Edição de Sábado: O Brasil em forma de passarela
Daqui a uma semana, o Carnaval começa de maneira oficial. As escolas de samba que ensaiaram, os blocos que já saíram, as festas que já ocorreram: o que se passou nas últimas semanas tende a ser uma sombra do que vai ser deslanchado nas ruas em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Recife e Olinda a partir do sábado, dia 18 de fevereiro.
Será o primeiro Carnaval “cheio” desde 2020, o último antes da declaração da Covid-19 como pandemia pela Organização Mundial de Saúde. Em 2021, não houve Carnaval. Em 2022, o Carnaval oficial foi deslocado para abril, puxado pelas escolas de samba nos sambódromos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Com exceção das festas privadas, de alguns que se aventuraram de clandestinos em fevereiro no Rio de Janeiro e de outros que saíram em grande parte desassistidos pelo poder público em abril, a nota do Carnaval de 2022 foi dada pelas ruas vazias — com destaque para os cancelamentos em Salvador, Recife e Olinda. O Carnaval de 2023 vem inteiro pois será um carnaval com rua e avenida, blocos e grupos, trios e escolas de samba, bailes e cortejos, tudo ao mesmo tempo agora nas metrópoles brasileiras.
O que podemos esperar?
De óbvio, muita gente. A Prefeitura de São Paulo trabalha com a estratosférica marca de 15 milhões de foliões nas ruas. A empresa pública responsável pelo turismo na cidade do Rio de Janeiro, a RioTur, espera, só nos blocos de rua, cinco milhões de foliões, amparados pela babel sanitária de 34 mil banheiros químicos. A Secretaria de Municipal de Cultura e Turismo de Salvador aguarda 800 mil turistas, secos pelos trios e blocos que não saem durante um carnaval há três anos. Em Belo Horizonte, a Belotur projeta 5 milhões nas ruas. De acordo com a Prefeitura do Recife, a folia deve fazer circular 4 milhões de pessoas pelas ruas da capital pernambucana e pelas ladeiras e cantos da vizinha Olinda.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima que o Carnaval de 2023 deve movimentar R$ 8,18 bilhões em receitas, ainda 3,3% aquém do volume pré-pandêmico de 2020 (a preços de janeiro de 2023). É o suficiente para sustentar um salto num período-chave para o turismo: em 2021, sem carnaval, foram apenas R$ 4,82 bilhões de volume; em 2022, com um carnaval meia-bomba, R$ 6,45 bilhões. Ainda de acordo com a CNC, o que detém uma recuperação ainda maior no Carnaval de 2023 é a combinação de preços e juros altos, além do comprometimento maior da renda do brasileiro.
Com o retorno em massa dos foliões à rua, devemos esperar também o regresso dos trabalhadores que buscam sustento na informalidade, às margens da festa. Um indício veio em janeiro deste ano da Prefeitura do Rio, ao abrir inscrições para credenciar e treinar 10 mil vendedores ambulantes para atuarem no Carnaval. Segundo reportagem do jornal Extra, foram mais de 38 mil inscritos, que tiveram de ser sorteados.
Para além das cifras, o Carnaval de 2023 será um de muitos “pós”. Será pós-pandêmico, ou melhor ainda, pós-surtos pandêmicos. Em alguns sentidos, tende a apresentar algo do Carnaval de 1919, quando o Rio de Janeiro – à época sede do maior carnaval do Brasil, de longe – viu centenas de milhares de foliões tomarem as ruas menos de quatro meses depois de um devastador surto da Gripe Espanhola. Como será (e como já vem sendo o pré em 2023), 1919 foi um carnaval de testemunhas de uma tragédia sanitária e econômica. Naquele outro carnaval, mais que centenário, grupos carnavalescos cariocas realizaram desfiles pela primeira vez em anos, por conta do esvaziamento das folias anteriores pela chuva, pela crise e pela Grande Guerra (sobretudo em 1918, quando grandes sociedades e ranchos optaram de forma quase unânime pela suspensão do carnaval de rua, em respeito ao conflito). Multidões afluíram às ruas, com foco maior no Centro da cidade — no auge, chegou a estimar à época o jornal A Noite, o equivalente a 40% da população teria se juntado à festa. O número, decerto exagerado, ecoa dois dados de realidade: (1) quem registrou a festa saiu empolgado com o que viu; e (2) as ruas e avenidas por onde passaram grandes sociedades, ranchos e outras agremiações de fato lotaram, como pode ser atestado por imagens.
