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Edição de Sábado: Estilhaços da intentona

Quando assumiu seu primeiro mandato como presidente, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva expressou aos seus auxiliares incômodo com os militares que lhe acompanhariam como ajudantes de ordens. Achava que poderiam ser espiões. Solicitou ao chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, que fossem substituídos por civis. Carvalho explicou ao chefe que a atividade estava amparada na legislação e o convenceu de que a suspeição era exagerada. Lula logo ficou chapa dos ajudantes de ordens, num dos muitos sinais da relação amistosa que sobreviria com os representantes das Forças Armadas.

É notório, e reconhecido mesmo por antilulistas fardados, que no segundo governo do petista, com crescimento econômico e bonança orçamentária, saíram do papel projetos estratégicos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, com compra de equipamentos para as três forças. E a atuação de Lula de 2003 a 2010 revela um presidente alinhado com anseios da caserna. Desde o princípio, ele vetou qualquer proposta de revisão da Lei de Anistia ou punição por crimes de Estado na ditadura. Escolheu como primeiro interlocutor com os militares o general Oswaldo Oliva, pai de Aloizio Mercadante, que servira ao regime militar e era um entusiasta dos governos do período. No primeiro mandato do ex-líder sindical, houve um embate entre o ministro da Defesa, o diplomata José Viegas, e o comandante do Exército, general Francisco Albuquerque, ampliado por causa de uma nota da corporação defendendo a ditadura. Viegas quis demitir o general, mas Lula não deixou, e o diplomata então se demitiu. Nelson Jobim, ministro da Defesa no segundo mandato lulista, era (e é) amigo de generais e encampou pautas caras à cúpula militar, como quando formulou a estratégia para barrar a revisão da Lei de Anistia no Supremo Tribunal Federal em 2010 ou ao lançar uma Estratégia Nacional de Defesa e uma Política Nacional de Defesa; sua gestão apaziguadora tanto agradou a Lula que o petista pediu a Dilma para manter Jobim no cargo — pedido que ela atendeu, mas os dois não se bicaram e Jobim logo saiu.

A birra de Lula com os ajudantes de ordens era, portanto, um resíduo da zanga esquerdista com a herança nefasta da ditadura, mas não expressava o perfil conciliatório que está no DNA do líder petista — quase sempre aberto a negociar e mais afeito ao diálogo que ao confronto — e que rapidamente deu o tom de sua convivência com os fardados.

Desastrosa para as relações civis-militares, a politização das Forças Armadas ocorrida nos quatro anos de Jair Bolsonaro foi o ápice de um processo iniciado ainda no governo de Michel Temer e que atingiu escala monumental com seu sucessor, cujo projeto de transformar instituições de Estado em instrumentos político-ideológicos teve êxito parcial. O cenário indicava que o terceiro mandato de Lula seria, nesta área, muito mais espinhoso e conflituoso do que os dois anteriores. Desde a campanha eleitoral, setores do PT, da esquerda e da sociedade organizada alertavam que a bolsonarização dos quartéis exigiria por parte de Lula medidas enérgicas para frear a contaminação política das tropas e circunscrever as Forças Armadas às suas atribuições constitucionais, inclusive com punição para transgressões toleradas e incentivadas por Bolsonaro.

Vacinas

As primeiras medidas do presidente, contudo, demonstraram que a conciliação continuaria a permear a relação. Embora tenha retomado a necessária indicação de um paisano como ministro da Defesa — premissa da subordinação do poder militar ao poder civil interrompida por Temer e Bolsonaro —, o escolhido foi um político de centro-direita, de uma família de usineiros e industriais, elogiado por Bolsonaro e efusivamente acolhido por lideranças militares. José Múcio Monteiro, que começou a carreira na Arena, o partido da ditadura, ex-deputado, ex-ministro lulista e ex-ministro do Tribunal de Contas, foi estrategicamente pinçado para evitar atritos com a caserna. Outra vacina contra crises foi nomear como comandantes das três Forças Armadas os oficiais-generais mais antigos de cada uma delas.

Mas uma intentona se atravessou no caminho, a Intentona Bolsonarista.

O ataque às sedes dos Três Poderes perpetrado por correligionários de Jair Bolsonaro em 8 de Janeiro — cujo apelido toma emprestado o substantivo depreciativo com que os militares batizaram a revolta comunista de 1935 —, embaralhou tudo. É como se uma boiada tresloucada tivesse entrado na loja de cristais que Lula colocara Múcio para proteger.

