Edição de Sábado: Gleisi, o braço esquerdo de Lula

O PT estava reunido a portas fechadas. Do lado de fora, o sol do início de dezembro castigava jornalistas que cobriam a transição de governo e acampavam na portaria do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, à espera do primeiro que saísse. Do lado de dentro, petistas se apinhavam para o primeiro encontro oficial do partido com seu líder máximo e então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. A dúvida era qual seria o quinhão do PT no novo governo. Quem seriam os escolhidos para a “cozinha” do Planalto? Quem cuidaria do Bolsa Família? Da economia? Diante de olhos curiosos, Lula lançou mão do tom paternal de criador da legenda. Como quem ao mesmo tempo dá uma bênção e uma incumbência, Lula pousou a mão sobre a cabeça da presidente do partido e avisou: “Gleisi não será ministra. Eu penso que ela tem que ficar na presidência do PT”.

O comunicado frustrou boa parte dos presentes. Se tinha alguém em que se apostava como titular de uma pasta importante na Esplanada de Lula, essa pessoa era Gleisi Hoffmann, a advogada curitibana que já foi senadora e ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, de 2011 a 2014. Tanto que já se ensaiava, entre as várias correntes políticas petistas, uma disputa pela vaga de presidente do partido. José Guimarães (PT-CE) e Rui Falcão (PT-SP), entre outros, se mexiam discretamente. Gleisi havia cumprido com louvor todas as missões assumidas até ali — a maior parte bem árdua. Primeiro, na condução da escolha do candidato para 2018, quando Lula se encontrava preso. Depois, na campanha para a libertação de Lula. Em seguida, na construção da federação de partidos e da política de alianças que levaram Lula ao palanque em 2022. Todas as tarefas, note-se, redundam nele. Foi notável a lealdade de Glesi nos anos mais difíceis do PT, quando o partido foi apeado da Presidência da República. Mas, com a mão de Lula sobre sua cabeça, ela era convocada, mais uma vez, a botar sua resiliência à prova. E assim o fez: com a decisão do PT de prorrogar seu mandato, Gleisi será a presidente do partido até 2025.

Após o recado direto do presidente, os dois deixaram o prédio juntos. Lula acompanhado da mulher, Rosângela da Silva, a Janja; e Gleisi, do namorado, o deputado Lindbergh Faria (PT-RJ). Ao responder perguntas da imprensa, Gleisi não falou sobre o assunto. Disse apenas que a reunião “foi boa” e emendou com os planos de, dali para frente, preparar a lista de cargos de que o partido não abriria mão. No dia seguinte, Lula confirmava a decisão em uma fala recheada de justificativas. “É um reconhecimento da grandeza dela e não uma diminuição do seu papel”, explicou o presidente. “Gleisi tem um papel muito importante, de manter o PT se organizando, se fortalecendo.”

Nesta semana, em conversa com o Meio, Gleisi falou sobre sua pronta aceitação de permanecer na condução do PT. Disse, com firmeza, que não se sentiu preterida ou magoada. “Foi tranquilo, fiquei numa boa. A política, para mim, tem causa. Não é só uma questão de posição. Qual é a nossa causa? Por que a gente vive?”, respondeu sem qualquer sinal de hesitação. “Entendo que a política é um instrumento que faz com que a gente possa mudar as coisas. E o PT é um instrumento principal desse processo. É o maior partido político do Brasil. O PT tem vida, é um partido que discute, que tem participação e base social e atua em várias áreas. Então, é um instrumento muito importante.”

Se em dezembro Gleisi foi monossilábica na saída da reunião com Lula, hoje ela protagoniza uma sequência de posicionamentos que beira a verborragia. Foi assim com as críticas ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, corroborando a tese de Lula. Foi assim com a reoneração dos combustíveis, contrariando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT-SP). “A nova missão de Gleisi é essa”, dizem alguns petistas que dividem com ela a comissão executiva do PT. “Não se trata de uma posição só dela. Gleisi vocaliza a posição do partido, que é o maior da aliança. A diferença desse governo para os anteriores é que o PT vai continuar existindo, agora cada vez mais forte. O partido vai emitir opinião e, às vezes, ela vai ser diferente da do governo. O PT vai sustentar o governo, mas vai defender suas ideias. Não vai só seguir o que o governo diz”, disse a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), secretária nacional de Formação da legenda.

