Edição de Sábado: Guerra e paz

Perto das 19h de quarta-feira, dia em que 2023 começava oficialmente para os poderes Judiciário e Legislativo, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, entrava plácido no plenário da Corte. Sorridente até. A calva que é ato contínuo de sua testa dava muito mais protuberância às poucas franzidas que o ministro esboçaria durante seu discurso de Ts e Ds límpidos, típicos dos paulistanos mais convictos. As contrações coincidiam com as vezes em que Moraes mencionava, como que em grifo, sua certeza de participação de autoridades públicas nos atos golpistas prévios e culminantes no dia 8 de janeiro. O magistrado tomou o cuidado de defender a política “sem ódio, discriminação ou violência”. Para isso, citou o ensinamento de Martin Luther King de que “a consequência da não-violência é a reconciliação”. Mas Moraes não estava ali para falar de paz. Ao contrário. Mais adiante, defendeu que “a democracia brasileira não suportará mais a ignóbil política de apaziguamento”. Explicou que a escolha por esse caminho já se mostrara amplamente fracassada na tentativa do ministro inglês Neville Chamberlain de se concertar com Adolf Hitler. Recorreu, então, a Winston Churchill: “Os financiadores, incentivadores e agentes públicos que se portaram dolosamente, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Churchill 'um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado'”.

Podia parecer um tom dissonante da intenção de recomeço que o dia 1º de fevereiro representava para muitos. Era dia de eleição das presidências da Câmara e do Senado e, claro, de disputas e conflitos. Especialmente na Casa Alta, onde a contenda entre Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Rogério Marinho (PL-RN) se acirrava além das expectativas. Ainda assim, havia um clima geral de anseio por alguma normalidade no ambiente político. Enquanto senadores trocavam tapinhas nas costas e piadas insossas, discursos de lado a lado clamavam por “pacificação”. Por que Moraes se opunha tão veementemente a esse sentimento? A vitória relativamente folgada de Pacheco, menos de uma hora antes da fala de Moraes, deu a desavisados um reconforto temporário de que o novo governo poderia, enfim, começar — e com algum nível de acolhida no Legislativo. Na ponta oposta, porém, iniciava-se uma outra batalha. Bolsonaristas e MBListas passaram a atacar sem clemência qualquer senador sobre quem recaísse a suspeita de traição na votação no Senado. Um dos alvos preferenciais foi Marcos do Val, do Podemos do Espírito Santo, parlamentar de primeiro mandato que conversara animadamente com Jorge Kajuru (PSB-GO), Cid Gomes (PDT-CE) e Davi Alcolumbre (UB-AP). O senador ainda daria um afetuoso abraço em Pacheco, já reeleito. Naquela noite, um acuado Do Val foi às redes contar de uma entrevista que dera, no dia anterior, à revista Veja.

Aqui nesta frase cabem e se encerram os trocadilhos com a guerra que Do Val decidiu deflagrar: em vídeo explosivo, o senador soltou a bomba contra o capitão a quem servira fielmente em seus quatro anos iniciais de front. O relato: convidado pelo ex-deputado Daniel Silveira, agora de volta à cadeia, Do Val se encontrou com o ex-presidente Jair Bolsonaro em dezembro e os três conspiraram para gravar Moraes numa eventual confissão de atuação fora da legalidade. Com a gravação em mãos, eles poderiam prender Moraes, anular as eleições e consumar o golpe de Estado — ou, como preferem dizer, “salvar o Brasil”. Na versão inicial de Do Val, Bolsonaro era personagem falante e ativo do planejamento, tendo exposto, inclusive, o envolvimento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) na trama. Conforme o dia corria e Do Val era abordado por diferentes interlocutores, da imprensa ou colegas senadores, como o próprio Flávio Bolsonaro, o ex-presidente ia ficando mais calado no tal encontro. Ao fim do dia, na história que Do Val ofereceu à Polícia Federal, Bolsonaro tinha diminuído sua participação a “não demonstrar contrariedade” ao plano. E o senador havia desistido de sua disposição inicial de renunciar ao mandato.

