Edição de Sábado: PT e MDB, a hora da reconciliação

Por João Villaverde*

Tamba-Tajá foi um sucesso instantâneo. Todo mundo queria comprar o primeiro disco daquela jovem de voz poderosa, que chegava ao Rio vinda de Belém do Pará. Na capa do LP, Fafá de Belém, com 19 anos, aparecia como que saindo de um sonho envolta em árvores, em meio a uma mata densa. A mais marcante canção do disco era Vento Negro, composta por José Fogaça, um jovem professor de cursinho na gélida Porto Alegre. Era 1976, ditadura militar, governo Ernesto Geisel.

Aquele professor-compositor, cabeludo, tinha 28 anos. Hoje ele tem 75, ainda vive em Porto Alegre e é uma das vozes fundamentais para a disputa eleitoral mais impactante de nossa geração, entre Lula e Jair Bolsonaro.

Antes de estabelecer a conexão entre o compositor de Vento Negro e a mais tensa eleição presidencial dos últimos 50 anos, temos que ter em mente o que está em jogo.

Para vencer a máquina bolsonarista, que arrastou um séquito de extremistas para o Congresso Nacional, para governos estaduais e que ainda pode levar a Presidência, Lula precisa ampliar ainda mais a sua base. O movimento de frente ampla, no primeiro turno, foi importante — mas não suficiente.

Resta, no campo democrático, trazer de volta para o campo lulista o maior partido do Brasil, o MDB.

Você, leitora e leitor, já deve ter feito um desenho mental ao ler essa sigla de três letras. Você pode ter pensado que uma parte grande do MDB já está com Lula, dado que senadores como Renan Calheiros (Alagoas) e Eduardo Braga (Amazonas) já estavam neste barco. Ou, talvez, você tenha pensado em outras alas do MDB, que também já estavam como Lula, mas que era melhor não lembrar: Geddel Vieira Lima (Bahia), Eunício Oliveira (Ceará) e Leonardo Picciani (Rio de Janeiro). Por fim, você talvez tenha pensado naquelas alas do MDB que já tinham aderido ao bolsonarismo, como em boa parte do Sul e do Centro-Oeste, e que, portanto, não estarão com Lula de jeito algum.

Mas falta uma ala importante do MDB. Uma ala que estava esquecida, adormecida: a ala original.

Depois de ter Vento Negro cantada por Fafá de Belém, José Fogaça continuou a compor e a dar aulas para jovens gaúchos. Outras canções suas seriam gravadas por Nara Leão, Mercedes Sosa e MBP4. Até que o senador Pedro Simon, principal figura do MDB gaúcho, decidiu convidar o compositor a entrar para a política e na luta contra a ditadura. Fogaça topou. Em 1986, Fogaça foi eleito senador constituinte e se mudou para Brasília.

De imediato, Ulysses Guimarães, o presidente do MDB e da Assembleia Nacional Constituinte, selecionou Fogaça para as comissões mais importantes (de sistema de governo e, depois, de sistematização). A Constituição encerra formalmente o período de arbítrio. Anos depois, Fogaça foi o relator no Senado da Medida Provisória que estabeleceu o Plano Real, que terminou com a hiperinflação herdada do regime militar. De volta ao Rio Grande do Sul, Fogaça foi eleito e reeleito prefeito de Porto Alegre no começo desse século. A partir de 2011, decidiu deixar adormecer a política para voltar à música.

Isso mudou em 2022.

Com cabelos curtos e brancos, José Fogaça passou o ano como um dos líderes da área de educação do programa de Simone Tebet à Presidência. A amigos próximos, o compositor-político tem dito que a candidatura de Simone “ressignificou” o MDB, engajando pessoas que estavam há anos desmotivadas a se envolver com a sigla.

Os “originários” do MDB formam um grupo pequeno. Entre as figuras expoentes, além de Fogaça, estão também o ex-governador gaúcho Germano Rigotto, que foi o coordenador do programa de governo de Simone Tebet, além do ex-governador pernambucano Jarbas Vasconcelos e do senador piauiense Marcelo Castro.