No discurso que fez na festa de 43 anos do PT, ao lado de Lula, da ex-presidente Dilma e de muitos dos atuais ministros do PT, ela já havia indicado que seguiria falando, entregando seus posicionamentos ao mercado, ao governo, ao Congresso, à frente ampla que está no poder, sem se importar com quem possa se doer. Ali, ela demarcava muito claramente qual seria a arena de suas contendas: a economia. “É, sim, papel irrecusável do PT tanto a solidariedade e o apoio quanto o debate crítico e leal das políticas do novo governo, em todas as áreas, inclusive no terreno econômico. Debate que setores atrasados e poderosos pretendem interditar, como se fossem senhores absolutos da razão e da técnica”, discursou Gleisi. “Não há técnica nem razão inquestionável nas decisões econômicas se elas não estiverem consoantes com as grandes decisões políticas, aquelas que emanam da vontade soberana da maioria da população. Se a prioridade do país é o crescimento e a geração de empregos e oportunidades, é neste sentido que deve caminhar a política econômica.”

“Dano precificado”

A conveniência de marcar uma posição da legenda que privilegie uma retomada do elo perdido principalmente com populações da periferia de grandes cidades e a necessidade de consolidar uma cara para o partido para as eleições de 2024, mais à esquerda, são consenso no PT. Contam, inclusive, com a aprovação de membros do partido que estão no governo. A divergência é sobre o tom que essas críticas devem ter. “O que a gente precisa agora é transformar a força eleitoral do Lula em uma força política organizada no Brasil para que nunca mais a extrema direita e o fascismo cheguem ao poder. Isso não se faz de dentro do Palácio do Planalto”, argumentou Maria do Rosário. "Quando estivermos no território das eleições municipais, tudo vai passar pela Gleisi. Agora, é importante que o PT seja forte dentro dessa aliança ampla, senão o governo vai só para um lado.”

Gleisi tem, em seus comentários, dois públicos-alvo: o próprio PT e os movimentos sociais. Haddad é membro e porta-voz do governo de Lula, que precisa ponderar com o mercado, com a necessidade de equilíbrio fiscal, e a realidade de um Banco Central independente, entre outras demandas. “A gente já começou há algum tempo a trabalhar muito no sentido dessa reaproximação, do fortalecimento do PT na base, porque vimos o quanto esse afastamento foi ruim pra nós, o nosso campo político e as organizações. Quando viramos governo, as forças do partido se voltaram a ajudar a governar o país e isso acabou nos distanciando da base. Os movimentos começaram a ter relação mais com o governo e menos com o PT. Agora, o PT só é uma fortaleza se tiver essa relação mais sólida com a base social que ele representa”, explica a deputada.

Apesar de compreendida a motivação, a postagem de Gleisi se posicionando veementemente contra a volta dos impostos federais sobre a gasolina surpreendeu Haddad. “Caiu muito mal. Foi o tipo de tuíte que, se apaga, fica pior”, avaliou um interlocutor assíduo do ministro. Em contraponto com Haddad em meio às tratativas para se definir a volta do tributo, novela que assombra o governo desde o primeiro dia, Gleisi foi às redes defender uma prorrogação da isenção, pelo menos até abril, quando haverá mudança com Conselho de Administração da Petrobras, hoje apinhado de bolsonaristas. No Twitter, ela provocou: “Antes de falar em retomar tributos sobre combustíveis, é preciso definir uma nova política de preços para a Petrobras. Isso será possível a partir de abril, quando o Conselho de Administração for renovado, com pessoas comprometidas com a reconstrução da empresa e de seu papel para o país”. “Não somos contra taxar combustíveis, mas fazer isso agora é penalizar o consumidor, gerar mais inflação e descumprir compromisso de campanha”.

