Edição de Sábado: Centrão, sempre à disposição

Ligamos o rádio e imediatamente escutamos o final de uma música de Lulu Santos. Logo em seguida, começa Barão Vermelho e é Cazuza quem canta Bete Balanço. Estamos dirigindo, leitor e leitora, e estamos no Brasil de 1984. Nossa viagem no tempo deu certo: basta olhar os filmes em cartaz nos cinemas de rua. Gremlins, Karatê Kid e Indiana Jones 2. Os grandes sucessos de música estrangeira são Madonna, Michael Jackson e Van Halen (que acabara de lançar Jump!).

Viemos a 1984 para uma investigação política. São muitas as dúvidas que temos no presente, mas a principal é: a frente ampla Lula-Alckmin enfrentará um Congresso recheado de golpistas que inviabilizará o governo novo ou, ao contrário, se estará diante do conhecido Centrão. Não sabemos. Entramos em nosso DeLorean (o carro que permite viagens no tempo) em pleno novembro de 2022, no meio da Copa do Mundo, para voltar na História. É aqui, agora, em meados dos anos oitenta, que encontraremos pistas importantes.

Olhando pela janela, sentimos um clima geral de abertura política e distensão policial. Mas não se engane, leitora e leitor: ainda vivemos sob uma ditadura. O presidente é um general, o ditador João Figueiredo. O país vive uma crise social devido à desnutrição infantil, desemprego e a alta inflação: o descalabro econômico do regime militar levara a aumentos de preços da ordem de 200% ao ano.

Pior: estamos presos há vinte anos nesta ditadura militar e, ao que parece, por mais que gritemos “Diretas Já!” nas ruas, o regime não dá mostras claras de que deixará o governo. A maior parte dos governadores é do PDS, o partido da ditadura. A maior parte do Congresso Nacional é da ditadura, liderado pelo mesmo PDS. As eleições para presidente da República são indiretas e serão os parlamentares do PDS que escolherão o novo ditador para o lugar de Figueiredo.

Agora, pergunto: como é, então, que um punhado de meses depois dessa nossa viagem no tempo, aquele Congresso foi lá e elegeu a chapa da democracia? Como que um Congresso dominado pelo PDS deixou de votar no candidato do PDS, Paulo Maluf, para votar na chapa Tancredo Neves-José Sarney, do PMDB?

Essa história é especialmente relevante para ser rememorada em busca de pistas sobre o que pode ocorrer dentro de poucas semanas, quando Lula-Alckmin tomarão posse após quatro anos de horror sob Jair Bolsonaro.

Bolsonaro, fã declarado dos ditadores, ainda luta contra a democracia. Não quer passar a faixa a Lula e se esforça, diuturnamente, para desacreditar o processo eleitoral. Governou sob o “orçamento secreto”, que esconde dos cidadãos o uso de recurso público. Deu máximo poder ao PP, partido de Arthur Lira e Ciro Nogueira, e se apoiou no PL, de Valdemar Costa Neto. Vivemos o ápice do Centrão, que na segunda metade do bolsonarismo no poder (2021-2022) viabilizou uma série de medidas do horror.

Decidimos embarcar no DeLorean para 1984 porque lá, naquele ano, estão as pistas mais importantes.

Sabe, leitor e leitora, quem foi o último presidente que se negou a passar a faixa na cerimônia de posse? Figueiredo. Sabe quando foi a última vez que um governo operou com um orçamento cheio de sombras, sem transparência e dificultando o controle? No regime militar. Sabe de onde vieram o PP e o PL? De rachas no PDS da ditadura.

Pois é. Viemos a 1984 para ver, com os olhos de hoje, as ações políticas tomadas no calor do momento. Prepare a lupa investigativa e coloque uma boa trilha sonora. Sugiro uma canção do Queen, lançada naquele mesmo ano: I want to break free.

A luta por liberdade

Queríamos eleições livres e diretas para presidente. Mas é claro que a ditadura, contrária tanto à liberdade quanto à vontade própria do eleitorado, lutou contra. A Câmara dos Deputados, dominada pelo PDS, negou a emenda Dante de Oliveira, que permitiria voto direto para presidente da República. A sucessão de Figueiredo seria, mais uma vez, indireta. Tal como Costa e Silva, Médici, Geisel e o próprio Figueiredo, o novo presidente seria eleito pelos parlamentares em Brasília.

Mas, desta vez, eram dois fatos históricos novos. O primeiro era que havia multidões nas ruas. Mesmo derrotada em seu grito por Diretas, a população continuava mobilizada. O segundo era que o PDS não estava unido em torno de um candidato: eram três nomes à disposição.