Desde aquela famigerada tarde uma pergunta não quer calar: qual o papel das Forças Armadas na Intentona Bolsonarista? Ela pode começar a ser respondida com outra questão: os ataques aos Três Poderes teriam ocorrido daquela forma massiva e organizada se não houvesse como base para a turba o acampamento montado em frente ao Forte Apache, o Quartel-General do Exército em Brasília, onde os vândalos se mobilizaram, de onde saíram e para onde voltaram?

Como a resposta é negativa, resta evidente no mínimo a omissão do Exército ao não desmantelar as instalações. Sabia-se que familiares de oficiais frequentavam — viralizou um vídeo em que Cida Villas Bôas, a mulher do ex-comandante do Exército que em 2018 ameaçou o Supremo com um tuíte, visita o local e saúda os acampados. Ainda em dezembro, os comandantes das Forças Armadas divulgaram uma nota em que defendem as vigílias golpistas –cuja pauta principal era o pedido por um golpe militar como resposta à eleição de Lula — em nome da liberdade de expressão. Mais do que isso, em privado os comandantes concordam com boa parte da zanga dos acampados: como eles, acham que Bolsonaro foi vítima de um Judiciário e uma imprensa militantes. É aterrador, mas pode ser pior, pois a cada dia surgem evidências de que no acampamento operou o Estado-Maior do motim e que integrantes das Forças Armadas atuaram diretamente na Intentona.

Sabe-se agora, segundo depoimentos dos malfeitores presos, que as atrasadas tropas do Exército no campo de batalha protegeram quem deveriam combater. Sabe-se que, para além da “família militar”, oficiais da ativa frequentavam o acampamento do Forte Apache. Sabe-se que um dos terroristas presos por tentar explodir um caminhão dias antes da Intentona recebeu a bomba no acampamento. Sabe-se que oficiais da reserva incentivaram o golpe via redes sociais. Sabe-se que mentores da Intentona frequentavam o Palácio da Alvorada — e nunca é demais lembrar que entre os auxiliares mais próximos de Bolsonaro estavam vários oficiais-generais. O general Braga Netto, aliás, abordado em 18 de novembro por militantes que clamavam por uma virada de mesa no resultado da eleição, os tranquilizou com uma charada: “Vocês não percam a fé; é só o que eu posso falar pra vocês; tem que dar um tempo”.

Premonições

Em 3 de janeiro, duas apoiadoras que foram recebidas por Bolsonaro em seu retiro na Flórida contaram como o capitão lhes animou na conversa: “Ele falou que o melhor está por vir”. A lembrança dos avisos do ex-ministro da Defesa e da Casa Civil e das correligionárias de Orlando evoca outra declaração premonitória. Peço licença pela extensão da transcrição, mas, numa quadra histórica em que absurdos se esvaem como poeira ao vento — porque são diariamente suplantados por absurdos maiores —, é preciso relembrar cada um deles, e este, à luz da Intentona Bolsonarista, ganha contornos assombrosos. Em 20 de novembro, veio à tona um áudio enviado por Augusto Nardes, ministro do Tribunal de Contas da União, a um amigo representante do agronegócio.

“É o pior momento que a nação vai viver, mas talvez seja importante pra poder recuperar. (...) O que vai acontecer agora? Está acontecendo um movimento muito forte nas casernas. Eu acho que é questão de horas, dias, no máximo uma semana, duas, ou talvez menos que isso, que vai acontecer um desenlace bastante forte na nação. Imprevisíveis”, alertou Nardes. “Vamos perder? Sim, vamos perder alguma coisa, mas a situação para o futuro da nação poderá se desencadear de forma positiva, apesar desse principal conflito que deveremos ter nos próximos dias ou nas próximas horas.”

O ex-parlamentar gaúcho, que no monólogo rememora sua atuação ao longo dos anos para fortalecer o que chama de “sociedade conservadora”, se gaba do papel privilegiado no entorno do poder no pós-eleição. “Falei longamente com o time do Bolsonaro essa semana (...), [o presidente] tem esperança de recuperar e melhorar a sua situação física, e certamente terá condições de enfrentar o que vai acontecer no país. (...) Eu não posso falar muito até porque..., sim tenho muitas informações.” E encerra Nardes: “Os próximos dias serão nebulosos e o que vai acontecer de desdobramento não se sabe, mas certamente teremos desdobramentos muito fortes nos próximos dias.” Com a repercussão do áudio, o ministro pediu licença médica do TCU.