O tom não agradou a comunicação do Planalto, que passou a operar no modo “contenção de danos”. Haddad estava em Bangalore, na Índia, participando da reunião do G-20, e ficou profundamente irritado, especialmente com as últimas palavras do texto: “descumprir compromisso de campanha”. Da Índia, ele telefonou para Gleisi imediatamente. Perguntou o que ela iria fazer caso a tese vencedora fosse a dele. No bom português, Haddad disse: “Vocês (do PT) vão ter coragem de dizer que o presidente Lula quebrou uma promessa de campanha quando ele aceitar reonerar os combustíveis?”. No mesmo telefonema, o ministro apelou pelo fim das críticas públicas. E foi duro, dizendo que “não dava para ela virar ministra da Fazenda no Twitter”.

Gleisi, momentaneamente, calou-se sobre o assunto nas redes. Enquanto esperava a decisão de Lula, tratou de outros temas, como guerra da Ucrânia, terrorismo bolsonarista, quebra de sigilo do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ), vacinação e nova foto oficial de Lula. A presidente do PT só voltou ao assunto na terça-feira, dia 28, quatro dias depois da primeira publicação. Após a coletiva de Haddad, na qual ele anunciou a volta do imposto equivalente a 47 centavos na gasolina e 2 centavos sobre o litro de álcool, a presidente do PT foi mais ponderada. Ela elogiou a “sensibilidade de Lula” em adotar alíquotas mais baixas que as do passado e a taxação na exportação do óleo cru. Não houve referência a Haddad nem a uma eventual “quebra de compromissos”. Gleisi optou por tratar de dois temas mais consonantes com o governo: os planos para acabar com a indexação do preço dos combustíveis ao dólar e a crítica à atual forma de distribuição de dividendos da estatal.

Para a equipe econômica, houve um “apaziguamento”, mas o episódio deixou uma lição. A verborragia sobre questões econômicas é, conforme disse um dos membros da equipe ao Meio, recorrendo ao “economês”, dada como uma coisa “precificada”. “Apaziguou até a próxima crise. A gente já sabe que ela não vai recuar. Ela sempre vai dar pitaco na economia”, disse um interlocutor do Planalto.

O árbitro Lula

Se realmente houve exagero por parte de Gleisi ao falar de quebra de compromisso de campanha, não houve por parte de Lula nenhuma repreensão. Ao contrário, Lula fez questão de voltar a ressaltar em público, ao longo da semana, sua confiança na petista, citando seu nome em discursos no Planalto. A turma veterana do PT admite que o presidente se refestela nesse tipo de conflito. “Lula, que é esperto, adora isso. Gosta do fato de ter duas pessoas que o ouvem e que são leais a ele dando opinião. Ele vai lá e arbitra”, avalia um petista das antigas, em reservado. “Você acha que a Gleisi faria isso se não fosse do conhecimento e do agrado de Lula? Sempre foi assim”, destacou outro petista dos primórdios do partido. “No final de tudo, não houve grande prejuízo de imagem para ninguém. Imagina se o PT concordasse de cara com aumento de impostos? Ia ser muito pior”, avalia outro dirigente.

A própria Gleisi confia que Lula nunca lhe colocará uma mordaça. Nem nela, nem no partido. “O PT é governo, é o principal partido de sustentação e vai sempre defender Lula e as posições que nos trouxeram até aqui. Obviamente, estamos falando de um governo que é de coalizão, com um espectro amplo de partidos. E o PT, como um partido que compõe essa coalizão, tem a obrigação de defender o que é seu ponto de vista, aquilo que acredita. Sem prejuízo. Não é para fazer oposição. É só para alertar, para chamar a atenção, para disputar uma posição de governo.”

Ela refuta a tese de que seus posicionamentos sejam orientados ou calculados por Lula. “Não, não é uma orientação. Mas Lula respeita. Ele tem um carinho e sabe o que um partido significa como instrumento da política. O presidente não vai se basear por tudo que a gente quiser para tomar suas decisões. Vai arbitrar, negar, decidir. Mas sempre vai ouvir e considerar. Lula considera natural que o partido tenha posições divergentes em relação a sua política”, garante a petista.