Os termos-chave para definir os integrantes dos originários são “luta pela democracia” e “estabilidade política”. São marcos muito distintos daqueles que o partido, especialmente quando usava a letra “P” antes do nome (PMDB), ficou associado: fisiologismo, corrupção desbragada e “toma-lá-dá-cá”. Alguns dos nomes mais associados à fisiologia do antigo PMDB não estão mais no partido, como Eduardo Cunha ou Sérgio Cabral. Outros, como Geddel Vieira Lima e Michel Temer, ainda estão: Geddel, como mencionado, está na campanha de Lula; Temer chegou a vazar apoio a Bolsonaro, mas recuou diante de pressões internas.

O grande esforço do grupo de originários do MDB está em resgatar as ideias originais do partido que nasceu do combate implacável à ditadura militar e das lutas por uma Constituição Cidadã.

Tendo isso estabelecido e sabendo que essas figuras estavam no entorno de Simone Tebet, há, portanto, duas formas de compreender o apoio dela a chapa Lula-Alckmin. A primeira é a simbólica: ao galvanizar figuras originais do MDB, a campanha de Simone de fato ressignificou perante a opinião pública a imagem do MDB.

A segunda é de ordem prática: Simone pode ser a “árbitra neutra” para reestabelecer uma relação entre as duas maiores forças partidárias do país, PT e MDB.

É aqui, no campo do pragmatismo, que as coisas ficam complexas. Peço licença então, leitora e leitor, para uma breve mudança de linguagem. Sairemos das composições musicais e dos avanços institucionais de nossa história democrática e entraremos no ramo da política prática.

Na prática, a teoria é outra

O MDB é multifacetado, como qualquer organização de grande porte. Imagine uma empresa com mais de 1 milhão de integrantes, espalhados em um dos mais vastos territórios do planeta. Não é moleza organizar e formar discurso único.

Mas diferente do PT, que funciona como um bloco quase uníssono e tem em Lula a sua figura onipresente, o MDB é uma colcha cheia de remendos, cada um de uma cor. Cada Estado atua de um jeito e essa liberdade de atuação é marca constitutiva do partido. Quando os interesses de uma ala do MDB se cruzam com a de outra, elas trabalham juntas; quando não, cada um atua como deseja.

É por isso que o PT fecha questão sobre um assunto e o MDB libera seus quadros para atuarem como desejarem. Sempre foi assim.

Enquanto o PT é um típico partido presidencialista, em que os incentivos partidários estão voltados para a conquista do Executivo (federal, estadual, municipal), o MDB atua como partido parlamentarista. Seus quadros sempre dominaram o Congresso, as assembleias e as câmaras regionais. Não à toa, o comando relativamente estável e homogêneo do MDB no Congresso Nacional entre 1985 e 2018 foi fundamental aos ocupantes do Executivo no período.

Quando foi governo, sob José Sarney, o MDB forjou instituições como o Ibama (criado em 1989), a Secretaria do Tesouro Nacional (1986), a unificação orçamentária federal (1987) e as primeiras políticas sociais (“Programa do Leite”, 1986) para aplacar a insegurança alimentar infantil, herdada da ditadura. Além, claro, da Constituição de 1988.

Depois, as principais reformas do governo FHC foram relatadas por parlamentares do MDB ou tiveram caminho facilitado por presidentes emedebistas na Câmara e no Senado. Algo semelhante ocorreu com o governo Lula e durante boa parte do governo Dilma Rousseff.

A vocação presidencialista do PT encontrou no destino parlamentarista do MDB o espírito ideal para governar de forma estável por mais de dez anos. Em uma palavra: funcionou.

O negócio começou a desandar a partir da tempestade perfeita que ocorreu no país a partir de 2014: os graves erros de política econômica de Dilma Rousseff começaram a ficar escancarados; a Lava Jato desnudou indicados políticos que usaram cargos para desvio de recursos (para fins patrimoniais ou políticos); o país se acirrou politicamente, com passeatas frequentes, radicalização e uso desenfreado das redes sociais. Por semanas e semanas, o país ficava em transe acompanhando operações policiais, enquanto investimentos eram postergados, manifestações de rua eram convocadas e o governo Dilma entrava em parafuso.

Quando Bolsonaro venceu em 2018, PT e MDB estavam no auge de sua crise relacional.

