Edição de Sábado: Neymar e o paradoxo do lelek

Uma das imagens marcantes da Copa do Qatar é a do comercial de TV em que Neymar dança ao lado de um frango de desenho animado, símbolo da marca Sadia, uma adaptação do funk Passinho do volante: “Ah, lelek lek lek lek lek lek”. Se a parceria do camisa 10 com o galináceo saiu do ar sem deixar saudade, fica sua contribuição para o entendimento de mais um malogro da seleção brasileira. Nada como uma tradição que se atualiza: a história do nosso futebol é atravessada pelo paradoxo do moleque.

Funciona assim: a mesma molecagem que nos conduz à vitória é garantia de derrota. Sempre que vencemos, acreditamos ter vencido por sermos moleques — abusados, irreverentes, diabolicamente criativos, desconcertantes. Quando perdemos, ah, pudera, é porque somos moleques — irresponsáveis, indisciplinados, desconcentrados, sem fibra, pouco sérios. Faz parte do imaginário esportivo nacional. Em mais uma demonstração do nosso caráter bipolar, o que separa a soberba do vira-latismo cabe na mesma palavra.

Sim, este é um textão sobre a Copa que se encerra amanhã com o jogaço Argentina x França — outra vez, uma final sem o Brasil. Será que devemos nos preocupar, nós que acreditamos na paixão futebolística como um dos pilares da identidade nacional, dimensão estruturante de sociabilidade e autoestima num paisão meio desconjuntado?

Há coisas demais a serem ditas sobre um Mundial que conseguiu — contra a expectativa de muitos, e fora de época — reproduzir num país sem história no futebol, autoritário e com estética de shopping center, uma Copa eletrizante como qualquer outra. A façanha histórica do Marrocos, o triste ocaso de Cristiano Ronaldo e o belíssimo crepúsculo de Messi encheriam (encherão) tomos. Sendo este um textão brasileiro, a história que conta tem como protagonista o time de amarelo — e vem de longe, embora tenha sido atualizada no Qatar.

O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), autor de Casa grande & senzala, exaltou nosso molequismo esportivo no prefácio que escreveu para outro clássico, O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho. Explicou que a molecagem baiana, a capoeiragem pernambucana e a malandragem carioca tinham sido os “resíduos” com os quais “o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é”.

O texto de Freyre é de 1947, o que o situa na pré-história de nossas glórias esportivas, como um dos alicerces do mito fundador do “país do futebol”. O Maracanazo, marco do lado ruim da molecagem, mal azulava no horizonte. E faltavam ainda onze anos para o primeiro título mundial na Suécia, quando o mundo seria apresentado a um gênio de 17 anos chamado Pelé e à maior contribuição — ao lado da música — que a cultura brasileira lhe daria.

Megaindústria global

Passados 75 anos, o futebol se transformou numa megaindústria bilionária globalizada que nem Freyre nem ninguém da época poderia ter antevisto. Os principais jogadores das mais diversas nacionalidades atuam juntos nas mesmas ligas europeias, o que borra e complica — sem apagar — as características outrora nítidas das velhas escolas nacionais.

Datada sob certos aspectos, a exaltação freyriana da molecagem continua capaz de nos dar uma chave de leitura da atuação brasileira numa Copa em que a seleção saiu menor do que entrou. Isso porque o paradoxo do moleque atingiu um ponto de culminância e ao mesmo tempo de saturação na figura de Neymar, a mais perfeita encarnação dessa charada — moleque bom, moleque mau — em toda a história.

Maior jogador brasileiro pós-pentacampeonato e único fora de série do país em muitos anos, o ex-“menino Ney” voltou a não confirmar num mundial o destino apoteótico que um dia se previu para ele. Individualista demais para fazer o time jogar, como faz Messi, e distante demais do auge da forma para transformar o individualismo em arma mortífera, como faz Mbappé, mesmo assim foi protagonista.