Dentro do PT, as rusgas são minimizadas e têm um gosto de déjà vu. Não são raros os que recorrem ao primeiro mandato de Lula, lembrando a guerra entre posicionamentos do partido e do governo. Em 2005, enquanto a equipe econômica, liderada por Antonio Palocci, apostava em uma política fiscal mais restritiva e em altas taxas de juros, o PT, presidido por Ricardo Berzoini, não se furtava em deixar pública sua contrariedade. Houve um momento em que o então ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, ex-marido de Gleisi, nem fazia mais questão de esconder a irritação com o partido e respondia aos jornalistas que Berzoini estava com o “miolo mole”. E Berzoini devolvia, dizendo que era melhor ter o miolo mole que o “coração endurecido”.

Lula seguia, ora agradando uma turma, ora contemplando outra. “Lula sempre fez isso. Ele bancou Palocci inteiramente, não fez o Palocci recuar em nada. Mas, ao mesmo tempo, mantinha no governo gente que falava mal do Palocci o dia inteiro. E bancou essa gente também. Às vezes, ouvia mais um lado, às vezes o outro. O próprio Paulo Bernardo, quando foi chamado para ser o ministro do Planejamento, ouviu de Lula que não queria que ele fosse um ‘palocinho’”, lembrou Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, e autor do livro PT, uma História (Companhia das Letras). “Não há nada de errado nisso. Há outros governos pelo mundo que fazem a mesma coisa”, ressalta. “Se você pegar os diários do Fernando Henrique Cardoso na Presidência, as brigas do pessoal do José Serra, na Previdência, e do Pedro Malan, na Fazenda, ocupavam o dia todo. Boa parte do trabalho de FHC era administrar essas brigas”, comparou o sociólogo, em conversa com o Meio.

Mas esse atrito permanente pode gerar, sim, um desgaste. Rocha de Barros lembra que, na década de 1980, muitos prefeitos e até governadores acabaram saindo do PT depois de eleitos, devido ao grau de crítica pública. “Algum nível de ruído é até saudável. Mas não pode afetar a funcionalidade do governo, como ocorria nos anos 1980. Nesse caso recente dos combustíveis, considero que foi um pouco mais público do que seria o ideal, na medida em que afetou o Haddad. Ao falar sobre quebra de promessa, cruzou-se uma linha. Foi bom que a tese de Haddad tenha prevalecido dessa vez”, avaliou. Essa delicada coordenação entre braço direito e braço esquerdo vai caber a Lula.

A Rainha do Mar e a luta contra a intolerância no Planalto Central

À beira do Lago Paranoá, uma faixa de grama se estende por cerca de 200 metros e finda num pequeno desnível. Logo acima, quinze pedestais de mais ou menos dois metros de altura se espalham por uma praça, organizados em três seções de cinco construções cada. Emolduradas pelo horizonte sem fim da capital da República e pela ponte Honestino Guimarães, que liga a área central de Brasília ao Lago Sul — um dos bairros mais caros do país —, as bases abrigam representações de Orixás, as divindades das religiões de matriz africana. Altivas, estão de costas para o espelho d’água, acompanhando e vigiando quem chega ao local, seja para banhos e lazer, seja para bênçãos e orações. Uma outra está separada das demais. É de lá que Exu, o “guardião do lado de fora”, encarrega-se de receber os visitantes e proteger as divindades. Diversas árvores frondosas, frutíferas, sombreiam os ocupantes nos dias de calor do Planalto Central e, quando acompanhadas pela brisa úmida do lago artificial, deixam o local ainda mais aprazível. Um churrasquinho, um refrigerante ou um açaí são vendidos por gente comumente fiel àquelas divindades. 

Das 16 estátuas na Praça dos Orixás, apenas 15 estão ali hoje. Da representação de Ogum resta apenas a fuligem. A antiga “Prainha” é ao mesmo tempo espaço de resistência da cultura afro-brasileira e de intolerância a ela. É alvo de constantes ataques, sobretudo a fogo. As chamas mais recentes foram ateadas em todas as estátuas, que estão sem identificação oficial — mas só a de Ogum não resistiu. Anonimamente, frequentadores afixaram folhas A4 com os nomes das respectivas divindades.

