou que o resultado do estudo servirá como subsídio para a criação de um memorial nesses edifícios. “O projeto nos ajudará a entender de que forma esses espaços facilitaram, proporcionaram, a sistematização e institucionalização da violência. O próprio espaço físico vai nos contar e permitir identificar quais foram as violações”, explica.

Os primeiros passos foram dados na semana passada, quando iniciou-se um levantamento com georadar. O aparelho faz uma espécie de raio-x das edificações, paredes e solo. A partir das imagens capturadas pelo equipamento, será possível avançar para a pesquisa in loco. “Vamos descascar paredes e terão janelas de escavação em piso. Com elas, conseguiremos identificar os tipos de movimentação de solo feitas no terreno e as modificações, intencionais e não intencionais, realizadas ao longo do tempo. Também usaremos luminol para identificar pequenos vestígios de sangue e material genético. Depois, com escaneamento 3D, reconstruiremos digitalmente as edificações originais, o que nos ajudará a entender a dinâmica dos espaços. São tecnologias da ciência empregadas em favor dos direitos humanos”, detalhou Deborah. Esforços não faltam. Além dela, se engajaram na empreitada pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade de Coimbra. Encontrar marcas da barbárie, no entanto, não será tarefa fácil.

Antes de o complexo ser tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat) em 2014, suas estruturas sofreram várias reformas. “De modo geral, o estado de conservação dos edifícios é relativamente bom. O prédio da delegacia é o que teve a maior reforma“, diz Deborah. Por conta de uma mudança na política de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em 2001, foi excluída a carceragem permanente nas delegacias. Então, as celas foram retiradas, sendo transformadas em salas administrativas. Mesmo assim, o prédio mantém algumas características, como o próprio formato e volume dos espaços onde ficavam as celas. Os outros edifícios estão em estado médio de conservação. Um deles, por conta da chuva, teve infiltrações, o que prejudicou bastante um dos pavimentos revestido com taco. ”Eles precisam de manutenção, que vai ser feita assim que as pesquisas forem finalizadas.”

Responsável pelo processo que levou ao tombamento, Deborah formou em 2017 um Grupo de Trabalho com mais de dez entidades da sociedade civil para debater novas formas de ocupar o local. Desse grupo acabou surgindo a atual pesquisa. Além das barreiras impostas pelo tempo, outro impasse é a dificuldade para obter financiamento. “Desde 2019 tentamos o financiamento, mas problemas burocráticos inviabilizaram a aprovação do projeto. Finalmente, no ano passado, submetemos ao CNPq e tivemos a grata surpresa de conseguir a aprovação parcial. Ao menos, o valor nos possibilita iniciar a pesquisa”. Ainda sim, ela se mantém otimista. “Ter a aprovação do CNPq neste momento é retrato do espírito do tempo. A agência entendeu que há uma necessidade de conhecer melhor nosso passado para entender as demandas do presente. Esclarecendo as atrocidades da ditadura, dando respostas à sociedade, fortaleceremos o espírito democrático – o que é muito importante sobretudo neste momento em que vivemos, em que a própria instituição democracia está sob risco”, concluiu.

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O fiasco do mundo virtual de Zuckerberg, o sucesso da entrevista de Lula e um tornado de fogo e fake news. Essas foram as mais clicadas pelos leitores do Meio:

1. Facebook e Instagram: O antes e depois do Horizon, o metaverso da Meta, de Mark Zuckerberg.

2. G1: Um tornado de fogo na Califórnia.

3. YouTube: Ponto de Partida - Lula ganhou votos no Jornal Nacional.

4. Jornal Nacional: A íntegra da entrevista de Lula.

5. Folha: Desde 2018, perfis que viralizaram mamadeira de piroca espalham fake news.

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