Aqueles que, em 1919, conseguiram lugar para assistir das calçadas, das sacadas ou mesmo do alto de postes presenciaram, dentre outras reminiscências artísticas da pandemia, a passagem de duas colossais xícaras de chá como alegorias nos desfiles de duas sociedades carnavalescas diferentes — era o “Chá da Meia-Noite”, a bebida lendária que, diziam alguns, abreviava a vida dos pacientes mais graves durante a Gripe. Outra sociedade desfilou estátuas e ilustrações de figuras carecas, para lembrar tanto da queda de cabelo percebida por alguns sobreviventes quanto da caça por tônicos e tratamentos milagrosos para a calvície. A Grande Guerra, encerrada em novembro de 1918, também foi lembrada, em canções, alegorias e fantasias que tinham, no mais das vezes, o abdicante Kaiser Guilherme II, da Alemanha, como alvo de zombaria.
Fora do script público dos grupos carnavalescos, corre em 1919 outra história, de efeito mais duradouro: a transformação dos papeis de gênero, representada nos extremos da “melindrosa” e do “almofadinha”. De um lado, a mulher jovem que arriscava o cabelo e o vestido mais curto, ousava fumar em público e, às vezes, recorria a itens masculinos; do outro, o homem também jovem que se aventurava para além dos tons escuros no guarda-roupa, dispensava barbas e bigodes espessos e dançava com graça. A essas ousadias, ainda restritas a poucas e poucos, correspondiam outras, como o flerte semipúblico e o entoar conjunto, por homens e mulheres, de canções tidas como obscenas. Um senso de descarga de energias represadas pela Grande Guerra e drenadas pela Gripe Espanhola foi capturado nas linhas da cronista Cecília Bandeira de Mello, de pseudônimo Chrysanthème, que mediu a temperatura do Pré-Carnaval em Petrópolis, do então repórter Austregésilo de Athayde, que circulou entre os bailes cariocas e especulou ter visto um fantasma, e de Mário Filho e Nelson Rodrigues, irmãos que, meninos, memorizaram cenas e sons daquele Carnaval para relatar décadas mais tarde. Para Nelson, entre outras imagens, ficou eternizado o umbigo de uma foliã vestida de odalisca.
Ao comparar 2023 com 1919, é curioso perceber como certos debates em torno do Carnaval são persistentes. Um deles: deve o Estado subvencionar os festejos e os grupos carnavalescos? No pós-pandêmico 1919, o jornal A Noite se meteu na polêmica, que mobilizava porta-vozes desgostosos com a incivilidade dos carnavais cariocas:
“Ao governo cabe também uma grande dose de parabéns pelo êxito carnavalesco, pelo auxílio que prestou às sociedades para a confecção dos préstitos. A muita gente causa escândalo esse auxílio. É curioso, porém, que não seja essa gente que se escandalize com as gratificações, negociatas e subvenções escandalosas que todos os dias todos os governos fazem. Se o Carnaval é a festa essencialmente popular, e se o dinheiro do Tesouro é dinheiro do povo, que mal pode haver em que uma migalha desse dinheiro, em geral tão mal gasto, seja queimado para divertimento da população?”
De 2023, como de 1919, é razoável esperar a inovação na forma de novos sons, novas modas e novos grupos. Data de 1919, por exemplo, o primeiro carnaval da história do Cordão da Bola Preta, hoje o maior bloco do Rio de Janeiro.