No Distrito Federal, cerca de 0,2% da população se declara praticante de religiões de matriz africana. Ainda assim, os casos de intolerância religiosa, atentados ou racismo deste segmento representam 70% das ocorrências do gênero entre 2018 e 2022, com destaque para 2019, quando 16 casos foram registrados. Na Câmara Legislativa, a Comissão de Direito Humanos (CDH) recebeu, entre janeiro de 2021 e março deste ano, 11 denúncias relacionadas a racismo religioso. Destas, oito são contra pessoas negras e/ou praticantes de religiões com origens na África. Um desses casos se deu na última segunda-feira, dia 27, em uma escola de gestão cívico-militar.

Nesse modelo, proposto pelo governador afastado Ibaneis Rocha (MDB) nos primeiros dias de mandato, em 2019, a Polícia Militar (PMDF) atua na parte disciplinar de instituições de ensino públicas. Numa escola de Sobradinho, a 20 km de Brasília, uma estudante de 14 anos foi impedida de entrar por uma tenente porque usava um fio de contas. Filha de Santo, a menina tentava explicar o que representava o adereço quando a policial tentou arrancá-lo de seu pescoço. Chamado, o pai de santo que guia espiritualmente a adolescente foi hostilizado pelo diretor (civil) da instituição. O caso está sob investigação tanto na Polícia Civil quanto na Câmara Legislativa.

Iemanjá no Cerrado

A data de fundação da Praça dos Orixás é incerta. Em placas turísticas, é dito vagamente que “ao longo dos anos 1990” o espaço ganhou corpo. Mesmo trabalhos historiográficos se valem de aproximações. A oralidade se configurou na principal forma de transmissão das tradições, dos costumes e da cultura do povo negro trazido à força para o Novo Mundo. Em Brasília, apesar da tenra idade da capital, não foi diferente. Assim, o historiador Swai Roger Cleaver buscou recuperar as origens do local nas raras menções na oficialidade ou na imprensa. “É muito difícil cravar uma data original”, diz o mestre em História pela Universidade de Brasília. Segundo sua dissertação de mestrado, a Praça dos Orixás nasce, em ano incerto, com as celebrações do Dia de Iemanjá. Antigamente, na capital, as homenagens à Rainha do Mar se davam no último dia do ano, 31 de dezembro, tradição ligada à Umbanda, principalmente de nações religiosas vindas do Rio, a antiga capital.

E era neste local, a pouco menos de 4 quilômetros do centro do poder, onde se cruzam os Eixos Monumental e Rodoviário para dar forma ao avião de Lúcio Costa, onde os festejos eram conduzidos. “A praça surge como um ponto de resistência, até mesmo pela centralidade. O simbolismo é forte”, indica Cleaver. As misturas de tradições de diversas nações e sociedades africanas promovem singularidades nos cultos de possessão brasileiros. Por aqui, Iemanjá é senhora das águas salgadas; Oxum, das águas doces. Essa é uma crença exclusivamente das ramificações brasileiras. Na África, Iemanjá é senhora de todas as águas, sem distinção, Numa cidade que está, por um lado ou outro, a mais de 2 mil quilômetros do mar, pareceu apropriado adotar essa premissa e louvá-la, entregando-lhe oferendas, na beira de um lago artificial.

São, ao menos, sessenta anos de registros aqui e acolá da celebração. Cleaver filtrou duas datas mais confiáveis para o início da tradição: 1958, segundo o Correio Braziliense, primeiro veículo de comunicação da  nova capital; e 1965, de acordo com o historiador, antropólogo e jornalista Luís da Câmara Cascudo. É certo que os frequentadores não tinham vida fácil para exercer seu livre direito à fé. Dentre os relatos colhidos por Swai Roger, destaca-se um, de Pai Doté Francisco, que falava na ausência “de ônibus pra trazer os terreiros”. “Eu vinha em cima de um caminhão com meus filhos de santo, todos os anos”.