A contusão no tornozelo direito, na partida de estreia, o tirou do restante da primeira fase e estimulou discussões quentes na torcida. Precisávamos mesmo dele? Uma parcela do público achava que sim — como abrir mão de um jogador tão espetacular? Outros torcedores, em parte por não engolir o papel de cabo eleitoral de Bolsonaro assumido pelo craque na campanha recente, preferiam que o Brasil fosse campeão sem ele.

Que o time precisava do talento superior de Neymar ficou evidente para todos quando ele marcou aquele golaço contra a Croácia, seu momento de maior brilho nas três Copas que disputou. E mais uma vez seu feito foi insuficiente para o Brasil mostrar ao mundo que ainda está na prateleira mais alta de um esporte em que já foi a referência maior.

O jejum e o jejum

Como muito já se disse, a seleção brasileira igualou no Qatar seu recorde de jejum de títulos — serão 24 anos no mínimo, seis ciclos, o mesmo tempo transcorrido entre 1970 (México, a última do Rei) e 1994 (EUA, a única do Baixinho). Pouco se atenta para uma diferença crucial entre uma seca e outra: naquela, tivemos bem no meio do caminho o timaço de 1982, que perdeu mas encantou o mundo. Agora, o meio do caminho cai em 2014 e marca a maior humilhação da história do esporte brasileiro.

Então estamos mesmo em decadência? Será que dá para reverter o processo? Não se trata só de títulos. Chegar a uma semifinal no Qatar teria sido uma conquista. Serviria até ser eliminado nas quartas, mas batendo um bolão como a Inglaterra, por exemplo. O futebol tem entre seus encantos o de nunca excluir o imprevisível, a porta sempre aberta para a zebra — que, diga-se de passagem, deu as caras muitas vezes no deserto.

O problema não é o hexa não ter vindo. O problema é o Brasil apresentar há tempos em Copas do Mundo um futebol pouco convincente, com viés de baixa. Certas características da eliminação atual a tornam menos honrosa que a anterior, na Rússia, diante da Bélgica — e a Croácia, que hoje disputa o terceiro lugar da competição, não tem nada a ver com isso.

A única seleção do mundo a ter levantado a taça cinco vezes jogou no Qatar um futebol com alguns lampejos vistosos, mas no geral ralo — em mais momentos do que gostaríamos de lembrar, ruim mesmo. Parecia um tanto fora de sintonia com o espírito ultracompetitivo de uma Copa em que o Marrocos, movido a talento, disciplina, preparo físico e coração, se tornou a primeira equipe africana da história a chegar a uma semifinal.

Havia talentos de amarelo em campo, alguns até cintilantes. Nunca houve exatamente uma equipe. A seleção que já teve Didi, Gérson e Falcão não se mostrava capaz de reter a bola e alternar ritmos, mesmo porque o meio de campo era despovoado na única formação que Tite parecia conceber, qualquer que fosse o adversário. O plano de jogo também era um só: bola para os pontas, e que nossa molecagem natural fizesse o resto.

Enfrentando equipes retrancadas como Sérvia e Suíça, essa limitação ficou camuflada. Diante da ingênua Coreia do Sul, na melhor partida brasileira, a velocidade dos atacantes deu conta do recado com sobra. Bastou encontrarmos uma equipe madura e capaz de tocar a bola com lucidez, regida por um sábio chamado Modric, e deu no que deu.

Deu no que deu, mas não era para ter dado. Após o pior primeiro tempo do Brasil numa Copa desde o Mundial do Uruguai, em 1930 (a semifinal de 2014 é hors-concours), seguido por um segundo tempo melhor mas ainda fraco, o juiz apitou o início da prorrogação. Pedro rolou a bola no centro do campo e Neymar deu para trás um vistoso passe... de letra! Ah, lelek!

Mau presságio? Que nada. No último minuto do primeiro tempo, Neymar tirou da cartola aquele gol de antologia. Ah, moleque! Estávamos salvos? Que nada. O que se viu depois disso foi uma seleção carente tanto de inteligência emocional quanto de inteligência mesmo, incapaz daquilo que qualquer time municipal decente sabe fazer — segurar a vitória preciosa por uns minutos, custe o que custar.