Artes marciais

Marcos do Val é fundador do Centro Avançado em Técnicas de Imobilizações, uma escola que ensina policiais e agentes de segurança pública e privada a neutralizar inimigos sem o uso de armas — embora sua plataforma eleitoral tenha sido a pauta armamentista. Ele foi eleito senador com 863.359 votos em 2018 pelo PPS, que depois passou a se chamar Cidadania. Apesar da retórica totalmente identificada com Bolsonaro, Do Val contou com o apoio do governador reeleito do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB, partido que hoje é da base do governo Lula (Mais uma prova de que, nas trincheiras estaduais, as alianças táticas obedecem outros regimentos). Em seu site, o senador diz que é mestre em aikido e que já treinou agentes da Swat, do FBI, dos seals da Marinha americana e até da Nasa. Ostenta permanentemente na lapela do paletó um broche da Swat e caminha pelo Congresso com um sapato preto de friso dourado de gosto questionável.

Do Val entremeia cada fôlego com a palavra “inteligência”. Diz que trabalha com ela, no setor, que pensa com essa cabeça — mas não sabe a diferença entre os palácios do Alvorada, do Jaburu e a Granja do Torto. Não explica que trabalhos são esses. Só recorre a esse argumento para garantir que tudo que está fazendo é parte de uma “estratégica” (sic). Numa live gravada na manhã de sexta-feira, em que prometia revelações ainda mais escandalosas ao longo do dia, Do Val tentava justificar suas narrativas e métodos caóticos. “Quem trabalha no setor de inteligência sabe que a gente não faz um histórico de começo, meio e fim. Nós soltamos informações em cada emissora de uma forma exatamente para ludibriar o inimigo”, disse o senador. Cria política da era do zap e do Instagram e tendo sido da infantaria do Exército, está familiarizado com a missão de conquistar e manter terreno. Então, comanda seus seguidores: “Peço a esse grupo de guerreiros que compartilhe essa live”.

A inépcia dos envolvidos não deve, de forma alguma, subtrair da gravidade da trama. A transmutação do relato de Do Val tem muito mais a ver com uma (aqui, sim) estratégia de Ciro Nogueira e Flávio Bolsonaro de colocar a culpa toda nas costas de Silveira do que com mirabolantes planos de guerra. Mas, altere-se quanto for o tamanho da participação de Jair Bolsonaro, fato confirmado por Flávio é que o pai esteve na reunião golpista. A linha do tempo dos eventos daqueles meses deixa pouco espaço para que se duvide que a confabulação estava em marcha, fosse nos acampamentos diante dos quartéis ou nos porões de um palácio qualquer. Envolveu ensaio do caos, atentado à bomba fracassado e minutas golpistas. Calado ou não, o ex-presidente está cada vez mais enredado.

O vaivém de Do Val sobre o envolvimento de Bolsonaro contrasta com a constância de outros dois pontos de seus depoimentos. O primeiro é que o senador insiste em abrir uma CPI dos atos terroristas de modo a provar uma suposta conivência do governo petista com os ataques. Ele também jura que tem acesso a documentos sigilosos, sem especificar quais, que só podem vir à tona sob uma CPI e que por si só esclareceriam a confusão toda. O segundo é que Moraes é citado sempre como partícipe do enredo. Não só o ministro teria sido informado de antemão que o encontro entre os três golpistas aconteceria como teria incentivado Do Val a comparecer. Além disso, Moraes teria ouvido também de Do Val o relato completo da reunião dias depois de ela acontecer. Tudo no condicional, porque, convenhamos... Quando Moraes finalmente decidiu se pronunciar sobre o escândalo, não mencionou conversa prévia à reunião golpista. Chamou a coisa toda de “Operação Tabajara”. E cravou que, ao ouvir a “ideia genial” dos envolvidos, convidou Do Val a formalizar a coisa toda num depoimento — e o senador se recusou.