Tião Calazans, um dos mais proeminentes praticantes nos primórdios de Brasília, chegou a ser preso sem acusações pela Guarda Expedicionária de Brasília, a GEB, criada para o policiamento ostensivo à época da construção da capital. A partir dos anos 1990, a institucionalidade começou a dar as caras e o ponto ganhou pavimentação, com espaço para estacionamento. Na virada do milênio, as representações dos Orixás, moldadas pelo artista plástico Tatti Moreno — o mesmo responsável pelas estátuas no Dique do Tororó, em Salvador —, foram instaladas, e o então governador, Joaquim Roriz, decretou a mudança do nome de “Prainha” para o atual.  Reza a lenda que a praça seria o pagamento de uma dívida espiritual de Roriz com Pai Paiva, um carioca que se tornou um dos mais atuantes pais de santo no Distrito Federal de então. Paiva era politicamente engajado, chegado a Leonel Brizola, e foi dirigente do PDT do Rio. Tanto Roriz quanto Paiva já faleceram.

“A resposta virá depois”

Em Brasília, a festa de Iemanjá, mãe de todos os oris, mudou de data nos últimos anos. Agora, é celebrada em 2 de fevereiro, num alinhamento ao Candomblé. Na celebração, o cortejo contou com a presença de diversas autoridades, como a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e a deputada federal Erika Kokay (PT-DF). O administrador regional do Plano Piloto, onde está a Praça dos Orixás, informou que solicitou à Secretaria de Planejamento (Seplac) o policiamento 24 horas no local, algo confirmado pela Seplac e pela Secretaria de Cultura (Secec). Questionada pelo Meio, a pasta informou que o reforço no policiamento depende apenas da instalação de uma guarita na praça. Tombada como Patrimônio Artístico e Cultural do Distrito Federal em 2018, além de estar no Conjunto Urbanístico de Brasília, tombado em 1987 pela Unesco, a Praça dos Orixás está sob o guarda-chuva da Subsecretaria de Patrimônio Artístico e Cultural (Supac), vinculado à Cultura.  

Presidente da CDH na Câmara local, o deputado Fábio Félix (Psol) também é autor da Lei Distrital de Combate ao Racismo Religioso, deste ano. Segundo ele, que esteve com Anielle Franco nesta semana, “a Praça dos Orixás é um monumento cultural que serve também à educação da sociedade como um todo, na medida em que traz luz e valorização a temas nem sempre abordados no cotidiano”. “Estamos em contato com o governo federal com o intuito de estabelecer ações que possam contornar a desinformação e o preconceito que geram esse tipo de discriminação”, completa o parlamentar. No âmbito espiritual, as proteções de Pai Paiva continuam a florescer a esperança do povo da Umbanda e do Candomblé.

Segundo Mãe Mutá de Oxóssi, uma mãe de santo de Valparaíso, no entorno goiano de Brasília, Pai Paiva “fez plantações ali”, na Praça dos Orixás, e, “a partir do momento que você entra ali, está sendo vigiado. Tem plantação ali na Prainha, e só eu sei onde tem, tem na entrada e nos cantos. Os Orixás olham por nós que cuidamos do lugar”. Para Swai Roger, a própria existência do local, mesmo com os atos de vandalismo, é quase inacreditável. “Se eu não fosse historiador, diria que é um milagre”, empolga-se o também capoeirista e professor da arte. “Os terreiros têm uma vitória edificada na forma da Praça dos Orixás.”

Oscar: um senhor branco, hetero, de 95 anos, em busca de diversidade

Lembra quando bastava sair a lista dos indicados ao Oscar para que as locadoras de vídeo enchessem as prateleiras com mais e mais cópias dos VHS candidatos? E as lojas de discos, que vendiam a rodo os LPs das concorrentes à melhor canção do cinema daquele ano? Esses termos todos soam desatualizados para você? É porque esse tempo — e essas tecnologias — já passaram. Agora, será que passou também a era da relevância política e ativista no Oscar?