O gol de Petkovic a quatro minutos do fim chegou a ter um retrogosto de 7 a 1, como se o Brasil estivesse condenado a reviver eternamente o dia ridículo em que os maiores vencedores da história do futebol, jogando em casa, viraram infanto-juvenis diante dos alemães, incompetentes até para fazer meia dúzia de faltas ou uma cera básica que desacelerasse o massacre. Será que desaprendemos os fundamentos?

A paz de Tite

Não se trata de encontrar um bode expiatório. A ideia aqui é, em vez de discutir tática ou técnica, esboçar um certo perfil psíquico ou ético – mas pode chamar de alma – do futebol que a seleção vem jogando há anos. Menos papo de 4-2-4 e mais aquela dimensão nebulosa que Tostão aponta quando conjectura que nossa baixa produção de bons meias e nossa fartura de atacantes habilidosos espelhem uma alta do individualismo na sociedade brasileira.

Buscar culpados é esporte popular após derrotas em Copas, mas a engenharia de obra pronta tem alcance crítico limitado. Talvez seja inevitável mesmo assim. Se fosse o caso de achar um judas para malhar, o candidato mais óbvio seria Tite. De currículo invejável nas eliminatórias sul-americanas, o agora ex-técnico do Brasil, falante do indigesto titês, merece críticas por motivos variados na Copa:

1. a convocação de um lateral (Daniel Alves) sem condições de jogo;

2. na partida fatal, a escalação equivocada, com meio de campo frágil, contra uma Croácia que era puro meio de campo e nos botou na roda;

3. a substituição precoce de Vinicius Jr., nosso atacante que mais brilhou no Qatar;

4. a distância que manteve dos comandados na hora dramática dos pênaltis;

5. a determinação (ou no mínimo aceitação) de que um talento verde como Rodrygo fosse o primeiro cobrador;

6. o rápido abandono do gramado coalhado de cadáveres de amarelo após a derrota;

7. a entrevista de eliminação pouco nobre, passivo-agressiva, em que fez questão de dividir a culpa com toda a equipe e se absolveu antes que qualquer outra pessoa o fizesse: “Derrota dolorida, mas em paz comigo mesmo”.

Deixemos Tite de lado. O treinador gaúcho não é o responsável, ou pelo menos não o único, por um quadro que o antecede. O personagem principal do futebol brasileiro no Qatar foi — como já era, tem sido e pode continuar a ser por algum tempo — o moleque lek lek. O ex-futuro-melhor-jogador-do-mundo.

Cacatua escovada

Neymar ainda tem alguns anos de carreira pela frente, mas já representa um certo fracasso de nosso futebol nos últimos 20 anos, com seu rol de promessas não cumpridas em Copas. A tese que se lança aqui é que o capítulo mais decisivo dessa história foi protagonizado pelo camisa 10 na Rússia, quatro anos e meio atrás, e o resto — Qatar inclusive — é consequência.

Naquele 17 de junho de 2018, o Brasil faria sua estreia na Copa contra a Suíça. Como nenhum narrador esportivo nos deixa esquecer, estreias são momentos complicados, todo mundo nervoso e tal. E aquela não era uma estreia qualquer, mas a primeira oportunidade que o Brasil teria de mostrar que havia superado a kriptonita do 7 a 1.

De repente, a seleção entra em campo e vemos Neymar fantasiado de — o que era aquilo? Uma cacatua escovada? Sim, ou coisa parecida. Naquela hora grave e decisiva, nosso supercraque não tinha encontrado nada melhor para fazer do que chamar o cabeleireiro e encomendar uma crista frondosa, louríssima, cruzamento de moicano com Farrah Fawcett — um penteado visível do espaço a olho nu.

Alguém pode dizer: e daí? Tanto faz o que o cara tem no topo da cabeça desde que jogue bem, estamos falando de futebol e não de moda, afinal. Sim, certíssimo: estamos falando de futebol e não de moda – exatamente! A partida terminou 1 a 1 (nosso gol foi marcado por Coutinho) e Neymar saiu derrotado. Naquele dia nasceu uma narrativa de sucesso avassalador mundo afora, a de que o principal jogador brasileiro é um farsante desprezível, o maior cai-cai da história do futebol. E de penacho.