O presidente Michel Temer era — e ainda é — acusado de “traidor, golpista e proto-fascista” pelos petistas. Temer, afinal, herdou o governo federal quando o impeachment de Dilma Rousseff foi aprovado pelo Congresso Nacional. O racha entre os dois foi ruidoso e acompanhado de perto pela imprensa. Cobri, como jornalista, muito de perto todo aquele caos em Brasília: no Congresso, no Tribunal de Contas da União e no Palácio do Planalto (o que rendeu meu primeiro livro, Perigosas Pedaladas).

Do ponto de vista dos recursos humanos, no entanto, a gestão Temer não foi muito diferente de um governo federal petista: Henrique Meirelles, Dyogo Oliveira, Suely Araújo, Moreira Franco, Gilberto Kassab, entre outros. Temer também manteve a indicação para a Procuradoria-Geral da República (PGR) a partir de lista tríplice da categoria, prática iniciada pelo PT. A despeito dessas semelhanças, o governo Temer representou grandes cisões com a pauta petista, em especial por aprovar uma profunda reforma trabalhista e sindical e por abrir o governo civil para quadros militares.

Assim chegamos à campanha de 2022, com PT e MDB ainda se estranhando. Isso terá que mudar nas próximas três semanas.

O começo do fim

Pense um pouco agora, leitora e leitor, nas lutas que levaram ao fim da ditadura militar. Homens e mulheres que se engajaram pela anistia, pelo fim da tortura, pelo voto direto, pelo SUS, pela Constituição. Aquela luta, dos anos 1980, foi uma luta levada adiante por cinco partidos principais: nos sindicatos, o PT; no Congresso, o MDB; na esquerda tradicional, o PDT; na social democracia, o PSDB; no racha do regime militar, o PFL (DEM).

Agora vejamos, leitora e leitor, o que ocorreu com três desses cinco partidos durante os anos Jair Bolsonaro. No ano passado, o DEM (ex-PFL) cometeu suicídio político ao se unir a sigla micro-radical do PSL, criando o monstrengo União Brasil. Sem programa, sem ideias, sem nomes nacionais, a União Brasil é um grande e rico... nada.

Em 2022, acompanhamos os obituários do PDT e do PSDB. O partido que já foi de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro diminuiu dramaticamente de tamanho e teve em Ciro Gomes um símbolo da biruta de aeroporto que a sigla se tornou: terminou em distante quarto lugar, perdendo em todos os Estados e reduzindo a bancada federal. Já os tucanos perderam o governo de São Paulo pela primeira vez desde 1994, além de elegerem uma bancada menor que a do PSOL. FHC, 91 anos, não conseguiu votar. José Serra, 80, não se elegeu deputado. Tasso Jereissati se aposentará no fim do ano.

Quem sobrou daquelas lutas dos anos 1980? Pois é, o PT e o MDB.

Superar essa tremenda crise que há entre os dois partidos é absolutamente fundamental, seja para evitar uma vitória que consolide Jair Bolsonaro, seja para escapar do óbito partidário.

Que fique claro: se nem mesmo Lula conseguir vencer Bolsonaro, quem o PT terá a disposição depois? O pêndulo da luta anti-extremista no Brasil pode migrar para o campo verde (tal como ocorre na Alemanha) ou para o campo identitário (tal como ocorre nos EUA). Em ambas as searas, o PT não surge como primeira opção: parece claro que a Rede e o PSOL, respectivamente, liderariam essas frentes por aqui.

No caso do MDB, uma nova vitória de Bolsonaro servirá como pá de cal em um partido parlamentarista. O Congresso do futuro será liderado por siglas eminentemente bandoleiras, como o PL de Valdemar da Costa Neto, a já mencionada União Brasil ou o PP de Arthur Lira.

Será apagada a luz, também, sobre o grupo de “originários” do MDB, que ressurgiu com a campanha centrista de Simone Tebet.

A última saída

Colocando-se como alguém que está livre dos ressentimentos de lado a lado, Simone Tebet pode servir de ponte estável para a retomada de diálogo entre petistas e emedebistas. Caso vença a apertadíssima eleição que se avizinha, Lula terá um governo para tocar a partir de janeiro.

Como ensinava Ulysses Guimarães em sua pregação diária, “governo no Brasil é presidente da República mais o Congresso Nacional... presidente sem Congresso não governa”.