Voltemos a janeiro. Tantas evidências de envolvimento de membros das Forças Armadas com a Intentona Bolsonarista fizeram com que agora um enorme espectro paire sobre a relação entre Lula e os militares — o espectro da suspeição. Num café da manhã com jornalistas cinco dias após o ataque, o presidente afirmou que perdeu a confiança em parte dos fardados. Depois revelou ter descartado decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (na qual um general assumiria o comando) porque não queria ter virado uma “rainha da Inglaterra” em meio ao motim — uma forma diplomática de dizer que duvida da lealdade dos atuais chefes militares. Suspeita que os invasores tiveram a entrada no Palácio do Planalto facilitada por traidores de farda. E cobrou o seu ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Gonçalves Dias, por um apagão no setor militar que deveria ter evitado a tragédia. “Minha inteligência não existiu”, queixou-se o petista. As unidades do Exército responsáveis pela proteção do palácio tampouco agiram.

As forças de segurança do Distrito Federal falharam miseravelmente em proteger o coração da República, mas o governador Ibaneis Rocha, seu então secretário de segurança — o bolsonarista Anderson Torres — e o agora ex-comandante da PM, Fábio Augusto Vieira (afastado e preso, como Torres), não são os únicos responsáveis pelo fiasco. Admitir que houve falhas graves também por parte das forças federais, incluindo as Forças Armadas — e é evidente que houve —, não significa dizer, como fez irresponsavelmente o governador mineiro, Romeu Zema, que o governo Lula permitiu o ataque para se vitimizar. Por mais que o 8 de Janeiro tenha sido um fracasso coletivo, um dos maiores fracassos coletivos da história republicana, há um protagonista claro, Jair Bolsonaro (e seus asseclas), e vítimas igualmente distinguíveis: os Três Poderes da República, a democracia, o Estado de Direito.

Desconfiança mútua

Por seu lado, os militares mandam recados de sua insatisfação com seu novo comandante supremo e destacam que as Forças Armadas não aderiram à Intentona –o que é fato, mas um golpe de estado à antiga seria mesmo impraticável. Fazem circular queixas à declaração de Lula de que perdeu a confiança nos auxiliares de farda ou até à exclusão da salva de tiros de canhão — um ritual castrense centenário — da cerimônia de posse, para atender a um pedido de associações de pessoas com deficiência e entidades de defesa de animais. O ex-ministro do GSI Sergio Etchegoyen, um dos artífices das crises recentes entre política e caserna, classificou a declaração de Lula sobre a desconfiança nos militares como um ato de “profunda covardia” –uma vez que nenhum comandante poderia rebatê-la. Interlocutores frequentes de lideranças militares, como os ex-ministros da Defesa Aldo Rebelo e Nelson Jobim, reforçaram a necessidade de tolerância e diálogo em vez de confronto e retaliação.

Uma reunião entre desconfiados foi realizada ontem para aparar as arestas. Lá estavam Lula, José Múcio, os comandantes militares e Josué Gomes da Silva, o presidente da Fiesp alvo de outra intentona. A ideia de convidá-lo foi criar uma agenda positiva em meio à crise — planos para a indústria nacional de Defesa. Múcio, o ministro cuja cabeça muitos petistas já estão cobrando e os bombeiros tentam preservar (a princípio Lula deve resistir a entregar), disse após a reunião que os responsáveis pelo ataque a Brasília serão punidos, mas fez questão de isentar institucionalmente as Forças Armadas.

De todo modo, o mote da esquerda foi lançado. “Sem anistia” já virou coro em shows musicais. À primeira vista, se refere ao capitão ex-presidente e aos cúmplices da Intentona de 8 de Janeiro. Mas tudo indica que poderá se alastrar para demandas históricas em relação aos militares, questões sensíveis tangenciadas por todos os governos desde a redemocratização: a alteração do artigo 142 da Constituição (o que dá aos militares a atribuição de garantir a lei e a ordem e ganhou de bolsonaristas a leitura deturpada de que as Foças Armadas são um poder moderador), a revisão da Lei de Anistia, a mudança nos currículos de escolas militares e no sistema de promoções de generais ou até mesmo na lei de 2019 que reestruturou a carreira militar e alterou as regras de seguridade social do pessoal do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Até poucos dias, Lula sinalizava que não daria vazão a pressões do tipo. Já é impossível ter essa certeza. Um dos reflexos da desconfiança do presidente foi querer abrir mão de ajudantes de ordens militares, como em 2003. Desta vez não houve quem o convencesse, e sua segurança passou a ser feita por policiais federais. Não parece disposto a voltar atrás.