Além de premiar a mais glamourizada das performing arts, a noite do Oscar sempre trouxe pílulas de reflexão sobre a sociedade, temas polêmicos, engajamento e comportamento. Fosse por meio do stand up do apresentador da festa ou do discurso de agradecimento de algum premiado, a cerimônia costumava ser pontuada por esses breves momentos de crítica e protesto, embora apenas o grande vencedor de melhor filme virasse a manchete no dia seguinte. Esse ativismo estrelado se intensificou nos anos Trump. Depois, com a eleição de Joe Biden, arrefeceu. Até que, no ano passado, em vez de pauta social ou debate artístico, o que marcou mesmo a cerimônia foi o tapa de Will Smith — e não foi só no rosto de Chris Rock, que fez uma piada ofensiva com Jada Pinkett Smith.

Suzana Pires tem vivenciado as transformações da indústria de filmes hollywoodiana na ribalta. A atriz e escritora mora entre o Rio de Janeiro e Los Angeles desde 2022, após ser contratada por um estúdio internacional para desenvolver o roteiro de uma série sobre mulheres. As recentes mudanças nos governos dos Estados Unidos e do Brasil podem explicar, segundo Suzana, por que o Oscar aparenta ter ficado menos relevante politicamente nos últimos tempos. “Quando um governo é conservador e de extrema direita, o ativismo está mais inflamado porque todo dia você toma uma paulada. Então, você já está no react o tempo todo. Quando passa a ser um governo mais progressista, o ativismo também se acalma um pouco”, explica. Após Joe Biden, grupos ativistas americanos passaram a atuar junto ao Estado em políticas públicas, discutidas em Washington. Suzana, que também é formada em Filosofia pela PUC-Rio, passou a fazer parte da Women In Film (WIF), associação fundada em 1973 para defender e promover as carreiras de mulheres que trabalham na área. No ano passado, a entidade lançou a campanha Vote For Women com o objetivo de sensibilizar os jurados das premiações cinematográficas. Para ela, existe um fenômeno que acontece depois de alguns anos de ativismo para tentar mudar o status quo e transformar a cultura.

“As instituições estão muito enraizadas no que elas foram construídas para ser. Instituições como o Oscar são brancas, heterossexuais, masculinas, têm isso no DNA. O ativismo começa a cutucar. E aí, lá numa portinha da instituição, passa a estar escrito diversity inclusion. Algumas coisas começam a se mover, só que são placas tectônicas, é muito difícil que saiam do lugar”, explica a artista, também autora do livro Dona de Si, que virou um projeto completo com a fundação de um instituto que ajuda mulheres a empreender.

Aqui no Brasil, a atual discussão segue a mesma linha no governo Lula. “Estamos trabalhando para que a Ancine seja um órgão que, em seus editais, tenha linhas que contemplem o cinema de periferia, o cinema indígena. Então, não é que o Oscar tenha parado de refletir a sociedade, mas, sim, que as coisas estão mudando sem muita gritaria”, conclui a atriz, que é pioneira em usar a cláusula de inclusão em seus contratos de trabalho, comprometendo as produções a incluírem diversidade em equipes técnicas e artísticas.

Para lidar com “incidentes imprevistos” (aka escândalos) como o tapão de Smith em Rock, a edição 2023 do Oscar, marcada para 12 de março no teatro Dolby, em Los Angeles, passará a ter uma equipe de gestão de crise. “Por causa do ano passado, abrimos nossas mentes para as muitas coisas que podem acontecer no Oscar. A nova equipe será capaz de responder muito rapidamente a qualquer ocorrência que aconteça durante a festa", revelou Bill Kramer, CEO da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo evento, em entrevista à revista Time. Não à toa, a cerimônia da 95ª edição será conduzida pelo comediante e apresentador Jimmy Kimmel, que já ocupou o posto em 2017 e 2018. Foi em 2017 que o prêmio de melhor filme foi anunciado errado por Warren Beauty e Faye Dunaway, e Kimmel voltou ao palco para corrigir na maior tranquilidade — no lugar de La La Land, o vencedor era Moonlight: sob a luz do luar. “É por isso que é seguro ter alguém como Jimmy no palco, acostumado a lidar com a TV ao vivo, em que as coisas nem sempre saem como planejado. Temos um host que consegue ‘dar uma volta’ e gerenciar esses momentos”, justificou Kramer.