A sexta-feira, dia usualmente modorrento em Brasília, entregou o ápice da tramoia. Na tal live que Do Val gravou, além de atacar a imprensa que ele mesmo acionou e para quem deu incontáveis declarações, ele já antecipava que mais tarde, como parte de sua muito bem elaborada “estratégica”, revelaria informações estarrecedoras sobre um personagem para realizar “o desejo que vocês sempre tinham, que sempre me solicitavam e que não estavam aguentando mais os movimentos de uma tal pessoa que estava com totais poderes. Nós vamos conseguir fazer com que ele recue”. Pois à tarde, em nova entrevista, Do Val completou a manobra. Ao negar que tenha recebido qualquer orientação de Moraes para oficializar o testemunho da reunião, reforçou que pediu à Polícia Federal que “baixasse” todas as suas mensagens com o ministro que assim, por constar nos autos, perderia as condições de seguir presidindo os inquéritos sobre os atos antidemocráticos. E anunciou que solicitaria à Procuradoria-Geral da República o afastamento de Moraes. Em contrapartida, Moraes determinou a abertura de investigação sobre o senador capixaba.

Alguns analistas políticos anteviram que Do Val agiria nesse sentido. É pouco crível que a trama rampeira tenha sido essa desde o princípio, lá em dezembro. Vai ficando um tanto mais plausível que tenha sido essa a saída que a família Bolsonaro — Do Val agradece incessantemente Flávio e Eduardo desde a manhã de quinta — encontrou para tirar algum proveito da verborragia cometida pelo senador na noite de quarta. Uma CPI no Senado, com viés bolsonarista, logo no começo da nova legislatura seria, para dizer o mínimo, inconveniente para o governo Lula. Uma que resultasse na desmoralização, e consequente mobilização, do magistrado que materializou a defesa da democracia seria, em última instância, uma vitória do bolsonarismo. É improvável que os golpistas consigam levar a cabo essa etapa do desmanche do Estado Democrático de Direito. Mais improvável ainda é que desistam de tentar. Não à toa o ministro sequer cogita apaziguamento de qualquer tipo.

A paz possível

Guerra e paz, assim seguidinhas, remetem imediatamente à magistral obra de Liev Tolstói sobre as incursões napoleônicas na Rússia. Mas o autor valeu-se de uma troca que teve com o filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon em 1861 para o título de seu romance. Na conversa, Proudhon contou a Tolstói que estava trabalhando num novo livro em que analisaria o papel da guerra na história da humanidade. Sua tese era a de que “a guerra era o primeiro e mais fundamental dos legisladores, a instituidora de todas as formas do direito — do civil ao internacional — e a modeladora da vida social e dos modos de organização política e econômica”, conforme ensina o professor Thiago Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Embora Proudhon estivesse mais interessado nas guerras reais, entre nações e Estados, ele acabou ajudando a definir o ânimo bélico que rege as relações políticas quando transcendeu o conceito para um “princípio da força”. “ A tensão positiva, o choque de ideias e aspirações, as diferenças de pensamento, o embate de força entre vivos jamais deixaria de existir: eis o princípio da guerra e da força, a pequena guerra infindável e cotidiana que, para Proudhon, estaria sempre presente como amálgama das relações entre os homens”, acrescenta Rodrigues em um artigo. Proudhon nomearia seu livro A guerra e a paz e, com sua anuência, Tolstói o copiaria quase integralmente.

É, portanto, inerente à política um espírito conflituoso, de ataques e recuos estratégicos, de disputa de poder e de desejo de domínio dos adversários. E também de armistícios que possibilitam avanços coletivos em determinadas esferas. Era nesse ambiente que o ano legislativo começava no Senado. As estultices de Do Val, obviamente, suscitaram chacotas de todo tipo, até de supostos aliados. Omar Aziz (PSD-AM), perguntado do escândalo, provocou Damares Alves (Rep-DF). “Tem um ou outro que só em nome de Jesus, né, Damares?”. Ao que ela prontamente respondeu: “Só com Rivotril e exorcismo”. Num dos vários “pela ordem” que antecederam a abertura da sessão, Randolfe Rodrigues ainda fez questão de insistir na urgência de se instalar o Conselho de Ética do Senado, para apurar, além das narrativas da reunião de Do Val, o eventual envolvimento de parlamentares nos acontecimentos do dia 8.

