Democracia pela metade

Por que é tão difícil se comprometer com a presença igualitária de mulheres no primeiro escalão dos Poderes? Seja por lei ou por coragem política, está na hora de o Brasil dar esse passo

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, vai uma pergunta aos homens e mulheres nos espaços públicos: por que é tão difícil se comprometer com a paridade de gênero na política? Quando se fala no assunto, a resposta é no gerúndio ou apontando para o futuro. Nunca aquela fala assertiva típica de campanhas eleitorais: “vamos fazer agora”, “eu prometo”. É sempre um “estamos avançando”, “vamos criar condições para algum dia (quem sabe?), se chegar à divisão igualitária entre homens e mulheres”. E, dominadas por homens, seguem as disputas para todas as instâncias de poder: seja na Esplanada dos Ministérios, nos secretariados Brasil afora, nos partidos políticos, com poucas exceções.

Mulheres somam no Brasil 51,1% da população e 52,65% do eleitorado. Nada mais justo que lutem pela igualdade de espaços. Nada mais democrático que o tema seja central em uma campanha eleitoral. Nada mais urgente que ocorra uma correção para patamares mais próximos da paridade no Legislativo, no Judiciário e no Executivo.

Só que não foi bem assim que a campanha eleitoral do ano passado tratou o assunto. A paridade de gênero quase passou ao largo das listas de promessas da maioria dos candidatos. Faltou censo de oportunidade, mas, principalmente, coragem política. No primeiro turno, a paridade só esteve presente, de forma clara e direta, na proposição da então senadora e candidata do MDB, Simone Tebet (MS). O nome dela, porém, não figurava entre os favoritos para vencer as eleições e, nesse contexto, houve quem a criticasse, alegando que uma candidata sem chances reais de vencer poderia prometer qualquer coisa. Mas o fato é que Simone deu largada na sua candidatura com o anúncio de paridade em seu pretendido ministério.

A fala de Simone, na época, contrastava com as dos outros candidatos naquele momento de fechamento de alianças. Um mês antes, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), liderando as pesquisas, optou por não firmar tal compromisso. E é importante ressaltar que, naquele momento da pré-campanha, a ideia serviria bem a Lula. Ele se via às voltas com a acusação de formar uma chapa com o ex-governador Geraldo Alckmin, rodeada de maioria masculina branca. A foto-símbolo disso havia viralizado e Lula chegou a receber conselhos para “colorir melhor" as imagens que viriam adiante. Mas nem isso o fez se comprometer com a formação de um ministério 50/50.

Além das críticas pela foto com a predominância de homens brancos, a campanha de Lula ainda lutava contra a ideia difundida pela terceira via de que Lula e Jair Bolsonaro (PL) eram farinha do mesmo saco de corrupção. Assumir a paridade como bandeira poderia render um diferencial importante em relação ao então chefe de poder, Bolsonaro, de quem ninguém em sã consciência ousava esperar nenhum avanço na questão de gênero.

É certo que Lula se colocou a favor da ideia de paridade, mas falando para o futuro. Não houve um compromisso para esse mandato. “Vamos construir um país que caminhe rumo à equidade de direitos, salários iguais para trabalhos iguais em todas as profissões e a promoção das mulheres na ciência, nas artes, na representação política, na gestão pública e no empreendedorismo”, apontou em suas diretrizes do plano de governo. Em um encontro da campanha com mulheres políticas, organizado por sua mulher, Rosângela da Silva, a Janja, Lula relatou o que havia visto na viagem ao México: “Uma Câmara com 52% de mulheres e um Senado com 46,5% de mulheres”. “Quando é que as mulheres vão ser 50%, 55%, ou 60% no Brasil?”, indagou diante da plateia. “Eu fico pensando como é que o Mexico conseguiu e a gente não”, disse Lula.

Já no segundo turno, Simone levou seu apoio ao petista que, por sua vez, incorporou dela a ideia de que mulheres e homens, na mesma posição, não podem ganhar salários diferentes. Mulheres ganham, em média, 22% menos que homens na mesma posição. O compromisso com Simone foi pago agora. A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, anunciou em seu pronunciamento em cadeia de rádio e TV, que o governo enviará ao Congresso um projeto de lei proibindo a discriminação salarial. “Hoje, trabalhadoras que exercem a mesma função que os homens recebem salários 30% menores. Acabamos de apresentar ao Congresso Nacional um projeto de lei para proibir essa discriminação. Se o trabalho é igual, o salário tem que ser igual. Nada mais justo”, anunciou a ministra.

Agora ministra do Planejamento, Simone disse ao Meio acreditar que, no Brasil, somente a lei será capaz de estabelecer a paridade. “A lei é o primeiro passo. Ela dá o pontapé inicial. As políticas públicas vêm depois”, defendeu. “Tenho certeza de que, pela quantidade de mulheres que estão fazendo essa pergunta, essa pauta não vai morrer. Talvez essa seja a pergunta a ser feita a todos os homens públicos do Brasil”, provocou.

No primeiro escalão do governo Lula, são 11 ministras, um grande avanço em relação ao governo de Bolsonaro, que inaugurou com apenas 2 mulheres. Mas o percentual de 30% de mulheres é insuficiente.

Se falta mulher nos cargos de primeiro escalão, elas são presença forte nas posições mais técnicas. Essa é a percepção da especialista em Educação Básica Pública e uma das vozes mais atuantes no debate educacional brasileiro, Priscila Cruz. Isso indica que as mulheres estão na base da implementação das políticas governamentais no Brasil, mas só que em cargos menos valorizados. “Quando a gente tem reuniões nos ministérios, nas secretarias técnicas, nos gabinetes em Brasília, o que a gente vê é um aumento da participação feminina muito grande”, disse Priscila ao Meio.

