A cabeça de Lula

Quando presidentes escolhem as brigas que vão enfrentar ou evitar há sempre motivos políticos para isso. Quais são os de Lula nos três embates que elegeu?

Não é por juros que Lula briga. Ou, melhor: não é apenas por juros. Após um mês e meio de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu três brigas. Não há nada de errado em um presidente escolher brigas — seu trabalho inclui escolher em que brigas entrar, porque elas são inevitáveis. Pois Lula escolheu três pontos de atrito maiores ou menores. Um foi a declaração, em visita à Argentina, de que a ex-presidente Dilma Rousseff havia sofrido um golpe de Estado. A segunda é um apanhado de ataques recorrentes ao mercado e a empresários. E, mais recentemente a terceira, quando em essência pediu a cabeça do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por questionar sua política de juros.

Quando presidentes escolhem que brigas vão enfrentar e quais vão evitar há sempre motivos políticos para isso. Não custa tentar explorar as razões de Lula. Antes, porém, vale retomarmos o contexto.

Este mês e meio foi pancada dura. Começou com uma intentona bolsonarista que, apesar de desastrada, foi uma tentativa real de golpe de Estado. Passou pela eleição tensa da presidência do Senado que, caísse nas mãos do bolsonarismo, poderia inviabilizar o governo. Foi só um susto. Terminou com o horror, no momento em que ficou claro que houve ação real do governo Bolsonaro contra o povo ianomâmi. Uma ação que se encaixa como uma luva na definição de crime de genocídio.

No plano externo, as notícias são boas. O presidente já esteve na Argentina, daí foi recebido pelo presidente americano, Joe Biden, na Casa Branca, recebeu aqui no Brasil o chanceler alemão Olaf Scholz, e tem marcado um encontro para março, em Pequim, com o presidente chinês Xi Jinping. O mais importante vizinho brasileiro, a maior economia do mundo, a maior da União Europeia, e a segunda maior do mundo. É evidente demonstração de prestígio não só do Brasil mas como do próprio Lula. Não representa nenhum ganho concreto para o país, é muito cedo para isso, mas é uma mensagem clara de que o planeta está com as portas abertas, disposto a conversar. Que o Brasil é bem-vindo.

Lula tentou cavar um espaço para se encaixar como líder das negociações de paz entre Rússia e Ucrânia — nisso foi de presto dispensado. O presidente brasileiro pode querer o trunfo para colocar em seu currículo, mas americanos e europeus não querem cogitar a possibilidade de a Rússia sair forte deste jogo perigoso. A China, por outro lado, vai tentando se equilibrar entre o desejo de ter a Rússia em sua esfera de influência e o medo de um conflito que possa vir a escalar. O vespeiro já seria grande para um Itamaraty em frangalhos, só piora se nenhum interessado direto quer ajuda.

Se o cenário do primeiro mês e meio é este, se envolve tantos problemas de um tamanho que nenhum presidente da Nova República chegou perto de enfrentar, por que foram estas três as brigas que Lula escolheu comprar?

A mais surpreendente é a de insistir que Dilma sofreu um golpe de Estado. Sete ministros de seu governo foram favoráveis ao impeachment, incluindo o vice-presidente Geraldo Alckmin, Marina Silva e Simone Tebet. Um oitavo é Renan Filho, cujo pai era presidente do Senado em 2016. Claro que é um tema caro ao PT. Mas só para o PT, petistas e simpatizantes. Se o único objetivo é arrancar os aplausos que já tem em seu partido, cria um constrangimento desnecessário. O governo é de frente ampla, mas quem não é do time original apanha à toa.

É possível que Lula acredite que foi um golpe e ache importante registrar, não importa o desgaste que cause. Ele tolera golpistas no governo mas quer sublinhar que não esquece o que fizeram no verão passado. Tudo certo mas é também escolher impor um desgaste na relação por nenhuma razão clara.

Aí vêm os muitos adjetivos. De acordo com Lula, o mercado financeiro não tem coração, sensibilidade ou humanismo. Também fica nervoso à toa. Com empresários a coisa não é muito distinta — eles não ganham dinheiro porque trabalham mas sim porque os trabalhadores fazem isso. São gananciosos. Só pensam no lucro.