*Fabio Victor, repórter e editor, é autor de “Poder camuflado - Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro” (Companhia das Letras, 2022). Trabalhou na Folha de S.Paulo (1997-2017) e na revista piauí (2017-2020) e hoje dedica-se a projetos autorais

As longas pernas da mentira

Filho de imigrantes, fundador de uma ONG que ajuda animais, avós que fugiram do Holocausto, mãe vítima do 11 de Setembro, experiência profissional nos bancos Goldman Sachs e Citigroup, formado na Baruch College, atleta universitário de vôlei, MBA na NYU, casado com um farmacêutico natural de Pelotas e amigos mortos num massacre homofóbico.

É fácil criar empatia com esse personagem, eleito deputado nos Estados Unidos e dono de uma jornada no mínimo peculiar e no limite grandiosa, que ele mesmo chama de prova viva do "sonho americano". Talvez por conta de seu charme brasileiro, George Anthony Devolder Santos conseguiu ludibriar 142.673 pessoas que votaram nele.

O homem, de 34 anos, é o novo rosto da fraude eleitoral — tão alardeada pelo Partido Republicano, mas gestada em suas próprias fileiras. Santos é conservador, apoiou leis e discursos antiLGBTs e até gesto supremacista fez.

Tão extraordinária quanto sua jornada é sua habilidade de inventá-la. Ponto a ponto, cada item da biografia de Santos é falso. Até sobre seu nome pairam dúvidas. Usava Anthony Devolder na faculdade e adotou George Santos na política. Eleito em novembro de 2022 para representar Long Island e o Queens, Santos virou um assento democrata com oito pontos percentuais de vantagem. Seu adversário, o democrata Robert Zimmerman, disse que sua campanha não tinha os recursos e nem o tempo necessário para checar todas as afirmações feitas por Santos.

Finda a eleição, as mentiras começaram a cair: a ONG nunca existiu, seus avós nasceram no Brasil, Santos nunca trabalhou no Goldman Sachs, muito menos no Citigroup. Não estudou na Baruch College, nem jogou vôlei para a equipe universitária da NYU — o que significa que ele, também, não fraturou os dois joelhos, como alegou. Ao menos, não jogando vôlei. E seus colegas não morreram no massacre na boate Pulse. Sobre o caso de estelionato no Brasil, quando em 2008, em Niterói, Santos falsificou cheques de um falecido para comprar um tênis de luxo, Santos confessou ser verdade. Como não foi mais localizado, o caso estava suspenso. Sob os holofotes eleitorais, o Ministério Público brasileiro pediu a reabertura da investigação.

Virou rotina no noticiário americano o assombro com a interminável lista de lorotas de Santos. E o caso da ONG tem ainda algumas camadas a mais de sadismo. Dois veteranos de guerra afirmam que Santos sumiu com o dinheiro que teria arrecadado para a cirurgia de um de seus cachorros. Santos teria arrecadado cerca de US$ 3 mil num GoFundMe para o pitbull de Rich Osthoff. Rich nunca viu o dinheiro, seu cachorro não foi tratado e o GoFundMe bloqueou o e-mail usado para a campanha depois de uma denúncia de abuso que não foi respondida pelo responsável. Santos nega.

Como se sabe, a irmã gêmea da mentira é a hipocrisia. Num alinhamento preciso com a extrema direita americana, Santos demonizou shows de drag queens — essa turma se refere a qualquer manifestação queer como “aliciamento de menores”, chamando os LGBTQIA+ de groomers. É a pauta mais quente do momento entre republicanos. Pois a drag Eula Rochard postou no seu facebook as fotos de 2008 da terceira parada gay de Niterói acompanhada de Kitara Ravache, que é a fuça e o glitter do americano-brasileiro. Santos nega.