Os militares preferiam Mário Andreazza, ministro de Figueiredo. A parte essencialmente fisiológica do PDS preferia Maluf. Mas em 1984 já havia uma ala nova, liberal. Essa ala estava cada vez mais próxima, em valores e programas, com os democratas do PMDB. Essa última ala era liderada por Aureliano Chaves, que era ninguém menos do que o vice-presidente da República. Figueiredo e Aureliano estavam rachados havia anos.

Aureliano não estava sozinho. Com ele estavam os senadores Marco Maciel e José Sarney. Este, no caso, era o presidente nacional do PDS.

Tendo três candidatos, em vez de um, Sarney decidiu convocar prévias entre os filiados. Isso irritou profundamente os aliados de Maluf: “como assim democracia interna em um partido que detesta democracia?”, devem ter pensado.

A radicalidade foi tão grande que Sarney não só renunciou à presidência do partido como largou a filiação. De bate pronto, foi convidado por Tancredo Neves e Ulysses Guimarães a migrar para o PMDB. Sarney aceitou. Aureliano e Maciel continuaram no PDS e neste constituíram a frente liberal, dispostos a negociar abertamente com os democratas. O fim da ditadura estava, finalmente, próximo.

Maluf foi escolhido, afinal, o candidato da ditadura. Foi apoiado por Figueiredo e fez campanha ativa pelo “vamos deixar tudo do jeito que está”. Mas o PDS agora estava muito rachado: a ala liberal decidida a votar na chapa democrática.

Assim foi. Em janeiro de 1985, Tancredo-Sarney foram eleitos com os votos em série do PMDB, as deserções do PDS (a frente liberal) e a pequena, mas importante, bancada do PDT de Leonel Brizola.

Antes de seguirmos adiante, quero fazer dois registros. Primeiro, o PT: os três deputados que votaram na chapa democrática foram expulsos do partido. Entre Maluf e Tancredo, o PT pregava voto nulo (se você, leitora e leitor, pensou em “uma escolha muito difícil”, o risco é seu…). Segundo registro: o deputado Ciro Nogueira, do PMDB do Piauí, que havia anos se opunha a ditadura e que já tinha votado pelas diretas, escolheu, claro, Tancredo.

De lá para cá, enquanto o PT moderou seu discurso e sua prática política, a família Nogueira se bandeou para o outro lado do espectro político: carregando o mesmo nome do pai, o senador Ciro Nogueira preside o PP e é ministro de Bolsonaro.

Um racha do racha

Sem a frente liberal do PDS não haveria fim da ditadura militar. O candidato do regime, Paulo Maluf, venceria no Congresso. A ditadura brasileira não terminaria em 1985, mas em 1990. Talvez nem terminasse. Não teríamos a Constituição e, certamente, não teríamos também o fim do descalabro orçamentário da ditadura. Menciono aqui as obras políticas e institucionais do governo democrático que imediatamente substituiu a ditadura, aquele liderado pelo PMDB e pelo PFL, o partido que Aureliano, Marco Maciel e Antônio Carlos Magalhães, o ACM, criariam.

Mas a ditadura, ainda bem, acabou.

Desde então, por 33 anos, o país foi governado por três partidos: PMDB (Sarney e Michel Temer), PSDB (Fernando Henrique Cardoso) e PT (Lula e Dilma Rousseff). Neste caminho todo, de 1985 a 2018, PFL e PDT ajudaram a moldar “a cara” de diversas políticas públicas, além de terem auxiliado — ou barrado — ações de governos. Foram cinco, portanto, os partidos principais da Nova República.

O PFL, que depois mudaria de nome para DEM, foi perdendo força ano a ano. Não existe mais: no ano passado, tomou a desastrosa decisão de se fundir ao PSL, um balaio de gatos que crescera por ter dado guarida ao radical Jair Bolsonaro. Alguns quadros relevantes que restavam ao PFL-DEM, como Rodrigo Maia e Eduardo Paes, deixaram o partido antes da fusão que gerou o União Brasil.

O PSDB, que nascera de um racha do PMDB, respira por aparelhos. Perdeu o governo de São Paulo pela primeira vez em 28 anos. Seus quadros mais relevantes estão aposentados (como FHC) ou prestes a se aposentar (como Tasso Jereissati e José Serra). Restam dois governadores jovens, o gaúcho Eduardo Leite e a pernambucana Raquel Lyra, mas ainda é incerto se permanecerão em uma sigla tão frágil.

Dois “rachas” importantes da redemocratização, portanto, ficaram pelo caminho neste 2022: PFL-DEM e PSDB.