É um discurso mais difícil de compreender por conta do número de incoerências que representa. Como argumento é caricatural. Alguns comunistas mais ingênuos talvez até acreditem que empresários não trabalhem. Criticar lucro quem faz são católicos das antigas e marxistas puristas. No resto do mundo, e isso inclui a China, lucro é não só desejável quanto perseguido. Afinal, quanto mais empresas têm lucro, mais a economia cresce. Lula não é um revolucionário. E, se pretende ser um desenvolvimentista, deveria gostar de empresários locais. Afinal, no coração do desenvolvimentismo está a ideia de dar mais dinheiro justamente a empresários.

O objetivo da crítica não pode ser a expressão do católico ou do comunista. Católico treinado na Teologia da Libertação Lula até é — comunista, nunca foi. Aliás, quando líder sindical, era um exímio negociador com empresários. O objetivo da crítica, portanto, não deve vir do que crê, mas sim da busca de algum objetivo. Lula está dizendo que os ricos são maus e exploram os pobres. Que o problema do Brasil é sua elite.

Nós conhecemos este Lula — ele esteve muito em evidência na campanha presidencial de 1989, foi sumindo aos poucos até desaparecer por completo e ser ressuscitado na campanha de 2014. Na época, a culpa de a economia estar mal não era do governo — liderado pelo PT fazia doze anos. A culpa era de “gente branca de olhos azuis”. Alguns dizem que Lula é um político populista. Ele é mais complexo do que isso.

Lula usa o discurso populista quando lhe convém. Tem também no bolso o modelo que ele próprio batizou de Lulinha Paz e Amor, um líder muito hábil em negociação, na costura de acordos e duma capacidade ímpar de estar bem com todos.

Pois é: o que a briga de Lula com o mercado e com empresários nos revela não é sua opinião principal sobre um ou sobre outro. É sobre qual Lula ele escolheu para este início de presidência. É o populista. É aquele que explica os país pela fórmula ‘a culpa é da elite que oprime o povo’.

Se temos o Lula populista e não o Lulinha Paz e Amor, precisamos entender por que o presidente fez esta escolha neste momento.

Ora, o cenário não apontava para isso. Lula foi eleito por uma margem muito pequena de votos. Contou com um sem número de eleitores que deixaram de lado a antipatia pelo PT e pela esquerda em prol da democracia. Desenhou o ministério mais diverso de qualquer um de seus mandatos — não apenas diverso em gênero ou tons de pele, mas também ideologicamente. Não estão representados, lá, apenas a esquerda e os fisiológicos. Estão também verdadeiros liberais. A dificuldade de vencer Bolsonaro, a quantidade de brasileiros radicalizados à direita e um governo com tanto dissenso por gerenciar apontaria para um Lula mais centrista, mais moderado. Mas não foi esta a roupa que o presidente escolheu.

Um de seus objetivos pode ser capturar a agenda, assumir o controle do debate público, ainda muito dominado pelos escombros trágicos do bolsonarismo. Este Lula hiperbólico e em busca de atritos chama atenção mais do que um conciliador. Talvez.

Outra razão pode ser preocupação. Herança maldita, afinal, não foi o que recebeu de Fernando Henrique mas sim o que ganhou agora, de Jair Bolsonaro. Perante o aperto das contas públicas, melhor já culpar outrem pelo que vai ser muito difícil resolver.

As redes sociais precisam entrar na conta. A esquerda tem dificuldades com a nova comunicação — aliás, fora da extrema direita quase todo mundo tem. Martelar um discurso que agrada aos eleitores mais engajados do petismo poder ser demagógico mas é muito eficaz em trazer resposta. Algum relatório informando que bater traz engajamento deve estar caindo de tempos em tempos na mesa do presidente.

Se passar por aí, tem consequências. Apostar na polarização é realmente o caminho mais curto para receber curtidas, retuítes, joinhas, corações das pessoas nas redes. É também a principal razão de as sociedades estarem tão profundamente divididas ao ponto do impasse, da violência política. Este é o problema que Lula, um democrata, deveria estar preocupado em resolver.