Vale refletir um pouco sobre isso. Imagine que você é, há anos, o astro, o 10 indiscutível da seleção brasileira. Sim, aquela mesmo, a da camisa mais pesada da história do futebol. Isso deposita em seus ombros certa responsabilidade, confere? A missão de honrar a dinastia de Pelé e Garrincha, defender seu prestígio contra os rumores de decadência que corriam o mundo — sobretudo nos últimos quatro anos, desde o Mineiraço.

De repente, você se enche de brios e pondera que, contundido, não estava no Mineirão e só por isso aquela desgraça fora possível — agora, finalmente, tinha chegado a hora de mostrar ao mundo que...

Mostrar ao mundo o quê?

Jogo dos bonitos

Ora, mostrar ao mundo que Neymar, o popstar, é um tremendo de um influencer, um lançador de tendências de estilo, e está no ramo de bombar nas redes. Assim, você chega para o cabeleireiro ou cabeleireira e pede um lance superespecial — ah, lelek!

Nada a ver com conservadorismo de costumes. É claro que qualquer um pode esculpir a juba como quiser. Entre a máquina de raspar e as trancinhas, a Copa do Qatar andou bem servida de penteados criativos. Além disso, há um tipo brasileiro de alegria, também presente no astro do PSG, que parece não estar ao alcance de pessoas como Roy Keane, o ex-jogador irlandês que fez sucesso ao condenar as danças com que a rapaziada canarinho comemorava seus gols.

Goste-se ou não daquelas coreografias — ou do fato de que elas foram ensaiadas em grande número, como se uma chuva de gols fosse favas contadas –, é claro que a alegria deve ser defendida. O caso da cacatua escovada é um pouco diferente.

Pela dramaticidade do contexto, pelo exibicionismo exagerado ou por uma mistura disso tudo, havia naquela crista emplumada algo de repulsivo, de antifutebolístico até. Qualquer garoto que chegasse com um cabelo daquele pedindo vaga numa pelada no campinho estaria derrotado antes de jogar — isso se o deixassem jogar. Se fosse um campeonato sério, então... Ali ficou claro que a era Neymar marca uma mudança sutil na imagem brasileira em campo — do “jogo bonito” para o “jogo dos bonitos”.

Convém fazer uma ressalva: o apito final ainda não soou para nosso camisa 10. Após a eliminação no Qatar, ele chorou bastante e declarou não saber se continuará atuando pela equipe da CBF, que no momento está sem treinador. Caso prossiga, terá 34 anos na Copa de 2026. O corpo estará mais velho, mas tudo indica que a alma será a mesma.

Talvez — apenas talvez — tenha chegado a hora de agradecer a Neymar pelos serviços prestados e repensar algumas coisas sobre o jeito brasileiro de jogar futebol.

* Sérgio Rodrigues é escritor, jornalista e roteirista de TV. Publicou entre outros livros o romance O drible (Companhia das Letras), ambientado no mundo do futebol, vencedor do prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) de 2014. Lançou recentemente A vida futura.

Tormenta peruana

Pergunta-se fora, mas também dentro do Peru: “O que passou pela cabeça de Pedro Castillo quando decidiu dar um golpe de Estado, anunciando que fecharia o Congresso e governaria por decretos um povo sob restrição de liberdades?”. Pois ao lado dos cidadãos incrédulos e de observadores confusos da crise política que se instalou no país andino na última semana, encontra-se o agora ex-presidente, perdido, lamentando ter embarcado na aventura que o converteu em cadáver político.

Ela começou na manhã de 7 de dezembro, quando a poucas horas do início de uma sessão plenária do Congresso, o então chefe do Executivo se adiantou a uma discussão dos parlamentares sobre uma terceira moção de vacância contra ele, prevista para a tarde. A medida, recurso semelhante ao impeachment no Brasil, era mais uma reação do Legislativo às várias acusações de corrupção e inaptidão que recaem sobre Castillo desde o início de seu mandato, em julho de 2021. Mas a jogada não contava com os votos suficientes para seguir adiante (seriam necessários 87 de um total de 130 congressistas), e o presidente foi avisado. Ainda assim, encurralado, lançou-se ao abismo.