Bom, até aqui, já tínhamos de cachorros de veteranos maltratados a vida dupla como drag, passando por duas tragédias históricas. Hmmm, o que pode estar faltando? Roteiristas do mundo, "hold my beer", teria dito Santos. Ele recebeu doações de campanha de Andrew Intrater, primo do oligarca russo Viktor Vekselberg, que foi sancionado pelo governo dos EUA por seu papel na indústria de energia russa. Intrater e sua mulher doaram, cada um, US$ 5,8 mil para o principal comitê de campanha de Santos (a quantia máxima permitida) e outras dezenas de milhares de dólares desde 2020 para comitês ligados a ele, segundo registros da Comissão Eleitoral Federal.

Com tudo isso, a cassação deve estar a caminho, não é? Well... O Partido Republicano está em processo avançado de desagregação, efeito que figuras como Donald Trump costumam ter em tudo que tocam. Foram necessárias 15 rodadas de votação para finalmente eleger Kevin McCarthy com os 216 votos necessários para ser presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos — mesmo com a maioria republicana, ainda que bem apertada, na Casa. Uma eleição assim não acontecia desde 1860. Santos votou a favor de McCarthy todas as vezes. E foi recompensado com assentos nas Comissões de Pequenas Empresas e Ciência (claro, como não?). Não são postos muito privilegiados, mas foi o possível enquanto membros do partido Republicano e Democrata pedem pela renúncia ou cassação de George Santos.

A eleição de 2022 deixou 222 republicanos contra 213 democratas na Câmara. A maioria frágil dos republicanos, vide a eleição de McCarthy, é a menor em 90 anos. Se Santos cai, McCarthy perde um aliado. Se há um motivo concreto para o silêncio de Kevin McCarthy, é esse. Mas ter um ex-presidente e líder partidário que contou 30.573 mentiras em quatro anos como inspiração pode ser outro bem forte.

O QUE SE LEU EM DAVOS

No Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, que aconteceu ao longo da semana, especialistas estabeleceram um profícuo diálogo sobre tópicos urgentes de um mundo globalizado, mas rachado. Seja pelo nacionalismo ascendente e protecionismo crescente, pelo aumento da desigualdade, pelas consequências da guerra na Ucrânia, por tensões agudas entre os Estados Unidos e a China, e pela crise climática, que já impõe, há algumas temporadas, que se aliem pautas econômicas à preocupação com sustentabilidade. O Meio selecionou alguns dos principais temas discutidos pela elite global nos Alpes suíços e os estudos a respeito.

O cuidado com o meio ambiente e o temor com a crise climática foram tema recorrente e tópico do fórum que abriu os trabalhos do evento. “Em Harmonia com a Natureza” teve a participação da ministra brasileira do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva. Economia, sustentabilidade e tecnologia andaram de mãos dadas em Davos com a demanda urgente de transformar o discurso em prática. Nesse sentido, foi apresentado o sistema de medição usado por grandes empresas que rastreia se as suas promessas de preservação de florestas estão sendo implementadas. Segundo o artigo, as companhias estão compartilhando dados sobre suas ações e impactos de restauração florestal, com 85% relatando estar no caminho certo para cumprir os compromissos.

A primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska, em discurso emocionado, relembrou a todos os efeitos devastadores da guerra contra seu país, como a morte de civis, o impacto na vida das crianças e o aumento do custo de vida, além de reforçar que o conflito não se restringe à Ucrânia, ao promover crise de refugiados e ser permeado por constante ameaça nuclear. A guerra também evidenciou a crise energética na Europa e indicou que, se a tecnologia limpa já vem sendo o setor de investimento que mais cresce por lá, a demanda deve impulsionar ainda mais a produção desse tipo de energia.

A “tempestade perfeita” — recessão, desigualdade, interrupções na cadeia de suprimentos, aumento das taxas de juros, inflação —, descrita pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, levou ao centro do debate em Davos a importância da colaboração entre os países. Dois artigos publicados no site oficial do evento trazem a necessidade de se pensar sistematicamente, globalmente, para resolver os desafios atuais.

Enquanto no Fórum de 2022 falou-se sobre a construção do metaverso, este ano o debate avançou para apresentar a primeira pesquisa no intuito de orientar o desenvolvimento de um metaverso “seguro, inclusivo, equitativo, interoperável e economicamente viável”. Ferramentas de inteligência artificial também apareceram no debate, com a fala do atual CEO da Microsoft, Satya Nadella, de que o mundo caminha para a era de ouro da IA sustentada por avanços recentes, como a tecnologia presente nos modelos GPT. E se há enormes oportunidades com o desenvolvimento tecnológico — ressaltadas na relação com diversas áreas, como na produção de energia limpa, na saúde e na biotecnologia —, a principal discussão no setor foi a preocupação com segurança cibernética. Uma pesquisa revelou que líderes mundiais estão mais atentos aos riscos, mas, nem por isso, mais preparados.

