Tempo de rearranjos

Passadas as eleições no Congresso e com um Executivo disposto a retomar negociações clássicas da política, as relações entre os Poderes tendem a se normalizar, avalia Lara Mesquita

De susto em susto, a atividade política no Brasil vai retomando feições de normalidade, especialmente nas relações entre os Poderes. O Congresso eleito em 2 de outubro de 2022, com o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, o PL, conquistando as maiores bancadas nas duas Casas, revelava-se o mais conservador da história da Nova República, com um semblante extremista. Mas, conforme o novo Executivo retomou as rédeas da coordenação política e da montagem de sua coalizão em moldes mais tradicionais, os interesses foram se reacomodando. Essa é a avaliação da cientista política Lara Mesquita, professora da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP-FGV).

Lara estuda partidos e as dinâmicas do Legislativo. E, embora reconheça que é preciso cautela para se sentir otimista com as habilidades de um governo que não tem nem dois meses, enxerga na recondução de Arthur Lira (PP-AL) — e no que ele ofereceu em troca ao PT, como o comando da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) — sinais de que a articulação política do presidente Lula tende a funcionar. “A forma clássica de se construir coalizão é essa que vimos: o presidente convida um partido, negocia alguns ministérios. Lula foi habilidoso nisso no passado e parece que está sendo agora. A ver como isso vai se comportar nos futuros desafios, que serão grandes”, diz a pesquisadora no Centro de Política e Economia do Setor Público (CEPESP-FGV). Confira os principais trechos da entrevista.

Com que cara ficou o Legislativo depois das eleições dos presidentes das Casas?
Vamos começar pela Câmara. Por conta da eleição da presidência, foi formalizado um bloco que inclui o PL e a federação do PT. Essa formalização é importante porque significa que a distribuição das comissões se dá respeitando este bloco. Quando saiu o resultado das urnas, vimos as bancadas por partido, por estado, e todo mundo falou: “opa, o Congresso está mais à direita do que já tinha saído das urnas em 2018 e o tamanho do PL vai ser um problema pra governabilidade se Lula se confirmar como presidente”. Já nas semanas seguintes ao primeiro turno ficou claro que esse grupo do PL não era completamente bolsonarista. Obviamente, tem um grupo ali de deputados que são muito alinhados com o ex-presidente e que foram eleitos na onda do discurso dele. Mas também há um grupo de políticos tradicionais, que até se aliaram a Bolsonaro por ocasião, mas que já jogavam o jogo da política. Isso fica muito claro quando, nesta semana, Valdemar Costa Neto diz: "olha, eu tenho 25 deputados da minha bancada que declararam que vão aderir ao governo e está tudo bem, não vamos punir ninguém". Então, se por um lado é verdade que em termos de composição ideológica temos um Congresso mais conservador do que o anterior, também é verdade que existe espaço para se formar uma coalizão que garanta a governabilidade ao presidente Lula. Basta vermos o esforço de Arthur Lira, já no finalzinho do ano passado, para aprovar algumas pautas que eram importantes para o novo governo, e premiar o PT pela adesão a sua campanha, dando-lhe o controle da CCJ. Essa posição é fundamental pra garantir que a agenda do governo não fique trancada.

Quanto dessa “premiação” é fruto da habilidade do Executivo?
Há um lado dessa habilidade, sim. Inclusive não batendo de frente, reconhecendo que o Legislativo tem prerrogativas na sua atuação e que o cenário é diferente daquele dos dois governos Fernando Henrique, dos dois governos Lula, quando o governo tinha mais instrumentos para mobilizar a coalizão do que tem hoje. Dentro da ciência política, sigo uma linha em que não acredito na compra da base de apoio caso a caso, na liberação de emenda a cada votação. Há muitos estudos que mostram que o governo tem instrumentos de mais longo prazo pra isso. A forma clássica de se construir coalizão é essa que vimos: o presidente Lula convida um partido, negocia alguns ministérios. E, quando um partido ganha um ministério, é natural que o ocupe. O ministro tem de ter ali uma equipe em que confie pra executar essa agenda — aliás, uma agenda que vai ser pacificada entre o partido do presidente, que é o líder da coalizão, e os partidos que compõem a coalizão do governo. Não vai ser a agenda que o presidente teria se estivesse governando sozinho, mas também não vai ser a agenda do partido que está ocupando o ministério. O presidente Lula foi habilidoso nisso no passado e me parece que está sendo agora, nesse início de governo. A ver como isso vai se comportar nos futuros desafios, que serão grandes.