Já sabemos que PT e MDB continuam relativamente fortes: Lula venceu apertada eleição, mas para isso contou com a maior frente ampla política desde aquela de Tancredo-Sarney. Foi decisiva na reta final a participação da terceira colocada presidencial, Simone Tebet, do MDB.

Mas se a Nova República começou com um Congresso disposto a ajudar o governo democrático, seu estágio atual é muito diferente.

Você, leitora e leitor, pode estar pensando agora em Valdemar Costa Neto. Se estiver, sinto muito por trazer um pensamento tão desagradável neste sábado. Mas é nele que chegaremos… em instantes. Precisamos baixar o vidro da janela de nosso DeLorean para observar mais de perto o que está a nossa volta em 1984. A viagem continua.

O racha da rachadinha

A frente liberal, que rachou o PDS ao se aproximar dos democratas do PMDB, tinha acabado de criar o PFL. Mas um pequeno grupo ali achou que eles tinham ideias… demais. O novo partido não tinha nem semanas de vida quando este pequeno grupo decidiu criar sua própria legenda, o Partido Liberal (PL). O PL, portanto, é um racha de um racha. O objetivo era claro: diferentemente do PFL, um partido de direita democrática, o PL seria um partido à disposição de quem quisesse seus votos. Não seria de esquerda. Nem de centro. E nem de direita. Seria um partido disposto a jogar com quem for.

Aliás, foi na Constituinte que um grupo de parlamentares com esse perfil “à disposição” começou a dar as cartas. Logo ganharam o apelido de “Centrão”.

Na mesma época, a roda da história tinha decididamente caminhado para a democracia: o voto livre e universal foi aprovado em 1985; as primeiras políticas sociais vieram em 1986; o orçamento foi atualizado e tornou-se transparente a partir de 1987; a Constituição cidadã foi promulgada em 1988; o Ibama foi fundado em 1989 e no mesmo ano votamos diretamente para presidente.

Com isso, o PDS da ditadura perdeu totalmente seu sentido. Maluf então criou o PP. O objetivo do PP era fazer tudo o que o PDS fazia sem precisar arcar com o fardo de ser “o partido da ditadura”. O PP era a mesma coisa que o PDS, mas com outro nome. Foi um bem-sucedido rebranding.

Agora que essa viagem no tempo nos deu alguma pista sobre o surgimento dos dois partidos mais relevantes deste triste 2022 bolsonarista, o PP e o PL, vamos ter em mente o seguinte fato: você sabe que o PP de Arthur Lira e Ciro Nogueira, pais do orçamento secreto, negocia fusão com o União Brasil. Pode dar certo, pode dar errado. Não sabemos. O União Brasil conta com líderes que desde o segundo turno sinalizavam maior simpatia por Lula-Alckmin do que por Bolsonaro. O PP, como revelou o Meio essa semana, tem um de seus principais nomes, o deputado Ricardo Barros (líder do governo Bolsonaro!), falando em “ficar em cima do muro” durante 2023, avaliando a possível adesão à frente ampla. Trata-se de um passo e tanto. Típico do Centrão, claro.

Imagine, leitora e leitor, no que ocorrerá caso prosperem as conversas: o PP e o União Brasil num partido só seria... um retorno ao PDS de 1984. Do ponto de vista histórico, seria pedagógico ver esse retorno. Se este “Novo PDS” aceitar compor com Lula-Alckmin, estaríamos diante da maior conquista que o Centrão jamais terá produzido: ter recriado o PDS apenas para fazê-lo aderir a uma gestão de valores democráticos.

Essa feliz ironia se dá porque, você sabe, o Centrão é um conjunto de siglas amorfas. Seu objetivo é um só: participar do governo. Qualquer governo.

Nenhuma sigla representou melhor o Centrão na Nova República do que o PL de Valdemar Costa Neto. Antes de ser o partido da família Bolsonaro e dos bolsonaristas, o PL foi o partido de José Alencar, o empresário que serviu como vice-presidente de Lula por oito anos. O PL já teve até outro nome, PR, Partido da República, quando não era preciso nem mesmo fingir ser liberal (que é o significado daquele “L” em PL).

Pense em um presidente. Qualquer um. O PL apoiou. Agora pense em uma política pública. Qualquer uma: social, sanitária, educacional, econômica, racial. O PL votou, mas não se envolveu no mérito de nenhuma delas. O PL não está no Congresso para debater ideias, planos ou metas. Ele só está lá. À disposição.