Mas Rodrigo Pacheco tentou mudar o tom e encerrar a disputa travada em torno de sua eleição. “Deixemos para o passado tudo que nos separa, tudo que nos divide. Olhemos para o futuro como uma nova oportunidade, um recomeço”, pediu mineiramente. Era um convite para curar, pela política, as sequelas dos ataques à democracia e da acirrada negociação pelos nacos de poder. A viagem de férias a Paris de Pacheco havia sido interrompida no 8 e Pacheco precisou se ocupar da resposta institucional de defesa e reconstrução do Senado, de se alinhar às ações duras do Judiciário na caça aos golpistas e de demonstrar união com o Executivo no repúdio aos atos terroristas. Ao mesmo tempo, via crescer a candidatura de Marinho, que abrigou o último tiro do bolsonarismo para tentar comandar um poder. Quanto mais Pacheco apoiava o cerco aos vândalos, mais perdia para Marinho o voto dos senadores que torcem o nariz para Moraes.

A adesão a Marinho crescia também pela resistência de muitos ao principal cabo eleitoral de Pacheco, o senador Davi Alcolumbre, acusado de não saber dividir o poder com os coleguinhas. Alcolumbre queria seguir à frente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) por mais dois anos e, ainda, se viabilizar como candidato à presidência do Senado em 2025. Seu partido, o União Brasil, tem nove senadores e é a quarta maior bancada. Mesmo assim, com o aval de Pacheco, ele conseguiu costurar um acordo para permanecer na condução da CCJ, a mais cobiçada. Na quarta, instantes antes da votação, Pacheco parecia derrotado, sentado isolado. Sua postura era, na realidade, serenidade diante da certeza de uma vitória que viria, com a intervenção pesada do Executivo, por 49 votos a 32. Alcolumbre foi quem mais comemorou. “Vencemos, vencemos!”, vibrava ao final da sessão, distribuindo beijos e abraços, enquanto Pacheco discursava na tribuna. O governo também celebrou. Lula não pôs os pés no Senado nem na Câmara, não tuitou antes do resultado e buscou se colocar em uma posição de respeito à autonomia dos poderes. Na manhã de quinta, passada a eleição, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), já falava em uma volta ao leito da política na formação dos blocos parlamentares que está em curso. “Acredito que tanto aqui Senado quanto na Câmara não haverá mais espaço para guerrilha. Agora, as duas casas voltarão às negociações políticas.”

Wagner se frustrará com a disposição de alguns deputados federais do núcleo duro do bolsonarismo. Marco Feliciano (PL-SP) chegou à Câmara na quarta-feira falando de sua “alma beligerante”. O delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP) recitou, em latim, o mesmo chavão que Carla Zambelli (PL-SP) citaria minutos depois, em português mesmo: “Si vis pacem, para bellum” ou “Se queres paz, prepara-te para a guerra”. Tudo coordenado, igualzinho nos grupos de Telegram e WhatsApp. Duda Salabert (PDT-MG) reagiu, dizendo que a resposta a quem quer guerra deve ser “a palavra e a poesia”. Zambelli ainda contaria que vai comandar a Frente Parlamentar Conservadora pela Liberdade, com 47 deputados, e que eles formarão um “ministério paralelo” para formulação de políticas públicas. No plenário, numa eleição muito menos disputada do que a do Senado, Arthur Lira (PP-AL) se reelegeu com recorde histórico de votos, contando com o apoio inclusive do PL dos guerreiros ali de cima. As batalhas devem ficar mais no plano retórico e na negociação a cada votação por ali.

Mas as cicatrizes de uma guerra tão vil quanto essa que tenta derrotar a democracia brasileira persistem. Na segunda-feira, Gilcy Rodrigues, chefe do Serviço de Preservação da Câmara, supervisionava a remontagem do Muro Escultórico de Athos Bulcão no Salão Verde. Ele fora parcialmente danificado nos atos terroristas do dia 8, como vários outros artefatos e obras de arte do Congresso. Gilcy lamentava como o painel Ventania ainda levaria de seis meses a um ano para ser reconstruído. E apontava um pedaço da laca verde escura no muro que teve de ser substituído, depois de uma análise pictórica feita em laboratório, que alcançou 98% de similaridade com o tom original. “A gente está lutando para entregar os objetos com o máximo de integridade histórica. Se a Casa volta à normalidade com os objetos, ela tem o poder de continuar sendo o Poder Legislativo do país. O objeto que constrói a memória tem essa função de nos lembrar quem ele é, onde está e o que representa. A arquitetura moderna inseriu a arte em espaços grandes para isso. Dentro do vazio, ele conseguiu colocar memória. Afinal, quem nunca voou com o passarinho do Athos?”.