O PP de Arthur Lira não tem um ministério e, ainda assim, ele parece mais poderoso do que nunca. Que tamanho real tem Lira hoje?
Certamente, Lira não tem o tamanho da votação que recebeu para presidente da Câmara. Ali, vimos o PT votando nele, mas essa não é uma bancada que vai atrás de Lira onde quer que ele vá. O mesmo pode ser dito do PSB ou do PDT, só para ficar em exemplos clássicos. Mesmo pensando nos deputados mais fisiologistas, que tinham um apego maior por conta do orçamento secreto, esse instrumento mudou, não é o mesmo de um ano atrás. O jogo do orçamento secreto foi importante, porque o governo Bolsonaro não tentou construir uma coalizão. Era um governo de tratativa muito frágil com o Legislativo. Quantas vezes a gente não via o líder do governo negociando uma coisa e o presidente falava “eu não autorizei isso”? Até que o [ex-ministro] Ciro Nogueira chegasse lá, a palavra do governo não era confiável. Como Bolsonaro não tinha uma agenda propositiva sólida — ele tinha muito mais uma agenda de costumes e de desmonte —, não era um grande custo abrir mão dessa agenda. Agora, voltando a uma modalidade de governo a que o Congresso está mais acostumado, em que se espera que a palavra do Executivo seja cumprida (dos líderes do governo na Câmara, no Senado, no Congresso, da Casa Civil, da articulação política), esse tipo de ferramenta, como o orçamento secreto, se torna menos necessária pra se construir a coalizão.

É claro que Lira continua um ator muito forte, hábil, não dá pra passar a perna nele. Mas está muito menos poderoso do que no passado.

Como isso vai poder ser medido na prática?
Lira vai acabar tendo que dividir o protagonismo. Os governos tradicionais tendem a propor políticas e propostas que precisam passar pelo Legislativo. Usar decretos, medidas provisórias é uma prerrogativa do Executivo. Mas mesmo a medida provisória precisa ser aprovada no Congresso. Basta notar como nunca um presidente teve tantas medidas provisórias que caducaram como Bolsonaro. E não é esse o estilo tradicional de se governar. Há uma consciência grande desses atores políticos que estão agora no governo e dos partidos que já governaram, como é o caso do PT, de que não se governa a despeito do Legislativo, governa-se junto com o Legislativo. A tese de doutorado da professora da Unicamp Andréa Freitas, que virou um livro, fala de presidencialismo “da” coalizão e não “de” coalizão. Uma das coisas que ela mostra é a agenda possível de pacificar para a coalizão. Não dá pra dizer que o PP do Arthur Lira ou o PL vão entrar formalmente nessa coalizão. Mas eles também não estão se colocando numa posição de nunca poder votar com o governo. Em alguns casos, vão votar. Isso não é novidade, já vimos isso em outros ciclos. Vota-se porque se construiu um consenso no Legislativo, porque a pauta é importante, e também pela habilidade do governo de atrair isso. No caso do PP e do PL, partidos que foram muito alinhados a Bolsonaro e que elegeram uma bancada significativa de deputados por isso, vai ser difícil que a maioria dos parlamentares concorde na formalização da adesão a um governo do principal opositor. Isso pode ter um custo muito grande. Mas não quer dizer que eles não vão votar com o governo em alguns casos, que talvez nem sejam tão poucos assim.

Um primeiro diagnóstico ao fim da eleição do Legislativo foi de que a extrema direita havia dizimado uma direita mais moderada e a centro direita. Essa reacomodação do Centrão no Congresso desmente isso?
Talvez o mérito de Eduardo Cunha tenha sido entender que aquilo que se chamava de baixo clero era um contingente de deputados muito importante, que ele poderia oferecer benesses para esse grupo de parlamentares pouco ativo em termos de proposição de legislatura, de presidência de comissão e de relatoria de projetos importantes, e em troca ele teria uma base fiel suprapartidária. Arthur Lira foi eficiente em manter isso. Não sei se essa é a essência da centro direita historicamente, mas pelo menos se tornou a partir do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Não se falava em Centrão nos dois governos Fernando Henrique. Centrão era um termo lá da Constituinte, depois diminuiu e voltou mesmo no governo Dilma, embora formado por outro tipo de parlamentar. Quando a gente foi esmiuçar, olhar a trajetória política desses deputados que se elegeram, claro que aumentou a bancada da extrema direita, ela nunca foi tão grande. Mas ela não é a maioria do Congresso.