Esta seria a definição do Centrão: parlamentares que não carregam uma única ideia, nem mesmo se veem como portadores de uma ideologia. Eles estão espalhados em diversos partidos, mas nenhuma sigla exemplifica melhor o conjunto do que o PL.

Como será o jogo partidário agora que a Nova República repete uma frente ampla (Lula-Alckmin atualizando Tancredo-Sarney) contra um presidente militar paranoico (Bolsonaro atualizando Figueiredo) diante de um Congresso que combina um Centrão turbinado, mas com muita gente de extrema-direita dentro do PL e do PP?

Brasil partido

Sim, eu sei. São muitas as siglas partidárias, são muitos os rachas, são muitos os dilemas políticos a frente e é grande a nossa polarização. Não é à toa, leitora e leitor, que nossa viagem pelo tempo se encerre com este intertítulo que brinca com as diferentes acepções da expressão: Brasil partido.

Nosso DeLorean que viaja pelo tempo voltou ao presente, novembro de 2022.

O PL elegeu 99 deputados e será maioria na Câmara que tomará posse no ano que vem. Desses, pouco mais da metade são típicos parlamentares do PL: o puro suco de Centrão. Estarão, portanto, à disposição de Lula-Alckmin, caso alguns pontos sejam mantidos. Pontos como o orçamento secreto, proteção (uma PGR amigável, como a de Bolsonaro) e alguma estabilidade parlamentar.

Mas mais de 40 desses deputados do PL são bolsonaristas. Extremistas de direita que negam o resultado eleitoral, que topam baderna nas rodovias e gritos por golpe militar.

Valdemar Costa Neto nesta semana, você viu, colocou um pé em cada canoa. Entrou com pedido no TSE para tentar fazer Bolsonaro ganhar no tapetão…, mas não negou o resultado eleitoral do primeiro turno (que elegeu os 99 deputados), além de ter ligado a ministros do Judiciário para, basicamente, botar panos quentes no próprio ato dele. Em uma frase: continua com o espírito do Centrão, mas enquanto Bolsonaro é presidente, precisa manter a aura de golpista. Do TSE, Valdemar recebeu uma multa de R$ 22,9 milhões e o bloqueio do fundo partidário. A resposta, irretocável, forçará Valdemar a escolher: recua do golpismo oportunista e volta a tocar o velho PL de sempre ou, ao contrário, vai para porta de quartel clamar por um tanque na Avenida Paulista?

Enquanto isso, o PP e a União Brasil — que podem, não esqueça, se unir para recriar o PDS — sinalizam disposição para dialogar com o governo novo. É o suco do Centrão a que estamos acostumados. O gosto é ruim, mas não surpreende: nosso paladar reconhece.

Se o golpismo dentro do PL vai superar o espírito de adesismo não é possível saber neste momento. Suspeito que, entre estar “à disposição” do novo governo ou ir para porta de quartel clamar por tanques na Avenida Paulista, Valdemar e o seu PL farão o que sempre fizeram. Mas é suspeita, não é fato. Diferente do DeLorean de Doc Brown e Marty McFly, o nosso não permite viajar ao futuro: não sabemos nem mesmo quem ganhará a Copa do Mundo, quanto mais como evoluirá o governo Lula-Alckmin, que ainda nem assumiu.

Mas se nossa viagem a 1984 pode nos iluminar em algo é quanto ao método da política: as ações práticas de um governo novo que supera a debacle militar precisam ser rápidas. Você lembra como foram rápidos os movimentos da frente ampla a partir de 1985: já naquele ano bolou e aprovou uma emenda que permitiu o voto livre e universal, incluindo os milhões de analfabetos que estavam sempre excluídos; pouco depois convocou a Constituinte; em seguida trouxe transparência para o Orçamento federal e colocou de pé políticas sociais e ambientais (com a criação do Ibama).

Não era possível, na redemocratização, dar mole. Foram 21 anos de ditadura militar: eles continuavam à espreita e qualquer vacilo poderia criar coro nas casernas e nas viúvas do horror. Um governo em letargia é presa fácil para golpistas. Já uma administração ligeira, que pragmaticamente aceita o Centrão e o coloca em movimento focado na agenda social e institucional, segue a roda da história.

*João Villaverde é jornalista, professor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York. É co-organizador (com Felipe Salto e Laura Karpuska) do livro “Reconstrução: o Brasil nos anos 2020”. É autor do livro-reportagem “Perigosas Pedaladas” (Geração Editorial, 2016), sobre o impeachment de Dilma Rousseff.