A História segundo uma repórter ‘Philomenal’

Sabe aquele seu tio-avô que não desgruda do “zap” e não acredita em vacinas, mas jura que o pai da comadre da prima viu uma mula-sem-cabeça no interior de Goiás? Aquele seu amigo crossfiteiro que vê um astro de Hollywood falando sobre ajuda a crianças com câncer e só pensa “que bíceps!”? E aquela sobrinha para a qual a arte foi inventada no TikTok? Então, junte todos, mas não esqueça de acrescentar uma pitada daquela amiga a quem as pessoas não dão o devido crédito até que ela solte uma tirada tão irônica quanto precisa. Você acaba de produzir Philomena Cunk, apresentadora da série O Mundo por Philomena Cunk, que estreou na Netflix na última terça-feira. Produzida pela BBC, ela mostra a jornalista entrevistando especialistas de destaque do meio acadêmico britânico para contar, em cinco episódios de meia hora, a História da humanidade até os dias de hoje.

Parece impossível? Não só parece, como é. Philomena não existe. Foi criada na década passada pelo comediante, roteirista e produtor Charlie Brooker para seu programa de TV e é interpretada desde então, com a maior cara de pau do mundo, pela atriz Diane Morgan. Trata-se de um mockumentary (gênero do qual vamos falar adiante), uma série cômica. Mas com um detalhe: os pesquisadores ouvidos são autênticos. E alguns não conseguem esconder a perplexidade diante de perguntas como “as pirâmides tinham aquele formato para impedir que os sem-teto dormissem nelas?”.

Com o áudio da TV desligado, é fácil confundir o programa com os excelentes documentários históricos da BBC. Locações em lugares quase exóticos (“aonde nosso orçamento e as restrições da pandemia nos permitiram ir”, ela explica), trilha sonora caprichada, imagens de arquivo bem editadas etc. Aí liga-se o áudio. Uma tomada por drone mostra Philomena caminhando por um sítio arqueológico tipicamente britânico e explicando que aquela foi a primeira cidade do mundo. Mas logo esclarece: “Mentira. A primeira cidade ficava no Iraque, mas lá é longe e perigoso para caralho.” Ah, sim, a jornalista é boca-suja.

Ora irônica, ora estúpida, quase sempre engraçada

Pode-se dizer que existem duas Philomenas. A que lê os roteiros e visita as locações é irônica, com picos de estupidez. A que entrevista os acadêmicos é estúpida com lampejos de ironia. “Jesus Cristo foi crucificado porque as pessoas não gostavam do que ele dizia. Podemos afirmar que ele foi a primeira celebridade vítima da cultura de cancelamento?” é brilhante. Na outra ponta: “Em que medida levar um tiro na cabeça comprometeu a capacidade de liderança do presidente Lincoln?” O entrevistado ainda teve a presença de espírito de responder “muito, já que ele morreu horas depois”.

O que não significa que falte algo de instrutivo à série. Indagado por Philomena sobre o que aconteceria se um cristão conseguisse comer um leão no Coliseu (“ele sobe de fase ou algo assim?”), o historiador Nigel Spivey explica que, na verdade, não há indícios de que os romanos tenham algum dia jogado cristãos aos leões. Era uma ancestral das lendas urbanas.

Nem tudo é perfeito. Há piadas recorrentes demais em torno da pronúncia errada dela e da confusão com nomes, o que, aliás, deu muito trabalho à em geral boa legendagem em português. “U Não Soviética” não tem a mesma graça de “Soviet Onion” (Cebola Soviética), ainda mais pela entrevista enveredar por uma variedade de legumes e hortaliças socialistas. Além disso, por algum motivo que só pode ser atribuído ao sadismo de Brooker, em cada episódio há uma desculpa para exibir o vídeo de Pump Up The Jam (YouTube, clique por sua conta e risco), atrocidade dançante do grupo belga Technotronic a qual não merecíamos nos lembrar.