O Oscar premia a arte imersiva e coletiva da grande tela, mas há outros prêmios que se conectam com as audiências massivas das séries do streaming e que também estão em transformação em suas estruturas. A jornalista Miriam Spritzer, nascida em Porto Alegre e moradora de Nova York há 13 anos, passou a integrar o júri do Globo de Ouro em 2021 após uma reformulação da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (HFPA, na sigla em inglês), entidade responsável pela cerimônia. O intuito foi trazer mais diversidade, com novos jurados de diferentes partes do mundo. Miriam representa o Brasil ao lado de Ana Maria Bahiana, Paoula Abou-Jaoudé e Jânio Carlos Vieira Nazareth. A entidade tem em torno de 100 votantes entre críticos, jornalistas e escritores. Com outra centena de convidados, o Globo de Ouro passa por um crivo mais específico e menos amplo do que o Oscar, que conta com mais de 10 mil votantes, separados por grupos conforme afinidade com suas áreas de atuação. “Há um número gigantesco de pessoas que estão votando no Oscar há décadas. Tem muita gente que só vai assistir aos filmes quando forem revelados os cinco indicados por categoria, e aí vai muito do gosto técnico, não necessariamente do gosto do público. No fim das contas, o Oscar está ali para premiar a excelência no cinema, o conjunto da obra”, conta Miriam. Hoje em dia, segundo a jurada, não é mais tão fundamental para um filme blockbuster vencer o Oscar. “Produções como Top Gun: Maverick ou Avatar: O Caminho da Água já venceram nas bilheterias, já conquistaram o topo. Mas o que a academia faz é premiar um Parasita, por exemplo. Um filme sul-coreano que ganhou o prêmio principal em 2020 e que, talvez, não iria tão longe assim não fosse a premiação”, exemplifica.

Será que o Oscar ainda é sonho de atores, diretores, roteiristas e produtores? “Sim, definitivamente. Dá pra ter um termômetro pelo Globo de Ouro de melhor ator coadjuvante, por exemplo, que provavelmente vai levar o Oscar também”, palpita Miriam. O vietnamita Ke Huy Quan, que integrou o elenco de Indiana Jones e o Templo da Perdição, tem 51 anos e dezenas de produções no currículo. “Ao receber o prêmio pela atuação em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, ele chorou emocionado. A gente vê o quão importante é para eles ganhar uma estatueta”, conclui.

“A gente já sabe tudo que vai acontecer na cerimônia do Oscar. Agora, eles estão olhando para os asiáticos”, completa Suzana Pires. Para a atriz e roteirista, a inclusão precisa ser pensada em paralelo ao que está na frente das câmeras, na criação de novas categorias que contemplem a diversidade. “Enquanto você só indicar uma mulher ou um asiático, você não vê todas as pessoas envolvidas na indústria. Se tivesse melhor diretor de fotografia mulher e melhor diretor de fotografia homem, talvez percebêssemos mais o trabalho dessas pessoas, que não precisariam ficar duelando por uma indicação”, sugere a artista.

Para dizer que não falamos de cinema, anote: Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (trailer) está na liderança da lista com 11 nomeações, incluindo melhor filme, melhor direção e melhor atriz (Michelle Yeoh). A segunda posição é de Nada de Novo no Front (trailer), filme de guerra alemão lançado pela Netflix, que surpreendeu ao faturar nove indicações, entre elas a de melhor filme. Empatado com nove indicações está Os Banshees de Inisherin (trailer). Já Elvis (trailer) concorre em oito categorias, e Os Fabelmans (trailer) em sete. Os vencedores do Oscar 2023 serão revelados em cerimônia que será transmitida no Brasil pelo TNT e pela HBO Max.

Gente, até parece que o Brasil é um país normal! Eis os mais clicados da semana:

1. YouTube: Ponto de Partida — O Lula da vacina e o Lula do Haddad.

2. BBC Brasil: Para Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, Lula está certo sobre juros.

3. Panelinha: Tapioca cor-de-rosa com queijo meia-cura.

4. YouTube: O trailer do novo Peter Pan & Wendy, da Disney.

5. Reuters: A Nokia mudou seu logo.

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