A grande farsa de Canudos

Assim como hoje, apelava-se para tudo no final do século 19: notícias falsas, discurso de ódio, guerra de narrativas, fatos alternativos, cortinas de fumaça e estratégias diversionistas, campanhas de difamação, demonização de adversários políticos, violência contra jornalistas, ameaças militares. Intrincadas teorias da conspiração eram incubadas, apenas esperando um gancho para serem acionadas, e assim criar um movimento de “nós” contra “eles”. Por mais que pareça, este filme que vemos no Brasil não é novo. O poder inflamatório das fake news já estava presente nos tempos turbulentos que se seguiram ao golpe militar que deu fim ao Império, em 1889, com base num boato plantado pelo major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro de que líderes republicanos seriam presos no dia seguinte. Coincidência ou não, o futuro sogro do escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, teve um papel relevante na Guerra de Canudos, abrindo uma verdadeira batalha de narrativas com o governador Luiz Vianna sobre quem seria o grande culpado pelo fracasso da segunda expedição militar contra os seguidores do líder religioso Antonio Conselheiro.

Era só o começo. No ano seguinte, uma teoria da conspiração praticamente cortada e colada de um fato histórico que ocorreu durante a Revolução Francesa, cerca de um século antes, foi usada como cortina de fumaça para justificar a mobilização de batalhões do Acre ao Rio Grande do Sul para massacrar o arraial perdido no sertão do país, onde calcula-se viviam entre 10 e 25 mil pessoas. O Brasil era a Vendeia, acreditava Euclides da Cunha nos artigos que escreveu antes de pisar em Canudos, numa referência à região da França que viveu uma guerra contrarrevolucionária financiada pelas monarquias europeias em 1793.

A justificativa para mobilização inédita e exorbitantemente cara dos militares brasileiros não foi a morte do herói de guerra Moreira César, comandante da terceira expedição militar, enxotada pelos sertanejos assim como as duas primeiras, até porque os métodos violentos do Corta-Cabeças não eram muito bem-visto mesmo entre os republicanos. Apelou-se para uma cortina de fumaça, divulgando-se que, assim como tinha acontecido na Vendeia original, estaria em curso uma conspiração para restaurar a monarquia no Brasil, com verbas, armas de ponta e treinamento patrocinados por grandes potências europeias. O objetivo era explicar o inexplicável: como um bando de jagunços famintos, ignorantes e mal armados tinha dado de 3 x 0 no Exército brasileiro.

Pode parecer uma heresia aplicar conceitos criados para explicar a propagação do discurso de ódio nas redes sociais para fato uma época em que os insultos ainda eram impressos. Mas é o que propõem historiadores respeitados, como o americano Robert Darton. Afinal, conspirações (que podem ser verdadeiras) e teorias da conspiração (em geral falsas) não são novidades na História. Basta lembrar o vazamento dos Protocolos dos Sábios do Sião, documento elaborado pela polícia secreta da Rússia tzarina, em que judeus supostamente revelavam em detalhes um plano para dominar o mundo. Ou mesmo o Plano Cohen, assumidamente criado por militares brasileiros, um complô comunista para tomar o poder no país que previa assassinato de autoridades, saques e quebra-quebras.

Muito antes de se pensar em Twitter, a hoje risível teoria da conspiração restauradora que deu origem ao massacre de Canudos foi desfiada em seus mais fantasiosos detalhes numa thread de sete artigos, publicados por dois militares, os irmãos Moraes Rego, na capa do jornal O Paíz, abertamente republicano. Elementos que fazem parte de qualquer manual básico de teoria conspiratória, como o da Comissão Europeia, já estavam presentes:

1. Um alegado plano secreto.

2. Um grupo de conspiradores.

3. “Elementos de prova” que parecem confirmar a teoria da conspiração.

4. Falsas sugestões de que nada acontece por acaso e que não há coincidências, de que nada é o que parece e tudo está interligado.

5. A divisão do mundo entre “bons” e “maus”.

6. A designação de pessoas ou grupos como bodes expiatórios.

Ao longo dos dias 3, 5, 7, 9, 12, 14 e 22 de setembro de 1897, os autores publicam artigos que buscam convencer o leitor que uns elementos subversivos, que eles chamam de “plásticos”, estariam por trás da resistência dos jagunços de Conselheiro às investidas republicanas. Na verdade, essas figuras enigmáticas seriam responsáveis de toda e qualquer desordem ocorrida durante os governos militares de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, inclusive a Revolta da Armada e a Revolução Federalista. Mas quem seriam estes “plásticos”?