Humor com limites

A comparação imediata é com Borat, o magistral repórter-fake de Sacha Baron-Cohen, também criado para a TV e apresentado ao mundo no filme homônimo de 2006 (trailer). No longa ele faz perguntas absurdas durante uma viagem pelos EUA ao fim da qual pretende raptar Pamela Anderson – é sério, isso acontece. Mas há algumas diferenças importantes. O “melhor repórter do Cazaquistão” é 100% caricato, e custa crer que até mesmo um redneck americano o levasse a sério. Já Philomena, calada, transpira credibilidade, com sua maquiagem discreta, seu ar impassível e seus tweeds bem cortados. Sua dicção à lá Emma Thompson é totalmente BBC... até que se percebe o que ela está falando.

E aí está a maior diferença. Borat, dentro da proposta provocadora de Baron-Cohen, é a incorreção política encarnada. Machista, homofóbico, antissemita etc. etc. Philomena é tudo, menos politicamente incorreta. Quando partem para a ironia, seus comentários sempre vão na direção de criticar as injustiças, como dizer que, com o fim da Guerra Civil, os “EUA puderam deixar para trás a escravidão e aderir 100% ao racismo institucionalizado”. Ou ainda como as sufragistas conquistaram o direito de votar nos homens que as governariam. Uma rara provocação é dizer que “os gregos também criaram um teatro para gente estúpida, ao qual deram o nome de esportes”.

É, claro, um caminho seguro. No segundo episódio, ela é orientada a seguir o roteiro para evitar polêmicas ao falar do Islã, mas acaba tendo de improvisar. A solução é inofensiva, ainda que hilariante, na linha do Monty Python – de mais a mais, referência de todo o humor britânico pós anos 1970.

Documentários, só que não

O Mundo por Philomena Cunk segue a tradição dos mockumentaries (de mock, deboche, e documentary), paródias que se aproveitam da estrutura de documentários. Em Zelig (trailer), de 1983, Woody Allen usou esse recurso com um grau a mais de sofisticação: nos países de língua não inglesa, a narração era dublada na língua local, enquanto as “entrevistas” eram legendadas. Em pelos menos dois casos, a vida imitou a arte (ou a paródia). Em 1978, The Rutles (trailer) retratava uma banda de rock pastiche dos Beatles, criada para o programa de TV do ex-Monty Python Eric Idle. Mick Jagger estava entre os entrevistados, aliás. Seis anos depois, This Is Spinal Tap (trailer) levou para as telas “a turnê de retorno” de uma banda fictícia de heavy metal, com os vícios e excentricidades do gênero elevados ao paroxismo. Então, tanto os Rutles quanto o Spinal Tap acabaram gravando discos e fazendo shows de verdade.

Não raro o mockumentary exerce a função do bobo da corte, que, entre uma cambalhota e outra, dizia na cara do rei verdades que, expostas por um cortesão sério, levariam a um machado e um cepo. É o que Philomena faz quando comenta a democracia, as guerras religiosas e os efeitos das redes sociais. Ficamos esperando outras temporadas. O mundo pode ser um só, mas ainda há muitos assuntos a serem satirizados e muitas perguntas surreais à espera de um olhar perplexo.

Um BBB nos mares do Sul

Durante a Copa do Mundo, muito se falou das transmissões dos jogos feitas por Casimiro no YouTube e do impacto delas no mundo esportivo. Mas o movimento mais interessante dessa disrupção está acontecendo em esportes de nicho, que contam com audiências globais, mas nunca tiveram grande espaço na mídia tradicional. É o caso do ciclismo e da vela. Três semanas atrás, em Alicante, na Espanha, começou a 14ª edição da The Ocean Race. A estratégia digital da regata é uma verdadeira lição de como a tecnologia pode ajudar a difundir esportes que, até então, eram marginais nos canais mais populares.