O som do crocodilo

Em 1980, Arrigo Barnabé botou na praça, com a Banda Sabor de Veneno, sua obra-prima independente, Clara Crocodilo (Spotify), com uma surpreendente fusão entre a música popular urbana e a música erudita contemporânea. E abriu caminho para que outros artistas pudessem ousar e criar novos sons.

Mais de 40 anos depois, o álbum, que faz parte da lista dos 100 maiores discos da música brasileira feita pela Rolling Stone e tem uma de suas faixas como ganhadora do Primeiro Festival Universitário da TV Cultura de São Paulo, será relançado em vinil em fevereiro. O pacote vai contar com um box de luxo que inclui livreto com depoimento, esboço de um HQ sobre a história da personagem que batizou a obra e algumas músicas inéditas. O lançamento da reedição ficará por conta da gravadora Discos Nada e da Vermelha Discos, selo londrinense recém-criado com o intuito de produzir LPs de bandas e artistas de Londrina, como Arrigo.

O Meio conversou com Arrigo Barnabé. Confira os principais trechos da entrevista.

Como você entrou em contato com o universo artístico?
Minha mãe achava importante que os filhos aprendessem diferentes linguagens artísticas. Em casa todos fazíamos alguma coisa. O Marcos, meu irmão mais velho, estudou violino e pintura; eu estudei piano; e o Paulinho estudou piano e violão. Nós três tirávamos música juntos em Londrina e começamos a nos juntar a um grupo de amigos de lá que se interessavam. Um deles era o [Antonio Carlos] Tonelli, e o irmão dele tinha uma loja de partituras. A gente ficava um tempão na loja, e ele acabou se tornando uma referência para mim.

Você demorou pra começar a compor de fato?
Não. A gente começou a se reunir em 1968 em Londrina e no final de 1971 eu e o meu amigo Mário Cortes começamos a compor o meu disco mais famoso, o Clara Crocodilo. Em julho de 1972 terminamos o que faltava, aí eu fiquei trabalhando no texto, que foi um processo intenso de construção da narrativa e definitivamente o que demorou mais tempo em relação a todos os passos necessários para concluir o disco. Trabalhei nisso de 1972 a 1979.

Quando você se mudou para São Paulo?
Em 1970, para fazer cursinho para Engenharia Química. Meu irmão mais velho, Marcos, tinha entrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP, e ele viu que eu gostava de ver os desenhos que ele fazia no curso. Decidi mudar do curso preparatório focado em exatas para o curso de linguagens, e aquilo tudo me interessou muito. Consegui passar na FAU, fiz meio ano de curso e tranquei. Voltei para Londrina e fiquei trabalhando e fazendo música. Em 1972 voltei para a FAU, fiz mais uns 2 anos e decidi mudar para o curso de música. Entrei na Escola de Música da ECA, USP, e nesse momento eu já tinha experiência em tocar e compor.

Como você pontuou, nessa época você já era compositor, e é nítido que já tinha um estilo como músico bem direcionado. Como você chegou a esse estilo?
Um dia o Mário me mostrou, segundo ele, uma compositora mulher chamada Béla Bartók, por quem ele tinha se encantado, e eu achei a obra dela também muito interessante. Na época, a gente se perguntava se não havia mulheres fazendo música erudita, então, ela chamou nossa atenção. Daí eu fui falar com uma pianista amiga minha lá de Londrina e perguntei se ela conhecia essa compositora. Minha amiga morreu de rir e disse que Béla Bartók era um nome masculino e que por acaso estava estudando uma peça dele. Fomos visitá-la para ouvir a peça. A partir dali, adquiri certas referências e comecei a entrar no universo da música moderna e do século XX. Como os ritmos quebrados, atonalismo, dissonância e essas coisas todas marcam esse estilo de música, comecei a procurar partituras, explorar cada vez mais e aplicar nos meus sons. Eu achava que a sociedade precisava e esperava por um som assim, e quando comecei a fazer shows, vi que de fato essa percepção não estava errada. Minha ruptura foi no cerne do gosto, porque as pessoas são muito ligadas a uma ideia de beleza consoante. Eu rompi com isso.