Com 42 deputados, o MDB terá uma bancada maior do que todas as outras siglas que apoiam Lula e Alckmin. Será uma bancada menor, apenas, que a do PT. Pode vir justamente do MDB, portanto, um nome de consenso para presidir a Câmara, sem gerar animosidades com o campo que atualmente domina a Casa, a partir do orçamento secreto. De seu lado, o MDB tende a oferecer Roseana Sarney, que foi eleita deputada federal, fez campanha ao lado de Simone Tebet e agora está com Lula. Ela entende do riscado.

Caso seja mesmo derrotado, Bolsonaro ainda assim será presidente durante todo o mês de novembro e todo o mês de dezembro. A destruição que o acompanha pode se aprofundar antes da posse do governo novo. O orçamento secreto, no Congresso, pode se perenizar.

O trabalho de frente ampla iniciado por Lula deve agora passar pelo MDB, mas não pode parar com a eleição. Para fechar, os versos de Fogaça cantados por Fafá de Belém:

“Quem me ouve vai contar
Quero luta, guerra não
Erguer bandeiras sem matar
Vento negro é furacão”

*João Villaverde é jornalista, professor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York. É co-organizador (com Felipe Salto e Laura Karpuska) do livro Reconstrução: o Brasil nos anos 2020. É autor do livro-reportagem Perigosas Pedaladas (Geração Editorial, 2016), sobre o impeachment de Dilma Rousseff.

O pecador de estimação

A campanha do segundo turno começou com a religião sendo o tema principal e usando como munição três notícias antigas envolvendo o presidente Jair Bolsonaro (PL). Na primeira, um vídeo de 2016, ele afirma ter vontade de comer carne humana, em particular de “um índio”. Na segunda, uma entrevista publicada em 2000, ele admite ter pedido à então futura segunda mulher, Ana Cristina Valle, que fizesse um aborto, prática que, publicamente, condena com veemência. Ela se recusou e teve Jair Renan, o filho Zero Quatro. E a terceira, de maior repercussão, foi um vídeo gravado em 2017 em uma loja maçônica, provavelmente em Brasília, mostrando o então pré-candidato Bolsonaro discursando para integrantes da ordem. O objetivo é desacreditá-lo junto ao eleitorado religioso em geral e evangélico em particular. Ainda não é possível avaliar se a estratégia surtiu efeito. Líderes evangélicos bolsonaristas correram para minimizar a presença dele em um templo maçônico, e o próprio presidente disse ter sido “muito bem recebido” lá.

A questão é que, embora estejam sendo amplificados pelas redes sociais, os três casos são anteriores à primeira eleição de Bolsonaro. Além disso, comentários misóginos, racistas e de apologia à tortura e à violência são marca registrada desde sua primeira eleição para vereador no Rio de Janeiro, no já distante 1988. Antes de chegar ao Planalto, afirmou usar o auxílio-moradia da Câmara para “comer gente”, mesmo sendo casado. O que leva muitas pessoas, especialmente as mais secularizadas, a indagarem como o eleitorado evangélico, que apregoa valores tão rígidos, pode apoiar um político de opiniões e comportamentos não exatamente cristãos. Existe uma explicação, inclusive teológica.

Bolsonaro laranja

Para começarmos a entender esse fenômeno é preciso prestar atenção em um importante modelo para Bolsonaro, o ex-presidente dos EUA Donald Trump. Fora a forma física e o fato de o americano já ser rico antes de entrar para a política, os dois são praticamente idênticos. Três casamentos com mulheres cada vez mais jovens, histórico de comportamento machista e de casos extraconjugais, suspeitas de negócios nebulosos no mercado imobiliário, discurso ultraconservador nos costumes não condizente com a própria conduta, etc. E, claro, o apoio monolítico dos mais expressivos líderes evangélicos.

No exterior, especialistas têm se debruçado sobre esse aparente paradoxo. Doutora em Estudos das Religiões pela Universidade de Oslo, Hanne Amanda Trangerud publicou um dos mais detalhados artigos sobre o caso e chegou ao cerne da questão, exposta em um discurso do apóstolo Guillermo Maldonado em janeiro de 2020, no lançamento da coalizão Evangélicos com Trump: “Pai, eu oro por (nosso) presidente. (...) Nós rogamos, Pai, para que ele possa ser Ciro, trazendo a mudança para esta nação.”