É natural também esperar o reviver de velhas tradições. A professora e podcaster Gabriella Moreira sairá de baiana em pelo menos 19 escolas de samba do Carnaval do Rio de Janeiro. “Pelo menos”, pois ainda existe a possibilidade de se desfilar em mais duas alas de baianas. O rol de Gabriella neste ano vai da célebre Avenida Marquês de Sapucaí à Avenida Ernani Cardoso, novo destino das escolas do terceiro grupo para baixo. “Ser baiana é algo que a gente vai aprendendo e entendendo a importância desse papel ao longo do tempo”, diz Gabriella, que, logo na estreia, em 2010, foi campeã pela Unidos da Tijuca. Hoje, ela se articula num grupo de WhatsApp com outras baianas, para não deixar nenhuma escola sem a ala. “É a gente usando as tecnologias de agora para melhorar a festa. Não é segredo para ninguém como é escasso o número de baianas nas escolas. Também por isso que desfilo em várias: faltam pessoas dispostas a serem da ala, seja por questões religiosas, de saúde e também pelo tratamento de algumas escolas com as baianas, com fantasias pesadas e sem o mínimo de noção que é uma ala, em geral, de senhoras”, explica.
É um carnaval de reencontro para Aldione Senna, passista Estandarte de Ouro pela Unidos de Vila Isabel em 1998 e 2000, instrutora de passistas espalhadas pelo mundo e hoje madrinha da ala de passistas da Estácio de Sá, aos 67 anos de idade. Durante a pandemia, depois de cinco anos afastada da Sapucaí, Aldione se reaproximou do Carnaval por meio da fundação da Associação dos Passistas do Brasil, anseio antigo do segmento. “Eu nem sei mensurar o que é esse carnaval para mim. Eu espero que seja de superação para todos. O fora-de-época, de 2022, já foi de superação. Mas neste precisamos mostrar que nós somos a folia, nós somos o Carnaval. Eu passei por dois Covids. Num deles, quase morri. Se passei por esses dois, ainda ficarei muito tempo aqui”, celebra.
Não faltará ocasião para muitos se reencontrarem na folia. Em São Paulo, devem sair 511 blocos. No Rio de Janeiro, contam-se 415 blocos que, com o repeteco nas saídas, devem fazer 456 desfiles. Nas duas cidades, houve uma ligeira redução de 2020 para 2023 nos pedidos de inscrição realizados antes do Carnaval: em São Paulo, de 865 blocos interessados em desfilar em 2020 para 663 em 2023; no Rio, de 754 para 613, no mesmo período — níveis mais próximos a 2019. Dois anos de inatividade ou subatividade levaram alguns grupos carnavalescos estabelecidos ao limite, enquanto outros, mais novos, ascenderam para ocupar o vácuo. No cada vez mais agitado Carnaval de Belo Horizonte, os desfiles passarão de 500 em 2023, número semelhante ao de 2020, puxados por 473 grupos carnavalescos — vinte a mais do que três anos atrás. Em Salvador, os sete circuitos oficiais voltarão a ser percorridos pelos trios elétricos, com destaque para a parte da festa que acolhe a “pipoca”, com 80 trios sem cordas. No Recife, o mote oficial da Prefeitura é #VolteiRecife, título do clássico frevo dos anos 1950, em que o compositor Luiz Bandeira exalta o retorno de um folião afastado à festa na capital pernambucana — desta vez, o retorno será coletivo, da multidão: a folia recifense terá 44 polos, com cerca de 2.800 apresentações. Em Olinda, além das orquestras, troças e blocos puxando o frevo, haverá ainda outro ritmo em destaque na programação oficial: o brega, na sua variante pernambucana.
O Carnaval de 2023 será também pós-eleitoral. Será realizado depois não apenas das eleições de 2022, mas da tentativa de golpe da extrema direita em 8 de janeiro e dos primeiros sinais, claros, de mudança de guarda nas políticas para a Cultura (com o Carnaval no horizonte). A atual ministra da Cultura, Margareth Menezes, é também estrela da música e do Carnaval da Bahia. Há algumas semanas, na recepção aos servidores que, com a extinção da pasta da Cultura pelo governo Bolsonaro, estavam alocados no Ministério do Turismo, a ministra fez de um samba-enredo o mote do seu discurso. Aos funcionários reunidos no Bloco B da Esplanada dos Ministérios, Margareth Menezes parafraseou, citou e cantou trechos de “Aquarela Brasileira”, do compositor Silas de Oliveira. O samba, que o Império Serrano desfilou em 1964 e, de novo, em 2004, canta a beleza e a diversidade do Brasil: “Vejam esta maravilha de cenário / É um episódio relicário / Que o artista, num sonho genial / Escolheu para este carnaval / E o asfalto, como passarela / Será a tela... do Brasil em forma de aquarela”. No Carnaval de 2023, a ministra será homenageada no Carnaval de Salvador, do Recife e do Rio de Janeiro, onde se espera que desfile pela Mangueira, no Domingo de Carnaval, no enredo “As Áfricas que a Bahia canta”. Na gravação oficial do samba mangueirense, realizada no ano passado, a hoje ministra já fizera uma participação.