Os números do Observatório de Pessoal, a ser lançado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos na semana que vem, atestam isso. Os dados apontam que, no governo federal, mulheres representam 45% da força de trabalho atualmente. Quando se olha para os cargos de chefia, sua presença mingua. Apenas 33% dos postos de alto escalão, que incluem diretorias, secretarias e ministérios, são ocupados por mulheres. Nos parlamentos, a cena é ainda mais desigual: mulheres preenchem somente 5,5% dos cargos de lideranças partidárias na Câmara dos Deputados e 10,5% no Senado Federal, segundo levantamento da CNN.

A cientista política Ilona Szabó, cofundadora do Instituto Igarapé, instituição independente que atua nas áreas de segurança pública, climática e digital, atribui a resistência que existe em relação à participação feminina nas chefias à questão cultural. “O que a gente encontra parece uma espécie de bloqueio em diversas áreas da sociedade, seja no poder público, seja no setor privado. É menos na área social, porque existe ali um lugar considerado menos estratégico, em que se permitem organizações lideradas por mulheres”, disse em conversa com o Meio. “Honestamente, vejo o bloqueio como cultural e mental porque, ao discutir segurança pública, muitas vezes escuto que uma mulher nesse cargo não seria respeitada.”

Primeiros passos, com lei ou sem lei

Experiências no mundo para aumentar o percentual de mulheres na política existem de todo jeito. Há paridade conseguida com lei para o Parlamento ou mesmo iniciadas por boa vontade de chefes no Executivo. Se no México a reforma constitucional de 2014 foi o pontapé para deslanchar a onda feminista na política, no Canadá, em 2015, o que desencadeou o movimento foi o anúncio de um gabinete com 15 homens e 15 mulheres feito pelo primeiro-ministro, Justin Trudeau, ao tomar posse. A iniciativa de Trudeau causou repercussão internacional. Ele, por sua vez, fez questão de dar naturalidade à divisão. Ao ser questionado sobre o porquê de sua iniciativa, Trudeau simplesmente balançou os ombros e respondeu: “Porque é 2015”.

No México, a reforma de 2014 estabeleceu a obrigatoriedade de que os partidos políticos promovessem “regras para garantir a paridade entre os gêneros, em candidaturas a legisladores federais e locais”. A partir daí, houve modificação na lei, fazendo com que cada legenda oferecesse listas de candidaturas para o Legislativo com vagas distribuídas igualmente entre mulheres e homens. Em 2019, mais uma mudança avançou no direito das mulheres. Aprovada por unanimidade, a emenda “Paridad en todo” exigiu a busca pela paridade nos três poderes.

O Chile aponta agora para a adoção da paridade como regra na formação, pela segunda vez, de uma nova constituinte para substituir a Carta Magna do país, herdada do período de Augusto Pinochet. Serão 50 cadeiras, 25 para homens e 25 para mulheres.

Um levantamento da União Interparlamentar, incluindo 47 países que realizaram eleições no ano passado, constatou que, pela primeira vez, há mulheres nos parlamentos em todos os 182 países avaliados.

O aumento na média de mulheres nos cargos parlamentares é tímido: 2,3% em relação ao que se tinha em 2021. Essa média hoje é de 25,8% do total de assentos. Considerando os 182 países pesquisados, o Brasil está na posição 127º.

Os números no Brasil mostram como a paridade caminha a passos de tartaruga no Congresso. A bancada feminina na Câmara dos Deputados tomou posse no último dia 1º de fevereiro com 91 deputadas, no universo de 513 parlamentares. Foram 14 a mais que a última legislatura. Com a saída de 3 mulheres que assumiram cargos em seus estados, a bancada feminina passou a ter 88 deputadas, o que corresponde a 17,7% do total.  No Senado brasileiro, a bancada feminina conta hoje com 15 mulheres no universo de 81 senadores.

Mas há bons ventos chegando do Nordeste. No Executivo, pela primeira vez, o estado de Alagoas alcançou a paridade de gênero no primeiro escalão. Para as 27 secretarias, o governador Paulo Dantas (MDB) escalou 14 mulheres e 13 homens. Mais quatro estados nordestinos conseguiram boas marcas no quesito paridade de gênero: Ceará (46,8%), Pernambuco (44%), Maranhão (44%) e Rio Grande do Norte (33,3%). Vale lembrar que Pernambuco e Rio Grande do Norte são governados por mulheres. Os estados mais desiguais são Paraná (4,4%), Tocantins (5,9%), Pará (12,5%) e Acre (13,3%).

Vale lembrar que a paridade de gênero é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável traçados pela Organização das Nações Unidas (ONU), dentro da agenda 2030. Isso significa que a entidade espera ver, até 2030, o equilíbrio de 50% de mulheres e 50% de homens em cargos de liderança, tanto em empresas privadas, quanto no setor público. Só que para a ONU, os números não são nada animadores. Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, o secretário-geral, António Guterres, alertou que a contar pelo ritmo dos avanços, serão necessários três séculos para alcançar a igualdade de gênero no mundo. “Avanços obtidos em décadas estão evaporando diante de nossos olhos”, ressaltou em meio à reunião da Comissão sobre a Situação da Mulher da ONU. A democracia não pode esperar 300 anos para atingir sua plenitude.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema.

O Meio é a solução.


Assine agora por R$15

Cancele a qualquer momento.

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: Que direita é essa?
Edição de Sábado: Apostando a própria vida
Edição de Sábado: Órfãos do feminicídio
Edição de Sábado: Fogo e cortinas de fumaça
Edição de Sábado: Cinco dias na Ucrânia

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)