O Ciro em questão não é qualquer um daqueles com os quais estamos acostumados, mas Ciro II (580 a.C.-530 a.C.), o Grande, primeiro shahanshah do Irã, ou, nos termos da historiografia ocidental, primeiro imperador da Pérsia.

Um tiquinho de História

A partir de 553 a.C., Ciro II (Kurus no idioma parsi), rei da cidade de Ansã, derrotou no campo de batalha e assimilou por casamento o império Medo, unificou as tribos persas e partiu para guerras de conquistas. Ao morrer em combate, aos 50 anos, governava um dos maiores impérios da História, estendendo-se do Estreito de Dardanelos, hoje ponto mais ocidental da Turquia, ao Vale do Indo, no atual Paquistão. Entre suas muitas vitórias, a que nos interessa aconteceu em 539 a.C., quando ele tomou, praticamente sem resistência, o império neobabilônico, no qual os judeus viviam como exilados e cativos.

Os persas tinham uma religião oficial, o Zoroastrismo, fé monoteísta da qual vieram os conceitos de Céu e Inferno, redenção e Juízo Final que seriam mais tarde incorporados pelo Cristianismo e pelo Islã. Ciro e seus sucessores, porém, tinham uma política de estrita tolerância religiosa. Se seus vassalos pagassem tributo, não importava que deuses adorassem. Com base nesse princípio, ele não apenas permitiu que os judeus voltassem para seu reino, agora um Estado vassalo da Pérsia, como financiou a reconstrução de Jerusalém e de seu templo, arrasados quase 50 anos antes pelo babilônio Nabucodonosor.

O rei gentio ungido por Deus

O povo de Judá teve poucos benfeitores tão generosos ou suseranos tão liberais. Não é de se surpreender, então, que as Escrituras tratem muito bem o imperador persa. Em Isaías 45:1, ele é referido como “ungido” de Deus; no segundo livro das Crônicas, 36:23, o monarca, por inspiração divina, faz a seguinte proclamação: “Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra e me encarregou de lhe construir um templo em Jerusalém, que está na terra de Judá. Todo aquele dentre vós que for de seu povo, esteja seu Deus com ele e que ele para lá se dirija!”

Mas Ciro era um gentio, um não judeu, excluído da Aliança entre Javé e seu povo. Seria como um pagão para um cristão ou um infiel para um muçulmano, embora em ambos os casos a conversão seja não só fácil como desejada pela religião. Para explicar como o gentio se torna “ungido” existe o princípio do “instrumento de Deus”, alguém que, não sendo parte do povo escolhido, é usado por Javé para fazer sua vontade. Após a Diáspora, no século I d.C., houve diversos momentos em que governantes cristãos foram comparados a Ciro por adotarem políticas favoráveis aos judeus em seus países.

Segundo Rebecca Barrett-Fox, professora-visitante de Estudos da Religião na Universidade do Arkansas, ao incorporarem o conceito do instrumento de Deus e compararem Trump a Ciro, os líderes evangélicos puderam inserir o presidente em sua narrativa dos EUA como uma nação cristã. Ele não é apresentado como um irmão de fé, mas como o defensor dos crentes. A comparação com Ciro é reforçada pelos evangélicos sionistas, que apoiam o Estado de Israel visando a realização de uma profecia apocalíptica — que, aliás, envolve a destruição de Israel, mas essa é outra conversa. Enquanto Ciro reconstruiu Jerusalém, Trump reconheceu-a como capital israelense, transferindo para lá a embaixada dos EUA.

Lá como cá, os evangélicos são um grupo diversificado, e não faltam os que criticam essa visão idealizada de Trump. Em entrevista à Vox, John Flea, professor de História Evangélica no Messiah College, na Pensilvânia, avaliou que a comparação com Ciro funciona como um “batismo” do presidente. “É como uma lavagem de dinheiro político-teológica. Usam-se as Escrituras para limpar a imagem do candidato”, disse ele.