Por quê, nem seu principal assessor sabe. “Presidente, ¿qué ha hecho?”, perguntou Luis Alberto Mendieta a Pedro Castillo quando o encontrou em seu gabinete, logo após o fatídico anúncio presidencial, transmitido pela televisão. Segundo relatou ao jornal El País, Mendieta levava nas mãos uma cópia impressa do discurso de defesa de Castillo contra a moção de vacância a ser enfrentada no Congresso que agora pretendia fechar. Diante do assessor, Castillo murmurou algo do tipo “era necessário...”. Fato é que o golpe, do qual nem sua família, nem seus advogados sabiam, fracassou. Ao contrário daquele dado pelo ditador Alberto Fujimori (vivo e preso aos 84) em 1992, os tanques não saíram às ruas para respaldá-lo, assim como nenhum agente de segurança se pôs de obstáculo na porta do Parlamento. Em menos de duas horas, o “outsider” de esquerda caiu.

Filho de camponeses, ex-professor rural e líder sindical nascido em Puña, na região da serra peruana, Pedro Castillo, é verdade, não sonhava com a presidência. Mudou de ideia quando, dentro de seu partido, o Perú Libre, Vladimir Cerrón, um cirurgião com pretensões, esse sim, de virar presidente, teve sua candidatura negada pela Justiça. Cerrón escolheu para ocupar seu lugar alguém que pudesse manipular... E o resto já se sabe. Ainda que por uma margem de votos pequena, Castillo ganhou as eleições, surfando na onda de rejeição à sua oponente, Keiko Fujimori, filha do ditador. Agora está preso preventivamente sob acusações de conspiração e rebelião por causa do golpe e coleciona cinco inquéritos por suspeita de tráfico de influência e organização criminosa — além de uma investigação por um suposto plágio de sua tese de mestrado.

Bastante isolado já se encontrava Castillo antes de 7 dezembro, e sua vice-presidente Dina Boluarte, hoje sem partido e com as rédeas do país na mão, havia rompido com ele antes de se sentar na cadeira. Além de ter sobre si o peso de ser a sexta pessoa a governar o país em menos de cinco anos, na intrincada saga política peruana dos últimos tempos, são vários os desafios dela — nada menos que a primeira mulher a assumir a presidência do Peru. O principal e mais urgente deles é conter os protestos crescentes em Lima e em várias outras cidades, que já incluem 18 mortos e 187 feridos, de acordo com os dados do Ministério de Saúde divulgados na última quinta-feira. Mas é ampla a sensação de que Dina, que chega ao cargo com experiência de servidora estatal e quase nenhuma habilidade política, não começou bem. Confusa e lenta em suas decisões, fez pesar sobre a população incrédula a mão forte policial, respaldada por um estado de emergência instaurado por 30 dias – algo que não acontecia em território nacional desde os conturbados anos 90 no Peru fujimorista.

As pessoas nas ruas, claro, não gostaram. São muitas, e com demandas variadas, num caldeirão de reclamos que ferve ao calor da crise e já inclui, inclusive, a saída de Boluarte. A causas legítimas, defendidas em protestos pacíficos, juntam-se atos de vandalismo, que a imprensa termina por privilegiar em suas notícias. Mas o que sobressai é uma profunda crítica ao sistema político, encarnada numa rejeição à prisão de Castillo e na exigência de que se adiantem as eleições presenciais, previstas até então para 2026. Alguns pedem uma nova Constituição, junto à dissolução do atual Congresso – aquele mesmo que “salvou” o povo peruano do golpe de Castillo. O escritor e historiador José Carlos Agüero tenta explicar a aparente contradição falando em “desprezo”. “Fazer política a partir do desprezo traz sérias consequências. A frivolidade, o cinismo, a imprudência dos grupos de interesse, acostumados a operar impunemente, acabaram por explodir — mais uma vez — pessoas em todo o Peru”, escreve em um artigo do portal Ser.pe. E continua: “Castillo é um símbolo, uma projeção. Nos protestos, ouvimos: é nosso, é por quem votamos, é quem elegemos, é alguém como nós, é camponês, é pobre, é índio, é excluído, é um ‘zé ninguém’. A verdade é que não é nem camponês, nem índio, nem pertence a organizações rurais, e a essa altura duvido que seja pobre, mas é essa imagem que defendem”.