Para os articulistas, a política nacional se dividia entre os viúvos da monarquia, que sonhavam com o Terceiro Império, e os radicais autointitulados jacobinos, que mesmo após a morte de Floriano Peixoto insistiam em chamar o ex-presidente de “Mito”. Os “plásticos” nada mais nada menos do que monarquistas fingidamente apoiadores da República que procuravam, “sem despertar suspeitas, trabalhar para desmoroná-la em ocasião oportuna”, atuando tanto na imprensa quanto no deep state da burocracia governamental. “Embora fossem poucos os que se diziam monarquistas, a República sentia-se golpear todos os dias sem saber de onde e de quem lhe partiam os golpes”, afirmavam os militares, criticando o excesso de liberdade de expressão.

Como isso vai dar em Canudos? É uma longa história, que surpreendentemente teria começado no Rio Grande do Sul. Para os Moraes Rego, espertamente os “plásticos” teriam provocado a Revolução Federalista ao acirrar a divisão entre os próprios republicanos e a excitação dos gaúchos em torno de temas políticos. Já, no Norte despolitizado, o elemento desencadeador de uma luta armada só poderia ser outro: a religião. “Sendo nos gaúchos as inclinações políticas mais excitáveis que as disposições religiosas, principiaram o conflito pelo sul, arvorando os insurrectos a bandeira republicana parlamentarista, ficando o motivo religioso para ser mais tarde utilizado, quando fosse preciso justificar o movimento para as bandas do norte, onde os sertanejos pouco inclinados à política são mais suscetíveis ao fanatismo religioso por Cristo ou outro qualquer santo que lhes queira dar”, explicaram.

Para esses teóricos da conspiração, longe de ver o pregador leigo Antonio Conselheiro uma ameaça, a Igreja Católica o teria usado para combater a perda de seus privilégios com a queda da monarquia. “Afim de prevenirem futuras responsabilidades, no caso de insucesso, corporificaram aquela diabólica aliança político-clerical na pessoa de um antigo e poderoso cabo eleitoral, que há muito conseguira dominar o espírito ignorante de grande número de seus conterrâneos, cercando a sua vida de misteriosa lenda e fingindo purificar-se com flagelações cruéis”, garantiam os articulistas. “Desta forma podia-se ocultar a intervenção restauradora dos políticos, atribuindo o movimento a uma questão religiosa, o mascarar a intervenção do clero, explicando a questão religiosa como simples resultado de um ignorante fanático.”

Instaurada a luta armada, os “plásticos” teriam mobilizado comitês no exterior para mandar aos sertões baianos “víveres em quantidade e dinheiro a rodo”, além de armas nunca vistas no país e treinamento bélico para os jagunços. Sem compromisso com a verdade, a imprensa republicana abriu espaço para a teoria da conspiração ao divulgar notícias falsas sobre apreensão de munição e armas enviadas por uma certa Unión Internacional de los Amigos del Império del Brasil. Notícias alarmantes também davam conta do vazamento de um telegrama de um certo Comitê Imperialista em Paris, com filial em Buenos Aires e Nova York, informando que oficiais italianos, austríacos e franceses estariam no Brasil para enfrentar o exército republicano. No auge da histeria, veiculou-se a informação de que uma carta para João Abade, chefe militar de Conselheiro, teria sido interceptada na Bahia, dizendo que 18 mil libras teriam sido arrecadadas para a compra de armas em Buenos Aires e Liverpool. O problema, como definiu Walnice Nogueira Galvão, ao reunir este dossiê de notícias falsas em seu livro No Calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais, é que Antonio Conselheiro não tinha o menor conhecimento disso.

Provas da conspiração monarquista jamais foram encontradas e ela foi enterrada no lixo da História. Mesmo assim, num contorcionismo lógico típico de quem caiu num rabbit hole, os irmãos Moraes advertiam aos mais incrédulos em seus artigos: é impossível dizer que Canudos “não está ligado a um plano geral de restauração monárquica, pela simples razão de ninguém ter lá visto monarquistas”. Afinal, exigir provas das acusações seria “indício de uma ingenuidade, um acanhamento de espírito, uma superficialidade de julgamento a fazer rir os nossos próprios adversários”. Hoje, é impossível não rir das fantasias em que acreditaram. Mesmo que a farsa tenha gerado uma tragédia.

*Cristiane Costa é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, onde leciona, autora de “Pena de Aluguel: Escritores Jornalistas no Brasil (Companhia das Letras, 2004)” e ex-editora do caderno “Ideias” do “Jornal do Brasil” e da revista “Nossa História”.