Não olhem para Bolsonaro

No fim das contas, o raciocínio é “o governante pode até ir para o Inferno, mas antes fará a obra de Deus na Terra”. Valeu para Trump e vale para Bolsonaro, como deixa claro o influenciador digital evangélico Deive Leonardo: “Por favor, meu lindo, talvez você não goste do Bolsonaro, mas esqueça o Bolsonaro e olhe só para a ideologia.”

O fato de que, com ou sem ideologia, é a pessoa Bolsonaro que terá nas mãos o destino do país em caso de reeleição não passa de um detalhe.

O gambito está nu

Hans Niemann escolheu fixar em seu perfil no Twitter o vídeo de uma entrevista que concedeu no dia 6 de setembro. Diz que ali está sua “verdade”. Depois de analisar com o apresentador cada lance de um empate que teve instantes antes, a câmera fixa no enxadrista americano de 19 anos de cabelos encaracolados. Havia muitas controvérsias a esclarecer. A palavra era sua. “Primeiramente, sobre meu sotaque”, Niemann começou. “Estou há dois anos vivendo dentro de malas, viajando pela Europa. Passo tanto tempo pensando em xadrez que simplesmente não saio, não socializo com pessoas que falam inglês fluente. E mesmo quando estou nos Estados Unidos eu não saio, só para buscar meu delivery duas vezes por dia, porque só penso em xadrez.” Essa, sem dúvida, era a menor das polêmicas envolvendo seu nome. Sobre a maior, com a polidez de um adolescente, Niemann decretou: “As pessoas são idiotas. A explicação que vou dar vai fazer todos parecerem idiotas completos”. Não é o jeito mais inteligente de angariar simpatia depois de ser acusado por Magnus Carlsen, campeão mundial de xadrez, de ser um trapaceiro. Niemann faz explicações técnicas de suas jogadas, de como conseguiu vencer, dois dias antes, o norueguês Carlsen, de 31 anos. Então, num tom mais humano, relembra quando sua mãe o levou, ainda criança, para assistir a Carlsen numa exibição. A mãe queria pagar US$ 2 mil no leilão para Niemann, aos 9, jogar contra Carlsen. “Não, mãe, um dia vou jogar contra ele de graça”, o garoto respondeu. Na entrevista, consternado, Niemann resume. “Eu vivi meu sonho por um dia, vencendo Magnus. E aí tudo isso acontece.”

Para quem não acompanha os torneios de xadrez com tanta frequência, um resumo. Carlsen é campeão mundial desde 2013. Até a partida com Niemann, vinha numa sequência de 53 vitórias. É tão insuperável que, tão jovem, já aventou uma aposentadoria precoce por “falta de motivação”. Niemann teve uma ascensão luminosa nos últimos dois anos, passando da 800ª posição para a 38ª no ranking dos enxadristas. É um garoto de São Francisco, na Califórnia, que iniciou sua carreira jogando online e como streamer de xadrez — o que existe, sim. Ambos têm o título de Grandes Mestres, ou seja, são a elite do xadrez mundial. Depois de perder, Carlsen largou a competição. Primeiro, fez insinuações sobre a trapaça. Mais tarde, foi explícito. A suspeita é de que Niemann receba, de alguma maneira, a ajuda de computadores que sugeririam jogadas que humanos não fariam naturalmente. Desde que o computador da IBM Deep Blue derrotou Garry Kasparov, o que a inteligência artificial é capaz de antever nas jogadas mudou o esporte. E atualmente os aplicativos de xadrez colocam um Deep Blue gratuitamente e com extrema simplicidade dentro do seu celular.

Na mesma entrevista do agora longínquo 6 de setembro, Niemann admitiu que aos 12 e aos 16 anos trapaceou pontualmente em jogos online que não valiam dinheiro. Disse que precisava pagar o aluguel, já morava sozinho em Nova York, queria bombar sua carreira, e que se arrepende profundamente do que classifica como um erro de criança. Essa confissão lhe rendeu a expulsão do site Chess.com, onde os episódios de trapaça ocorreram e maior plataforma de xadrez online do mundo, modalidade que explodiu na pandemia. Niemann negou veementemente que tivesse sido desonesto em qualquer jogo de tabuleiro real, o que seria uma ofensa infinitamente mais grave. E propôs-se a jogar nu, numa sala sem qualquer acesso a aparelhos eletrônicos, para provar que seu sucesso não passa por trapaça, mas por seu talento. “O rancor sempre foi um combustível para mim.”