O PSD, com a virada que deu no Senado, atraindo parlamentares, montando a maior bancada e reelegendo Rodrigo Pacheco, é hoje o maior representante do Centrão?
O PSD foi criado no governo Dilma pra tentar ser o partido que recebesse todo mundo que queria estar no governo, mas por alguma razão seus partidos permitiam. E também com o intuito de ocupar um espaço que o então PMDB tinha ocupado antes. O MDB já vinha diminuindo de tamanho. [Gilberto] Kassab é um político habilidoso e o governo o ajudou a construir isso. O PSD nunca chegou a ser o maior partido da Câmara. Nesse sentido, não deu tão certo quanto se imaginava lá atrás. Mas se mostrou eficiente em ser um partido pra agregar forças diversas que tivessem interesse em aderir ao governo de ocasião. É mais fácil fazer isso com as mudanças recentes da legislatura no Senado do que na Câmara. Agora há uma interpretação explícita de que na Câmara, como a eleição é proporcional e o voto é na lista partidária, se você muda de partido, perde o mandato. No Senado, não. E tanto PSD quanto PSB estão recebendo senadores que decidiram se reposicionar. Até porque é difícil ser oposição. O PSDB, por exemplo, nunca soube fazer oposição, assumiu até um tom irresponsável nessa posição. Só o PT e o antigo DEM se saíram melhor como oposição. O PSD abre essa janela, mas vai ser muito importante ver o desempenho do partido nas eleições municipais do ano que vem. Isso vai mostrar a capacidade de realmente se reposicionar. No estado de São Paulo, o PSDB tinha praticamente todos os prefeitos e muitos deles vão mudar de legenda para a eleição do próximo ano. Estando Kassab no governo e num cargo estratégico, uma das coisas que ele vai tentar fazer é trazer uma parcela significativa desses prefeitos para o PSD.

Os bolsonaristas mais extremos tendem a ficar isolados?
Se eles se mantiverem com essa postura beligerante, sim. E aí o 8 de janeiro tem um papel bem relevante, porque permitiu uma união que não se esperava que fosse acontecer tão rapidamente. O que se viu no dia 1º de fevereiro, nos discursos da ministra Rosa Weber e de Lula no início do ano no Judiciário e nos de Pacheco e Lira uma vez eleitos? Foram todos na linha de diminuir a polarização, de encontrar uma pacificação, mas de não se fechar os olhos, de não haver impunidade. No caso do Congresso, com algumas alfinetadas, recados de que não dá para o Supremo passar por cima do devido processo legal. Então, o 8 de janeiro em alguma medida oferece a ocasião ideal para os líderes dos poderes falarem em se fortalecer a democracia, em busca de uma pacificação e de não se ter mais espaço pra esses discursos extremistas. E se esses parlamentares eleitos associados ao ex-presidente Bolsonaro se mantiverem com um discurso muito radical, vão acabar isolados e tendo pouco eco no Congresso. Vamos precisar ver também a habilidade deles de jogarem o jogo legislativo, onde não se faz nada sozinho, você sempre precisa de um coletivo. O líder tem muito poder porque representa uma bancada, mas um parlamentar sozinho faz muito pouco, mal protocola um projeto de lei.

Vale ver o quanto esses parlamentares extremistas sabem jogar o jogo para influenciar efetivamente o debate. Ou se vão optar por legislar através de redes, falar para a base, mas com pouca efetividade.

Que papel podem ter frentes parlamentares como a da bancada evangélica e do agronegócio?
Quando o ex-presidente Bolsonaro foi eleito, ele falou que ia governar com as frentes. Mas elas não indicam membro de comissão, não retiram membro de comissão, não têm poder formal. Aí vai depender muito da capacidade dessas frentes de coordenar a atuação dos parlamentares e, em termos de votação, coordenar com a indicação da votação das lideranças. O principal papel das frentes é, por exemplo, protocolar um projeto de lei sobre determinado tema que lhes é caro e foi oferecido por federações patronais, sindicais, etc., que vão fornecendo insumos. Agora, a frente não orienta a votação. O governo Bolsonaro tentou dar um protagonismo maior para conseguir organizar a base legislativa e não funcionou. Num governo mais organizado, a expectativa é que funcione ainda menos.