Os quarenta anos de 'Thriller'

O álbum mais bem-sucedido da história da indústria fonográfica. Essa é uma das muitas maneiras de resumir o disco Thriller, de Michael Jackson, que completa 40 anos no próximo dia 30. Quando olhamos para os números, é fácil entender porque a obra do rei do pop ganhou esse título. O número total de discos vendidos variam dependendo das fontes, mas o Guinness Book estima que foram mais de 67 milhões de cópias em todo o mundo. A Billboard conta mais de 100 milhões. Michael Jackson também conquistou o recorde de maior vencedor do Grammy em uma única noite, quando levou oito das 12 categorias que concorreu na edição de 1984 — entre elas, Álbum do Ano, Gravação do Ano, Produtor do Ano e Melhor Performance Vocal de Pop Masculino.

Vencer na categoria pop do prêmio mais importante da indústria musical americana é, ainda hoje, considerado um grande feito, já que artistas negros continuam reclamando que suas músicas nunca são classificadas como pop, mas sempre relegadas ao R&B, mesmo que o som produzido seja o mesmo que artistas brancos do pop fazem.

A versão do álbum lançada em 1982 tinha apenas nove faixas, todas muito bem pensadas para se tornar um álbum impactante, perene. Durante pouco mais de seis meses, Michael Jackson e Quincy Jones produziram e gravaram toda a obra. O trabalho da dupla era tão exigente que, ao não ficarem satisfeitos com o resultado final do disco, gastaram outras duas semanas mixando novamente todas as músicas.

Thriller foi uma grande aposta de Michael, que buscava um produto que lhe desse o respeito que merecia na indústria fonográfica. Apesar do sucesso de público e de crítica de seu trabalho antecessor, Off the Wall, o cantor ainda sofria com barreiras impostas pela mídia da época.

'Billie Jean'

A música para Michael Jackson era uma obsessão, a ponto de deixá-lo fora da realidade durante o período de gravações. Enquanto produzia Billie Jean, o cantor não percebeu que seu carro pegava fogo enquanto dirigia. Apesar da fumaça e das chamas que saíam do fundo do automóvel, ele somente percebeu o incêndio quando foi avisado por um motociclista. Ainda assim, enquanto pedia ajuda para ir embora, a canção não saía de sua mente.

Mesmo com toda a dedicação com a faixa, Billie Jean por pouco não foi selecionada para o álbum, já que Quincy Jones não a considerava forte o suficiente. Segundo o biógrafo Randy Taraborrelli, a música foi aceita pelo produtor após muita insistência de Michael, que teria chegado a brigar com seu parceiro por isso. Quincy ainda chegou a sugerir que a faixa mudasse de nome para “Not my lover”, o que não foi aceito. Em uma entrevista, décadas depois, Quincy negou que odiasse a música e disse que tudo não passava de especulações.

Foi com Billie Jean que Michael lançou um dos passos de dança mais emblemáticos e reproduzidos da cultura pop de todos os tempos, o moonwalk, no qual o dançarino desliza os pés para trás num efeito que simula uma caminhada para frente. Sua primeira apresentação com o novo passo foi durante a comemoração de 25 anos da gravadora Motown, em março de 1983. Com uma luva branca na mão esquerda, jaqueta de lantejoulas pretas, camisa brilhante, calça e sapatos pretos, e meias com o mesmo brilho de sua camisa, Michael impressionou todos os convidados com o passo lendário, sendo aplaudido de pé ao final de sua apresentação.

Mestre Quincy

Muito se fala da genialidade de Michael Jackson, mas Quincy Jones é fundamental na construção do álbum mais vendido de todos os tempos. O músico trabalhou com grandes nomes da música de diferentes estilos. De Sarah Vaughan a Frank Sinatra, de Amy Winehouse a Miles Davis. Também produziu séries de grandes sucessos, como o drama policial Ironside, que teve oito temporadas entre as décadas de 1960 e 70. Talvez a produção mais conhecida pelo público brasileiro seja a sitcom estrelada por Will Smith, The Fresh Prince of Bel-Air (intitulada no Brasil como Um Maluco no Pedaço).

Foi trabalhando em The Wiz, uma versão negra de O Mágico de Oz, que Quincy conheceu Michael, que lhe pediu a recomendação de um produtor para seu primeiro disco solo na fase adulta da carreira. Ele, então, se ofereceu para produzi-lo e o cantor aceitou. Começava ali a parceria de sucesso entre ambos. Juntos, fizeram os três maiores álbuns de Michael Jackson: Off the Wall, Thriller e Bad.