Sujos e mal lavados

O Congresso peruano não é exatamente esse lugar que salvou a democracia peruana ao destituir o mal encarnado por Pedro Castillo. São 130 os membros da casa, que é unicameral (composta apenas por uma só câmara) e prevê um mandato de cinco anos. Na composição atual, eleita em 2021 junto com Castillo, o partido de direita Fuerza Popular detém a maioria dos assentos (24), seguido do Perú Libre (15), partido do ex-presidente, e de outros 10 agrupamentos de orientações políticas nem sempre claras. No Peru, o atual Legislativo é mais desacreditado do que era o presidente, segundo uma pesquisa do Instituto de Estudos Peruanos. Mais de 80% da população o considera corrupto e conservador, enquanto Castillo tinha seu índice de desaprovação em 62%.

Para a congressista Flor Pablo, do Partido Morado, de centro-esquerda, a rejeição generalizada ao Congresso se deve a uma crise de representação que foi se agravando no país. “Os partidos pertencem em geral a famílias e agremiações com interesses próprios, e seus donos são os que designam os candidatos às eleições. A participação cidadã na política decaiu muito, as pessoas nem distinguem mais esquerda de direita, porque tudo se faz de acordo com interesses particulares”, diz ela, que há três anos foi Ministra da Educação no governo de Martín Vizcarra.

Soma-se a isso uma espécie de pêndulo que se estabeleceu no governo: do Executivo que tem nas mãos o recurso de fechar temporariamente o Congresso para o Legislativo que ameaça destituir o presidente, e vice-versa. Em pouco mais de um ano, Castillo, com uma candidatura frágil desde o princípio, enfrentou duas moções de vacância (temia a terceira), prova de que tinha a maioria dos congressistas o tempo todo no seu encalce. Queixou-se publicamente e aos seus apoiadores de ser “perseguido”, discurso que só se intensificou e ecoou também no exterior, inspirando as mensagens de apoio que logo após sua prisão publicaram os presidentes do México, Andrés López Obrador, e da Colômbia, Gustavo Petro.

Difícil, portanto, saber o que esperar do cenário atual. O único consenso parece ser adiantar as eleições, e há quem acredite que isso estanque a crise, como o congressista Roberto Chiabra, do partido de centro-direita Alianza por el Progreso. Ex-militar e ex-Ministro da Defesa do governo de Alejandro Toledo entre 2003 e 2005, Chiabra celebra a maturidade das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru. “Eles sabem que servem ao Estado, não ao governante da vez, e demonstraram isso”. Mas a leitura de que “as instituições estão funcionando” e que por elas se salvou a democracia peruana mais uma vez é, para a historiadora Cecilia Mendez, “totalmente falsa”. “Não é a força das instituições, é a fraqueza do Castillo. O sistema político se quebrou completamente, já não existe representação no Peru. Estão tomando o poder em suas próprias mãos, é o que está acontecendo. A única saída é ver que o estado de emergência não vai mudar nada. A presidenta tem que entender que sua legitimidade não pode se basear num Congresso tão desprestigiado, nem num Executivo que é mais do mesmo”, vaticina.

Então para que novas eleições? Quem pode fazer diferente? “Eu sou um deles”, responde Roberto Chiabra. O congressista acredita que, com o impulso e a experiência dos mais velhos, os mais jovens entrarão na política e a renovarão. Diz que está pronto “para ajudar” e também para encarar as novas eleições, previstas para 2024 ou até 2023, com a renovação do Executivo e do Legislativo — e que ele pretende disputar, desta vez, como candidato à presidência. Será preciso, para quem quer que encare a prova, mais que resiliência. A cadeira presidencial peruana é das que não acomodam bem.