Depois de quatro anos de desequilíbrio, os Poderes tendem a reassumir seus papéis agora?
Na recente história da democracia brasileira, o Executivo funciona sempre como o coordenador da coalizão, estabelece grandes prioridades. Por exemplo, agora há a questão da expulsão dos garimpeiros da terra indígena ianomâmi e de resolver essa crise humanitária. Outra pauta prioritária para o presidente Lula é resolver o problema da fome no país. O que se espera, dado que essas são a as prioridades zero do governo? Ele vai ceder em alguns pontos em troca de apoio para fazer essa agenda avançar. O Executivo vai mandar pro Congresso uma versão, um ponto de partida para o de projeto de lei e o Congresso, começando pelas comissões, vai discutindo isso. Esse processo não existia no governo Bolsonaro. Ele mandava uma coisa pro Congresso e, quando ia alguém tentar fazer um acordo em nome do governo, ele desautorizava. Os presidentes das Casas controlam a pauta e podem priorizar a votação de matérias que sejam do interesse do governo. Isso para não se ver, como se viu com Eduardo Cunha, a votação de pautas-bomba, uma atrás da outra. Não que o governo Dilma fosse uma maravilha em gestão fiscal, mas o Congresso só dava bomba pra ela. É difícil ter uma boa gestão fiscal nesse contexto. O presidente da Casa não precisa ser da base do governo. Mas tem de minimamente pactuar com o governo que não vai deixar passar esse tipo de pauta-bomba e vai priorizar determinadas agendas.

E o Supremo?
Há duas coisas importantes para pensarmos. A primeira é como as minorias vão acionar a Corte. Isso foi muito importante, sobretudo no governo Bolsonaro. Tinha partido com um deputado federal só que toda semana entrava com ação no Supremo, dando muito poder a ele, porque aí se abre uma brecha para o STF interferir de todo lado. O próprio Supremo já começou a responder a isso no final do ano, no apagar das luzes, quando diminuiu o poder das decisões monocráticas. A Corte entendeu que não dá pra continuar desse jeito, que tem de baixar a fervura e, num governo mais funcional, que está ferindo menos os preceitos constitucionais, que tem menos conflito com o Congresso, isso tende a acontecer. Da maneira como está, o Supremo está se auto-regulando. E a qualquer momento pode errar a mão. Por isso, Rodrigo Pacheco e Arthur Lira também vão tentar aprovar mudanças que não deixem ao bel-prazer do Supremo acentuar ou minimizar o tamanho de seu próprio poder. Não sei o quão eficientes eles vão ser nisso. Um dos papéis tradicionais do Supremo é proteger os interesses das minorias. Sendo acionados, em alguma medida, os ministros vão fazer isso. Quando se pensa na questão da CPI da Covid, por exemplo, eles já tinham feito isso [determinado a abertura] lá atrás contra o governo Lula, com a CPI dos Bingos. Não é algo contra Bolsonaro. Mas me parece muito claro que eles já entenderam o recado e estão em alguma medida tentando se readequar. Eu sou otimista.

Há razão para otimismo?
É cedo para fazer afirmações muito enfáticas. Quem passou por esse período que o país passou não pode adotar um otimismo desmesurado, tem de ser cauteloso. Mas temos fundamentos pra algum grau de otimismo. Uma das razões é pensar que quando a extrema direita era governo não conseguiu aprovar sua agenda legislativa. Em sendo oposição, mesmo que em um número grande, isso é ainda mais difícil. Se eles tivessem sido bem sucedidos, o país estaria numa situação ainda pior do que está hoje. Mas não foram. Precisamos de mais trabalho empírico, análise de longo prazo, estudo comparativo com outros países, inclusive com países que estão passando por processos semelhantes, para entender todas as razões que levaram a isso, mas há algumas pistas. De outro lado, o otimismo vem da experiência passada da habilidade do governo em negociar, de entender que não se governa a despeito do Legislativo. Ainda que se tenha visto, em alguns momentos, o presidente Lula com discursos muito enfáticos para essa base petista mais radical, não temos nem dois meses de governo e ele já tem dado sinais da habilidade da gestão da coalizão. E olhando para a experiência passada do PT no governo, os dois governos Lula e o primeiro governo Dilma foram bem sucedidos nisso.

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