Mas existem outras razões. Lula se encantou com o que ouviu do economista André Lara Resende, que se tornou no Brasil o porta-voz do grupo que defende a Teoria Monetária Moderna — MMT, na sigla em inglês. Não é exatamente uma nova versão do desenvolvimentismo mas, assim como a teoria defendida pela Cepal nos anos 1950, dá permissão aos Estados para que gastem mais do que arrecadam com a promessa de que não haverá inflação. Não é uma teoria acatada pela economia ortodoxa, tampouco defendida nas principais revistas econômicas ou mesmo comprovada em testes de esforço no mundo real. Mas, no papel, tem defensores.

Isso é tudo que um presidente na situação de Lula deseja ouvir. Para André, os que discordam dele são dogmáticos. Acontece. Mas presidentes de bancos centrais pelo mundo costumam ser ortodoxos e cautelosos.

É neste contexto que entram os ataques a Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central. O que chama atenção não é o presidente da República questionando a política monetária — esse é um debate que tem mesmo de existir. O que chama atenção é o ataque de Lula ser tão pessoal.

Campos não se ajuda. Se é o presidente independente do Banco Central, não tinha nada que estar num grupo de ministros do governo Bolsonaro. Muito menos ir votar com a camisa da Seleção, no ano de 2022. O gesto tem significado partidário. Isto posto, os principais economistas ortodoxos relevantes do Brasil apoiaram Lula no segundo turno. Os juros do BC começaram a subir rápido justamente no momento da campanha que era pior para Bolsonaro. Roberto Campos tem alguma simpatia destes economistas e, na gestão, não foi bolsonarista.

Ao transformar a briga num ataque ideológico, pela soma de seu mau humor recente com o mercado e com empresários, Lula muda a natureza do conflito. Já não é mais um debate sobre política monetária. É contra um jeito de pensar economia. Assim, o ataque não é mais ao bolsonarismo — é um ataque ao mercado, aos empresários e aos liberais. Quando André chama este mesmo conjunto de “dogmáticos” — e todo mundo sabe que André tem os ouvidos de Lula — ele arremata a caracterização. Lula não quer ouvir ideias liberais.

Tudo certo. Mas então que frente ampla é essa?

Só que há um último ponto. Este é, também, um conflito interno dentro do PT. Porque, afinal, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não se bicam. Haddad quer ser candidato a presidente, Mercadante quer ser ministro da Fazenda. Não se bicam e não veem economia do mesmo jeito. Lula anda se queixando de que Haddad “é bom gestor mas mau político”. Nos bastidores, unido à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, Mercadante sabota Haddad. Disputa de espaços, é do jogo.

Esta semana, Lula começou a dar força a Mercadante no ataque a Haddad. Pode ser por todos os motivos listados, pode também ser porque não quer seu ministro da Fazenda seguro demais de que é o príncipe delfim. Ao mesmo tempo, sorrateiramente, Lula cortou as asas de Gleisi, que se via em dois anos ocupando o ministério da Casa Civil. Agora ela ficará quatro presidente do PT.

No seu entorno, Lula estimula conflitos e desinfla ambições.

O presidente da República está no cargo faz um mês e meio. É muito pouco e os problemas que tem pela frente são gigantes. É possível que, em seis meses, Lula seja outro — a ‘metamorfose ambulante’, como ele próprio já disse.

Pode ser. Ontem saiu uma nova pesquisa Quaest. 40% dos brasileiros veem seu governo como positivo e, 20%, como negativo. 60%, e este número impressiona, consideram que será um governo melhor do que foi o de Bolsonaro. As pessoas estão de fato inseguras com a economia. 39% acreditam que a inflação vai aumentar e só 29% que irá diminuir. Mas uns 70% dos brasileiros nem ficaram sabendo da briga de Lula com o Banco Central.

Quando perguntados coletivamente sobre todos os temas deste um mês e meio, se pinçariam algum como aquele em que o governo Lula mais se despontou, uma resposta aparece muito à frente de todas as outras: a ajuda humanitária aos ianomâmi.

Talvez o veio populista de Lula esteja enferrujado.

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