Mas talento e sucesso não significam necessariamente trabalho fácil. Quincy exigiu muito de Michael em cada projeto. É que o produtor costuma tirar de cada artista o melhor de si e o ex-integrante dos Jackson Five tinha um enorme potencial para ser desenvolvido. Fruto disso foi a faixa Beat It, composta por Jackson, ao ser desafiado pelo mestre Jones a criar um rock para o álbum. Não era o estilo do cantor, mas provocado a fazê-lo, criou uma canção pensando numa que o faria querer comprar o disco. Foi o que fez. Para completar a potência da faixa, Quincy convidou Eddie van Halen para fazer o solo de guitarra. “Toquei dois solos e disse: ‘Escolham o que quiserem.’ Foram 20 minutos do meu dia”, contou o próprio guitarrista décadas depois, em uma entrevista.

A era dos clipes

Os clipes fazem parte de uma ferramenta estratégica de promoção de músicas dos artistas, principalmente a partir da década de 1980, mas, até o lançamento de Thriller, nenhum cantor ou gravadora estavam dispostos a investir em superproduções do tipo. Michael Jackson muda essa lógica quando lança seus clipes para promover os singles.

Thriller ainda não havia assumido a liderança de vendas até o lançamento do primeiro videoclipe do álbum. Billie Jean chega à MTV e Michael Jackson se torna o primeiro artista negro a ter um clipe na grade de programação do canal.

Ele também foi um dos pioneiros na quebra do apartheid da indústria cultural americana, que separava artistas brancos e negros, ainda na década de 1980. A canção Beat It fez com que rádios de brancos — que tocavam principalmente rock, já dominado por esse grupo — tocassem a música de um negro, enquanto rádios de negros reproduziam o rock de Michael Jackson, um som tido como ritmo dos brancos. Pudera. O single já fazia o maior sucesso nos Estados Unidos e nenhum veículo queria perder a audiência que Michael levava.

Sucesso aterrorizante

Durante as gravações do curta-metragem de Thriller, Quincy Jones disse que Michael se tornaria o “cidadão Kane dos clipes”. “Ele vai revolucionar a história dos videoclipes”, profetizou na época. Foi o que aconteceu. Produzido com o intuito de aquecer as vendas do disco, o clipe de 14 minutos foi uma revolução na maneira de produzir esses vídeos, ao trazer um diretor de cinema e ter um custo de produção de US$ 500 mil, muito elevado para a época. John Landis, diretor de Um lobisomem americano em Londres, comandou as gravações.

O vídeo se tornou o mais aclamado pelo público e pela crítica e se tornou referência para todas as gerações de artistas. Foi o primeiro clipe a entrar para a Biblioteca do Congresso americano, pela relevância histórica, cultural e estética. Para se ter uma ideia, um dos clipes de maior sucesso de uma das maiores boy bands dos anos 1990 e 2000 foi Everybody, dos BackStreet Boys. A versão do conjunto conta a história de um grupo de amigos que vão passar a noite numa casa mal assombrada. Jackson também tentou repetir a façanha de Thriller, em 1996, e lançou o single Ghosts, uma nova faixa de terror, que ganhou clipe e uma versão em média-metragem de quase 40 minutos, juntamente com outras duas faixas do álbum Blood On the Dance Floor.

Michael passou o resto de sua carreira tentando quebrar o próprio recorde que alcançou com Thriller. Não conseguiu. Depois de romper sua parceria com Quincy Jones, ao concluir o álbum Bad, nenhum disco alcançou seus tempos áureos. Como consolo, ele continuou sendo o Senhor de Thriller. O Rei do Pop. Para os fãs, resta a nova edição lançada pelo espólio do cantor, com faixas remasterizadas, versões gravadas em outras edições comemorativas, demos e faixas que ficaram de foram da obra original.

#vaiterCopa

Tá tendo muita Copa. Então, aqui estão quatro galerias de fotos para passear por esta e outras edições do Mundial. Uma com as imagens marcantes que rolaram até aqui no Qatar (Sim, Richarlison está lá). Outra com retratos de jogadores de várias seleções, também deste ano. Para compensar a ausência de brasileiros nesta segunda galeria, a terceira, com 18 das cenas mais marcantes de todas as Copas, tem Pelé, tem Ronaldo, tem 7 a 1... E, por último, a história dos Mundiais vista por seus cartazes.

Um olho na bola, um na economia e... um bom fim de semana a todos! Os mais clicados da semana pelos leitores:

1. G1: Os memes do primeiro jogo da Copa de 2022.

2. Folha: PT quer dobradinha entre Fernando Haddad e Persio Arida.

3. UOL: Quem tem Koo tem meme.

4. Poder360: Haddad se fortalece como nome para a Fazenda.

5. G1: Teve meme também para o jogo do Brasil.

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