*Camila Moraes é jornalista e roteirista. Formada pela Universidade de São Paulo, no Brasil, e pela Universidad Nacional de Bogotá, na Colômbia, faz parte da equipe do programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, e foi repórter de cultura do jornal El País.

Eles, robôs

A natureza do ser humano é tentar antecipar o amanhã. A sobrevivência, o futuro. Isaac Asimov, em 1942, previu a robótica e definiu suas leis em um dos seus contos sci-fi. A filosofia questiona o desenvolvimento tecnológico desalinhado da moral. O cientista da computação Alan Turing criou um teste para definir quando um algoritmo atingisse o comportamento, e patamar, humano com o teste de Turing, em 1950.

O filósofo alemão Hans Jonas, em 1984, percebeu que o desenvolvimento tecnológico desenfreado sem questionamentos e de forma indiscriminada estava causando danos para o mundo. Com isso, desenvolveu o Princípio da Responsabilidade e a heurística do medo. Para ele, o sentimento de medo ao abordar novas tecnologias é o que ajudaria a antecipar as consequências negativas dela. O medo seria um fator motivacional para evitar os danos, principalmente em inteligências artificiais.

Seja por lentes filosóficas ou pela literatura de ficção científica, o amanhã encanta — e a sobrevivência aflige. Oitenta anos depois de Asimov, essa dualidade é o sentimento que prevalece quando se usa o ChatGPT. O lançamento da OpenAI registrou a marca de mais de um milhão de curiosos para testar o robô em cinco dias.

É uma inteligência artificial (IA) fascinante, que se auto referencia, continua conversas, cria histórias, responde dúvidas complexas e, também, gera desinformação. É só criar uma conta e dar início a experiência. O robô faz contas, dá conselhos. Em segundos. Como toda IA rebuscada, é surpreendente, dúbia e moralmente duvidosa. Afinal, um large language model precisa ser treinado com bilhões de inputs de textos, livros e artigos para poder replicar a naturalidade humana da escrita. Se treinado apenas com artigos científicos, sua linguagem será acadêmica. Se treinado em larga escala com materiais errados, irá replicar informações erradas. A qualidade da informação que o alimenta é o que o robô devolve ao mundo no final.

A própria OpenAI anuncia os cuidados necessários ao se abrir o ChatGPT. O robô pode desenvolver um raciocínio coerente para uma pergunta, mas estar completamente errado. Isso acontece porque não existe uma fonte que determine a verdade. E a OpenAI falta com a transparência das suas fontes, não detalha quais as raízes dos dados que usou para alimentá-lo. Além disso, replica-se o viés do material que o alimentou. Ao perguntar “quem ganhou a Copa do Mundo de 2018”, o ChatGPT responde detalhadamente que foi a França. Mesmo que não tenha sido perguntado o esporte e nem se foi uma copa masculina ou feminina. O robô presume a resposta baseado nos dados que conhece. Por isso, aos estudantes interessados em pedir ao robô para escrever uma redação inteira, essa pode não ser a melhor das ideias. Mas será um começo.

A relativização da verdade trouxe um enorme problema para as democracias nos últimos anos. A facilidade de se gerar um texto errado, mas convincente, deveria preocupar desde o início do seu desenvolvimento. Tecnologias não são isentas de ideologias, tendem a reproduzi-las. O ChatGPT reconhece esse fato, mas ainda não o corrigiu.

O robô não é a primeira IA da OpenAI, fundada em 2015 por Sam Altman e ele mesmo, o bilionário Elon Musk, que saiu da diretoria em 2018, mas permaneceu como doador. Outra ferramenta do laboratório de pesquisas viralizou no início do ano, o Dall-E. Com prompts de texto, uma IA cria imagens que representam o que foi pedido. No estilo determinado no texto. O Dall-E merece as mesmas ressalvas do ChatGPT. Existe viés nas imagens que são criadas. Pessoas públicas e políticos não são representados de maneira ultra realista justamente para evitar problemas.