As escolas de samba estão também no horizonte do casal presidencial. Ainda durante a pré-campanha, em julho de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva destacou a uma plateia do mundo do samba e da folia reunida no Rio de Janeiro, a importância de trazer o Carnaval “para o orçamento do Estado”. Já em fevereiro deste ano, a esposa do presidente, a primeira-dama Janja Lula da Silva, aceitou o convite da Imperatriz Leopoldinense para ser madrinha da Velha Guarda da escola.
O contraste com as correntes de opinião e de ação política que sustentavam o governo anterior não poderia ser mais gritante. No vocabulário de luta dos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, a “classe artística” figura como uma inimiga a ser desnudada, desassistida e combatida; a “Lei Rouanet”, como uma bolsa-vagabundo; e o “Carnaval”, como a antítese de um Brasil próspero, íntegro e trabalhador, quando não um repositório de doenças físicas e espirituais. Durante o auge da pandemia, redes de apoiadores do ex-presidente fizeram circular um meme que associava a Covid-19 à punição divina por blasfêmias cometidas durante os carnavais anteriores. Não nos espantemos se a ideia sofrer uma reciclagem às margens do Carnaval de 2023, pois, no Brasil, o ódio ao Carnaval passa pela vigilância e pela volúpia de quem odeia.
Para o doutor em História Comparada pela UFRJ Gabriel Trigueiro, a chave para a demonização do Carnaval no Brasil no contexto das guerras culturais é a raça. “Mesmo com a ascensão de supremacistas brancos no cenário político atual, ainda há um custo social grande em ser um racista aberto. Daí, bater no Carnaval é um dog whistle [no literal, um apito-de-cachorro; no figurado, uma mensagem de ódio cifrada] bem efetivo, pelo peso da contribuição e da ancestralidade africana em tudo que envolve a festa”, afirma Trigueiro. “As nossas elites até se apropriam do Carnaval do jeito que dá, com áreas VIPs e camarotes, mas retiram a fórceps qualquer elemento de ancestralidade e raça do negócio. Vira um símbolo nacional sanitizado e branco.”
Com suas contradições longe de serem sanadas, o Carnaval deste ano será de cidades em transição. Testará as administrações municipais que assumiram em 2021 e não presidiram até agora um evento capaz de mobilizar uma capital inteira — em contraste com o Réveillon (mais localizado) e com a Copa do Mundo (que, como fonte de ajuntamento, flopou). Colocará também à prova as áreas centrais das grandes cidades, por onde passa muito do carnaval de rua. Essas regiões foram algumas das mais atingidas durante a pandemia, pelo mix de retração da atividade econômica, fechamento de escritórios e difusão do trabalho remoto. Em Salvador, uma das chaves para a ação do poder público este ano é espalhar e rejuvenescer o carnaval pelo Centro. Em São Paulo, o Centro, que teve o processo de esvaziamento e abandono acirrado nos últimos três anos, terá neste Carnaval 121 desfiles de grupos carnavalescos. No Rio de Janeiro, é pelo Centro, já combalido desde antes da pandemia, que passarão megablocos como o Cordão da Bola Preta, o Bloco da Anitta e o Monobloco.