Por que nu? Bem, as regras do xadrez profissional vêm sendo aperfeiçoadas há décadas para evitar falcatruas. Sobraram pouquíssimas ferramentas de burla. Ainda assim, o mundo do xadrez é de paranóicos. Há dois casos que ilustram essa mentalidade. O primeiro é de 1978. A equipe do então campeão mundial Viktor Korchnoi estava certa de que o rival Anatoly Karpov havia trapaceado ao receber um iogurte de mirtilo de sua entourage — estaria ali um indicativo de qual jogada Karpov deveria fazer para derrotar Korchnoi. O iogurte suspeito estava no contexto muito mais bizarro de que Karpov mantinha, na primeira fila da plateia, um hipnotizador. Korchnoi, por via das dúvidas, jogou de óculos de sol espelhados, para desviar qualquer olhar mal intencionado. O segundo episódio de paranoia foi em 2006 e ficou conhecido como Toiletgate. A equipe de Veselin Topalov questionou o campeão Vladimir Kramnik de usar o banheiro vezes demais durante as partidas. Quis instalar um banheiro comum aos jogadores. Depois de muitas idas e vindas da Federação Internacional de Xadrez (Fide, na sigla em francês), Kramnik pôde manter seus hábitos sanitários e sagrou-se campeão novamente. Não ficou provada nenhum tipo de má-fé ali. Voltando a 2022, aventou-se que a maneira encontrada por Niemann para trapacear contra Carlsen tenha sido por meio de um plug anal, que vibraria como a ditar que jogada o rapaz deveria fazer. Por isso, ele se dispôs a jogar com o gambito de fora. (Perdão, mas você sabe que era inevitável).

Campeões do passado vieram a público defender Niemann das acusações de Carlsen. Isso inclui Susan Polgar e Garry Kasparov, atualmente mais dedicado na oposição a Vladimir Putin, e até um editorial do The Guardian, que tem setorista de xadrez. O argumento de todos era de que não havia indícios consistentes de que Niemann tenha roubado profissionalmente. Muita convicção, pouca prova, aquela coisa. Do outro lado, acusando Niemann, além de Carlsen, estava Hikaru Nakamura, um Grande Mestre americano que já foi o número dois no mundo tornado influencer e streamer. Acontece que no dia 4 de outubro o Chess.com divulgou um relatório de 72 páginas dizendo que Niemann “provavelmente recebeu assistência ilegal em mais de 100 jogos online” até 2020, inclusive em eventos em que prêmios em dinheiro estavam em jogo. A acusação se baseia em ferramentas de detecção de trapaças como uma comparação das jogadas de um enxadrista com aquelas que supercomputadores recomendariam. O documento não tira conclusões sobre jogos presenciais e sugere “uma investigação mais aprofundada com base nos dados” de seis torneios de tabuleiro. A Fide já comunicou que convocará seu próprio painel de três experts para analisar as alegações.

Mas no dia seguinte ao da divulgação do relatório Niemann ganhou mais uma partida. Numa nova entrevista ao mesmo canal daquela primeira, Niemann avisou que o jogo era “uma mensagem para todos. Essa coisa toda começou comigo dizendo 'o xadrez fala por si' e acho que este jogo falou por si e mostrou o jogador de xadrez que sou. Também mostrou que não vou recuar e vou jogar meu melhor xadrez aqui, independentemente da pressão.” Antes de deixar o estúdio abruptamente, acrescentou, com a modéstia de um adolescente emparedado: “Foi um jogo tão bonito que não preciso descrevê-lo”.

Só deu ela. Os leitores estiveram vorazes por entender os termos do apoio de Simone Tebet a Lula. Ah, e por Beatles:

1. Metrópoles: "Reconheço seu compromisso com a democracia", diz Tebet ao apoiar Lula.

2. Metrópoles: A linguagem cristã usada por Tebet em sua declaração.

3. Metrópoles: O almoço que selou a aliança.

4. TSE: Os resultados das urnas no dia 2 de outubro.

5. CNN: Duas novas fotos dos Beatles no Cavern Pub, em 1961.

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