A geração de imagens por prompts de texto pode ser um pouco frustrante, pela dificuldade de interpretação de detalhes. Nisso, o ChatGPT funciona como uma espécie de tecla SAP. Ao perguntar a ele “como você descreveria um poste novaiorquino de 1885 para uma IA”, a resposta pode ser inserida em outra IA, o que traz resultados bem mais realistas do que poderíamos ter descrito.

Inovações tecnológicas, vez ou outra, causam deslumbre na sociedade. Esse ano contou com passos largos das inteligências artificiais. Mas é preciso passar pelo deslumbre para enxergar criticamente o que essas tecnologias trarão para o futuro e como poderão ser manipuladas. O uso do ChatGPT está gratuito, porque no momento a OpenAI usa das interações dos usuários para pesquisa própria. É uma etapa de desenvolvimento do robô. Mas, quando pronta, para quem será vendida? E quais serão suas capacidades?

A abordagem tecnofóbica é uma; a de deslumbre, outra. Enquanto o robô não sabe responder perguntas matemáticas básicas, mas cria um código que define que cientistas brancos e homens são melhores, prefiro ficar em cima do muro.

Retrospectiva 2022: Newsletters

A equipe do Meio oferece nesta edição a curadoria de um tema que, por óbvio, nos é muito caro: newsletters. Talvez pelo peso do ano, o tema mais recorrente foi o humor. Divirta-se!

Garimpo
A news Garimpo, do Núcleo Jornalismo, reúne todo dia o que foi mais comentado nas redes sociais. Do mainstream aos fundos do Reddit. De política a gatinhos tomando banho, é entretenimento garantido antes do almoço.
(Bruna Buffara, criadora de conteúdo)

Conforme Solicitado
Humor triplamente qualificado com Arnaldo Branco, Gabriel Trigueiro e João Luiz Jr.
(Wagner Martins, diretor de Marketing)

Associação dos sem carisma
Textos divertidos e humor ácido pra quem tem pouca bateria social — ou quer entender quem tem pouca paciência.
(Nathasha Ferreira, editora assistente de conteúdo em vídeo)

Brasis
Lançada esse ano pela Ajor, a Associação de Jornalismo Digital, da qual o Meio é um dos fundadores. Mostra a diversidade do jornalismo produzido pelas mais inovadoras iniciativas de jornalismo digital do país.
(Vitor Conceição, CEO)

Gabriel Ishida
Toda semana uma discussão bem embasada e uma novidade do mundo de dados e comunicação.
(Artur Ivo, coordenador de growth)

Axios AM
Mike Allen, cofundador do Axios, oferece um panorama do que de mais importante está rolando em política e tecnologia nos Estados Unidos, de forma sucinta e inteligente.
(Flávia Tavares, editora executiva)

Meu querido diário
Allan Sieber é o mais amargurado, mal amado e deprimido humorista do Brasil. Deus, celebridades, parentes, desafetos e amigos esquisitos são desnudados enquanto o autor se flagela em textos e desenhos magníficos.
(Tony de Marco, diretor de arte)

The Onion
Tecnologia, política, comportamento, religião, artes, ciência, esportes, opinião, ponto e contraponto. Para começar seu dia nem um pouco informado, mas com muito bom humor. É a newsletter de The Onion, uma das mais anárquicas publicações de humor (mal) disfarçado de jornalismo.
(Leonardo Pimentel, editor executivo)

Muda, Brasília! O ano de 2022 está no fim e os leitores estiveram de olho na transição na capital federal. Eis os mais clicados da semana:

1. UOL: Tá na hora do Jair... abastecer o caminhão de mudança.

2. Twitter: Os erros de gravação da série Wandinha, da Netflix.

3. Congresso em Foco: Um relato da noite de terrorismo em Brasília.

4. Meio: Miguel Lago explica a lógica populista no Meio Político.

5. YouTube: Ponto de Partida — Israel e as lições para Lula e o Brasil.

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