No caso carioca, há um fator adicional que, apesar da degradação, fornece motivos de otimismo para além do Carnaval: depois do avanço da vacinação, do passar-longe do pior da pandemia e da retomada das atividades presenciais, o Centro e a Região Portuária voltaram a ser cenas de algumas das melhores rodas de samba da cidade. Uma delas é o “Samba da Volta”, que começou com um grupo de amigos na Rua do Ouvidor em meados de 2021, ficou grande demais para o endereço e hoje está na Rua da Constituição. “Foi ganhando outra proporção, e a gente passou a chamar de ‘Samba da Volta’, a volta de a gente poder se ver, de poder se encontrar na rua e fortalecer as amizades”, diz o músico Eryck Quirino, um dos pioneiros da roda. Quirino, que também é ritmista da Grande Rio, adiciona: “O pior de tudo já passou. Eu vejo o Carnaval de 2023 como o carnaval do recomeço, de uma reconstrução que não é triste, e sim no âmbito da felicidade. Que tudo passe de forma tranquila, segura, e vamos nós para o Carnaval da Felicidade.”
Guardemos a data: dia 18 de fevereiro de 2023. Será o sábado que, salvo em caso de dilúvio, as massas começarão a tomar as ruas das grandes capitais do Carnaval. Será também o dia do aniversário da morte de Nelson Cavaquinho. O genial compositor do samba carioca, mangueirense, autor de canções capazes de conjugar como ninguém o sublime e o sombrio, morreu em 1986, aos 74 anos. Foi testemunha da passagem da Gripe Espanhola pelo Rio de Janeiro entre outubro e novembro de 1918, tendo guardado consigo na memória a visão dos caminhões e das carroças abarrotadas de corpos passando pela capital do Brasil. Foi o autor de sambas como Vou partir, ao lado de Jair do Cavaquinho:
"Vou partir, não sei se voltarei
Tu não me queiras mal
Hoje é carnaval
Partirei para bem longe
Não precisas te preocupar
Só voltarei pra casa
Depois que o carnaval acabar, acabar"
Para quem gosta de Carnaval, a impressão é que quem voltará para casa por estes dias será o próprio Brasil.
*David Butter é jornalista e produtor. É autor de “De sonho e desgraça: o carnaval carioca de 1919” (Mórula Editorial)
Misteriosamente, o afoxé sobrevive
O Bar do João fica de frente para o Dique do Tororó, único manancial natural de Salvador, onde pousam os orixás do artista plástico Tatti. As estátuas de sete metros representam Oxalá, Iemanjá, Oxum, Ogum, Oxóssi, Xangô, Nanã e Iansã. Outras quatro, menores, circundam a calçada, representando Oxumaré, Ossain, Logun-Edé e Ewá. Ao lado do bar, sobe-se a escadaria da Ladeira de Nanã. É um dos acessos ao Engenho Velho de Brotas, bairro com quase 26 mil habitantes, onde 84,71% das pessoas se declararam pardas ou negras no censo realizado em 2010. Naquele 8 de outubro de 2018, a proteção dos orixás não salvou a vida de Romualdo Rosário da Costa, 63 anos, o Mestre Moa do Katendê.
Quem é do afoxé sabe que o endereço é sagrado. Nanã é a orixá dos mangues e do pântano. É dela a chave dos portais da encarnação, desencarnação e reencarnação, a “dona da morte” ou a “dona da vida”, considerando os planos da existência da fé espírita. O afoxé Badauê nasceu ali, inventado pelo Mestre Moa e seu grupo de amigos. Compositor, percussionista, artesão, um dos maiores na capoeira de Angola, seu nome está marcado no grafite colorido no muro que ladeia os degraus de concreto: “Moa vive”. Foram 12 facadas de intolerância política que levaram a sua vida, logo após a votação do primeiro turno em 2018, do qual saíram Jair Bolsonaro e Fernando Haddad para a disputa da segunda fase. Moa foi morto por defender Haddad. O autor do crime era bolsonarista. Mas um pouco de Moa havia morrido antes. Era o “mistério” de seu afoxé que surgiu em 1979 e desfilou, pela última vez, em 1992. A explosão do Badauê havia sido foi tão brilhante que deixou marcas na música brasileira. Sua música foi parar no álbum Cinema Transcendental, lançado por Caetano Veloso em 1979. A letra era simples: “Misteriosamente, o Badauê surgiu. Sua expressão cultural o povo aplaudiu”, repetia. Na época, Caetano pediu ajuda ao amigo Antônio Risério, antropólogo e autor do livro Carnaval Ijexá, para localizar o anônimo autor da música que embalou o carnaval, pegar nome, endereço e CPF, dar os devidos créditos e mandar depositar os direitos autorais.