Gosto é uma coisa que se constrói?
Você não constrói o gosto por escolha própria. É impossível dizer “eu quero ter esse gosto e vou ter”. É algo adquirido. Se você se interessa, tem curiosidade e começa a tentar entender as coisas como são, o processo de construção e reconstrução do gosto é eterno. É importante se abrir para que os horizontes estéticos se ampliem também.

Tem alguma coisa que não vale a pena ser ouvida?
Tem coisas que acho chatas de ouvir, mas tenho curiosidade. Tudo que é produção humana me interessa. São pessoas que fazem, então, ouvir esses trabalhos dá uma visão da sociedade, mesmo que seja um som que acho chato.

Você sente como se assumisse um personagem quando está se apresentando?
Sim, eu sou um ser do palco. Quando eu era pequeno em Londrina, além da música, eu e meus irmãos também adorávamos brincar fazendo peças de teatro. Nós tínhamos uns livrinhos de teatro infantil e vivíamos montando histórias do tipo “A Cigarra e a Formiga”. Então eu sempre tive essa ligação com o palco no geral, muito mais intensa do que a ligação apenas especificamente com música.

E como você entrou no mundo das produções orquestrais? Você chegou inclusive a compor uma missa para o Itamar Assumpção, certo?
Em 1983, o Jamil Maluf me chamou para fazer uma peça de Clara Crocodilo com a Orquestra Sinfônica Jovem. Essa foi a primeira vez que fiz isso de produção orquestral. Eu ia vendo as partituras e aos poucos iam surgindo ideias e uma vontade grande de fazer mais. Nos anos 90, escrevi umas coisas para a orquestra Jazz Sinfônica, depois para o Quarteto de Cordas,…e muito mais. Antes da missa para o Itamar eu já tinha feito uma missa em memória do Arthur Bispo do Rosário, e quando estava começando a escrever a missa do Bispo, o Itamar morreu.

O que é experimentalismo para você?
Para mim é experiência. Eu pego a partitura e literalmente vou experimentando tudo que vem à mente, aplico de forma prática mesmo. E se eu tocar essa fita ao contrário? Como será que vai soar? Eu sempre fui assim, porque eu queria ser químico. Eu queria ser inventor. Se eu estou na cozinha e de repente vejo umas frutas estragando, logo penso “vou misturar isso aqui com isso dali”, começo a cozinhar e vejo no que dá. Vira e mexe fica horrível, mas eu sou assim com tudo na vida, e com a minha música não é diferente. Eu tenho curiosidade de ver o resultado das misturas, das invenções, transformo o processo numa experiência, como se fosse um cientista em laboratório.

Você éi confiante em relação a esses experimentos?
Eu nunca fui confiante. Nunca. Em nenhum momento. Para mim isso sempre foi uma coisa muito angustiante, inclusive. Eu tenho certas limitações e uso uma lupa muito grande de aumento comigo mesmo para os meus erros.

E quais são suas perspectivas para próximos lançamentos e trabalhos?
Há muitos anos, faço o programa Supertônica em parceria com o Julio de Palma e pretendo continuar com esse projeto o quanto mais ele render. Ele vai ao ar todo sábado, às 23h pela Rádio Cultura FM de São Paulo e no aplicativo Cultura Digital, e falamos sobre música, vida, e o que mais der pano para a manga. Também faço produções orquestrais, como a minha última, Taxidermia em Dois Movimentos, composta para a OSUSP com participação da Orquestra Errante. Nunca parei de compor. Agora será relançado o álbum Clara Crocodilo em LP, o que é uma alegria, mas basicamente quero continuar experimentando ao máximo em todos os âmbitos.

A direita, a extrema direita, os limões e nosso futuro. Bata tudo no liquidificador e aqui estão os mais clicados pelos leitores na semana que passou:

1. YouTube: Uma espiadinha na casa, ops, não, no estúdio do Meio.

2. Fantástico: Policiais legislativos enfrentaram a horda bolsonarista.

3. YouTube: Ponto de Partida — Qual o futuro da direita?

4. Panelinha: Esquentou? Que tal uma musse de limão-siciliano?

5. Twitter: Glenn Greenwald está aberto ao debate.

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