Nas últimas quatro décadas, a The Ocean Race se estabeleceu como uma das mais árduas competições esportivas. É uma regata de volta ao mundo, com barcos de altíssima tecnologia tripulados por alguns dos melhores velejadores do mundo. Competição para obcecados, como o neozelandês Peter Blake, que competiu nas cinco primeiras edições e cuja história já contamos em outra Edição de Sábado. Neste ano a competição está dividida em duas classes: os tradicionais VO65, que competiram nas duas últimas edições, só participaram da primeira perna, entre Alicante e Cabo Verde e irão participar das duas últimas pernas, quando a competição tiver voltado à Europa.

Dando a volta ao mundo estão cinco IMOCA, uma classe de barcos de 60 pés criada para regatas solitárias, ou com dois tripulantes. Agora, os IMOCA ganharam hidrofólios, que os levantam da água, e estão competindo com tripulação completa, ou seja, quatro velejadores por barco. Uma tripulação mista, com todos os barcos tendo ao menos uma mulher. Mas a maior novidade é que cada barco conta com um quinto tripulante cuja única função é ser um jornalista, equipado com boas câmeras, microfones e até mesmo um drone. Filmando e registrando tudo o que acontece a bordo e enviando despachos diários via satélite, que são editados e publicados no canal do YouTube da regata. A qualidade das imagens não decepciona, rendendo até mesmo um impressionante vídeo com filmagens de drone com os barcos em alta velocidade lutando contra uma tempestade na boca do Mediterrâneo.

Todo dia, durante o percurso de cada uma das sete pernas da regata, a organização publica um relatório de dois minutos com depoimentos, intimidades e uma atualização do que aconteceu na regata nas últimas 24 horas. Um verdadeiro BBB a bordo. A cada dois dias, o canal publica o Ocean Race Show, um programa de vinte de poucos minutos que acompanha a competição. Apresentado pelo experiente técnico e velejador Niall Myant-Best, o programa mergulha na vida em alto-mar e explica, de forma didática e simples, o que está por trás das decisões e angústias de cada tripulação.

Neste momento, os barcos estão no meio da segunda perna, entre Cabo Verde e Cidade do Cabo. A última semana foi de muito calor e angústia, com as equipes cruzando o Equador e lutando para escapar das modorrentas calmarias dos dolldrums, causadas pela zona de alta pressão do Atlântico. O traçado dos barcos, quase encostando em Pernambuco, que pode ser visto no rastreador do site da Ocean Race, é prova viva do mito fundador da descoberta do Brasil por navios portugueses que tentavam ir para Cidade do Cabo. Nos próximos dias, os barcos devem se livrar da calmaria e pegar carona nos fortes ventos do Atlântico Sul, em uma corrida desabalada até o final da semana, quando devem chegar à Cidade do Cabo.

Em 26 de fevereiro, a flotilha larga em direção ao Brasil, para a terceira e mais temida perna do percurso deste ano. O destino é a cidade de Itajaí, em Santa Catarina. Mas ao invés do caminho curto, cruzando o Atlântico, os velejadores irão atravessar o Pacífico inteiro, cruzar os três grandes cabos dos mares do Sul. É uma perna de mais de 20 mil quilômetros, a maior da história da competição. Vai colocar tripulações e barcos à prova, e certamente renderá imagens impressionantes e possíveis recordes de velocidade. De Itajaí, os barcos vão para Newport, nos Estados Unidos, e de lá cruzam o Atlântico para Aarhus, na Dinamarca, dão uma passada por Kiel, na Alemanha, e partem para a perna final, largando em 15 de junho de Haia para Genova. Na última edição da Ocean Race, em 2018, depois de 126 dias de regata a diferença de tempo entre o vencedor e o segundo colocado foi de apenas 16 minutos. Vale dar uma espiada.

O golpe nosso de cada dia esteve longe dos mais clicados pelos leitores da semana. Ei-los:

1. Olhar Digital: As imagens da passagem do cometa verde pela Terra.

2. YouTube: A dança da Wandinha original.

3. Fantástico: As doenças que atingem os ianomâmi na tragédia humanitária.

4. Folha: Lições de um videogame à manivela.

5. Metrópoles: Morre o ator Ilya São Paulo.

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