O carnaval da Bahia devia muito a Mestre Moa. O “moço lindo do Badaduê”, cantado por Caetano na canção Beleza Pura, também devia sua fama a ele. A canção faz referência ao dançarino Negrizu, que se apresentava no bloco e se orgulhava: “O vento me fazia compor o movimento", diz. Ele ainda se define como “filho do Badauê”. “É o que sou hoje”, diz, em entrevista à TVE da Bahia. O bloco também inspirou Clara Nunes na canção Ijexá, de Edil Macedo e Paulo César Pinheiro. Moraes Moreira cantou o bloco em Eu sou o Carnaval. “Toda cidade vai navegar no mar azul Badauê”, diz o refrão.
O Badauê foi um cometa, que bebeu e lançou luz às raízes da cultura negra da Bahia. Bebeu do Ilê Ayiê, ao mesmo tempo que abrilhantou seus festivais. Bebeu do Filhos do Congo, ao mesmo tempo que dividiu os olhares com um dos afoxés mais tradicionais da Bahia. Bebeu dos Filhos de Gandhy e muito do seu surgimento se deu na onda do “tapete branco” que flutuava, em 1972, pelas ruas de Salvador com o prestígio de ter a música Filhos de Gandhi, composta por Gilberto Gil.
Cadê a fantasia?
Hoje, a despeito da dificuldade de autofinanciamento de alguns afoxés, o carnaval da Bahia ainda deve muito a eles. A indústria do carnaval que desfila do Farol da Barra até Ondina atrai tudo: artistas, grandes empresas, verbas públicas, marcas de cerveja, bancos públicos e privados, mídia
e redes sociais. Um universo que não se vê presente na mesma proporção, salvo raras exceções, nas manifestações mais originais de resistência negra na cidade. “Existem cerca de 30 afoxés hoje em Salvador. Nesse carnaval, devem sair em torno de uns 10 ou 11”, disse Ednaldo Santana Santos, o Nadinho do Congo, que lidera a 3ª geração do afoxé mais antigo da Bahia, o Filhos do Congo.
Quando recebeu a ligação do Meio, o doutor Nadinho do Congo, advogado, professor, negro de pele retinta, ainda estava às voltas com a tarefa de conseguir dinheiro para pagar o carnaval deste ano. “Afoxé não é só Filhos de Gandhy, não”, avisou, deixando transparecer a rivalidade com o primo rico, grande e famoso, que figura no livro dos recordes como maior bloco do mundo. Neste ano, o Filhos do Congo foi habilitado para receber R$ 200 mil no edital Carnaval Ouro Negro, programa da Secretaria de Cultura do estado que ajuda no financiamento dos blocos carnavalescos. Das 62 agremiações habilitadas para receber recursos do fundo, estão somente 11 afoxés. Os demais são blocos afros, grupos de samba e de reggae. “Muitos afoxés não conseguiram entregar suas certidões negativas de dívidas de impostos”, contou. “O dinheiro ainda não saiu. Aqui em Salvador a gente tem uma cultura de atraso nesse processo que me deixa irritado”, reclamou, a menos de 10 dias para o desfile. “A gente precisa de uma certa forma ter os valores antes para agilizar a compra de pano, material. A cultura é forte, mas a comunidade é pobre e não tem como comprar as fantasias. Temos que doar.”
A formação atual dos Filhos do Congo surgiu em 1979, resgatando a expressão mais antiga do Congos d’África, afoxé criado no início da década de 1920. A primeira geração era liderada pelo Velho Rodrigo nas imediações do Dique do Tororó, que comandava um terreiro próximo ao dique dedicado a Omolu. No final da década de 1940 passou a se chamar Filhos do Congo e, liderado pelos descendentes do Velho Rodrigo, desfilou por alguns anos, até ter sua trajetória interrompida por falta de recursos. Mesmo o Gandhy, considerado mais rico, enfrentou dificuldades financeiras que levou o afoxé a fechar suas portas entre 1974 e 1976.
Apesar dos percalços, alguns afoxés estão sendo criados na cena cultural baiana e com incentivo dos mais antigos. São exemplos disso o Dança Bahia, o Laroyê Arriba (formado só de mulheres) e o Kambalaguanse, grupos que receberam, por meio da Lei Aldir Blanc e por uma ação do Filhos do Congo, equipamentos como câmeras e tripés para registro documental de seus desfiles.
Atabaques, xequerês e agogôs
Mas qual a diferença entre o afoxé e um bloco afro? A principal é a ligação com o candomblé. Todo afoxé está ligado a uma Casa de Axé, que
determina toda orientação. Muitos se referem ao afoxé como “candomblé de rua” e outros recorrem à etimologia para explicar seu significado. “Afo” se traduz em “assoprar palavras” e “axé” é energia. É o espalhar da energia dos terreiros. “É o sopro que anuncia a alvorada”, poetiza Nadinho. A batida é necessariamente o Ijexá, ritmo que aportou na Bahia, trazido pelos negros do sudoeste da Nigéria escravizados, no final do século XVII até a metade do século XIX. “O afoxé é uma forma de manter os atabaques, os xequerês e os agogôs vivos. São os instrumentos do candomblé e que a gente leva para o asfalto.”
Conservador dos costumes do candomblé, ele ainda busca se justificar sobre a introdução de outros instrumentos musicais na festa. “Levamos uma banda harmônica, mas trabalhando com o Ijexá. Até na África muita coisa já mudou”. Mas a ousadia tem limite: o Filhos do Congo não leva às ruas os pontos do terreiro e não aceita que cerimônias de abertura sejam feitas no asfalto. “Eu não posso fazer um padê (cerimônia para Exu) na rua, nem levar o canto de entidade. Se bobear vai ter gente caindo (incorporada). Eu faço dentro de casa, descarrego e peço aos guias para tomar conta do nosso povo que vai brincar na rua”, contou sobre a íntima ligação do afoxé com a religião. “Um afoxé não é uma mercadoria de trio.”
‘Túmulo do samba’ cheio de vida na voz de Beth Carvalho
Se o carioca Vinícius de Moraes classificou São Paulo como “túmulo do samba” (mas depois se desculpou), coube a outra personalidade do Rio de Janeiro, Beth Carvalho, reparar de fato a injustiça. Em dezembro de 1991 ela se apresentou no Sesc Pompeia em um show dedicado integralmente ao samba da terra da garoa. Para entrar no repertório, apenas duas condições: ter ao menos um autor paulista e ser uma canção de alta qualidade. O resultado foi o CD Beth Carvalho Canta o Samba de São Paulo (Spotify e YouTube), lançado pela Velas em 1993.
Além de obras dos ótimos, mas costumeiros Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, estão joias como Dia Seguinte, de Carlinhos Vergueiro e J. Petrolino, e Velho Ateu, de Eduardo Gudin e Roberto Riberti, e até sambas raramente associados a São Paulo. São os casos de Feitio de Oração, de Noel Rosa e do paulistano Vadico — a letra sofreu uma ligeira alteração em homenagem à cidade —, e Regra Três, do também paulistano Toquinho e, imaginem só, Vinícius. São 24 faixas para provar, que, como diz a canção de Mário Sérgio, Carica e Luizinho, o samba é Mania da Gente nas duas pontas da Via Dutra.
Nem só de Carnaval vive o país (infelizmente). Aqui estão os assuntos que mobilizaram os leitores nos mais clicados da semana:
1. YouTube: Ponto de Partida — Afinal, o que Lula quer?
2. Poder360: Um repórter registra ao vivo o segundo tremor na Turquia.
3. YouTube: Ponto de Partida — O Exército no genocídio ianomâmi.
4. Metrópoles: Das carpas ao Caixa 2, o que se passava no Alvorada com os Bolsonaro.
5. O Globo: A genialidade de Burt Bacharach em nove canções.