‘A democracia é um regime de prontidão’

A mobilização de atores relevantes nos manifestos democráticos muda o jogo eleitoral, avalia o cientista político Carlos Melo. Mas sem visão de futuro as ameaças autoritárias persistirão

A ideia de um gigante poderoso deitado em berço esplêndido para representar o Brasil é evocada sempre que interessa a um determinado grupo chamar para si a responsabilidade de acordá-lo. “O gigante acordou” pode dar arrepios ou nostalgia, a depender dos olhos de quem lê. As manifestações de junho de 2013 e a forma como elas foram se transformando ao longo dos anos seguintes confundiram o senso do que é uma mobilização ampla e democrática. A história, porém, encontra meios de reencenar esses momentos de uníssono. De um som alto o suficiente não para acordar o tal gigante, que sequer tem conseguido dormir com seu estômago vazio. Mas para assustar e afastar aqueles que querem terminar por sufocá-lo.

As cartas em defesa da democracia engendradas na última semana têm esse potencial. Gestadas e assinadas por nomes e entidades de imensa representatividade, elas foram capazes de unir sob o mesmo espectro empresários, banqueiros, artistas, trabalhadores, acadêmicos. Uma nasce no Largo São Francisco, as arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. A outra, na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp. Ambas apartidárias, mas contra os atentados autoritários recentes, abrigados claramente em uma das candidaturas presidenciais. O cientista político Carlos Melo, professor do Insper e pesquisador das relações entre grupos de interesse, partidos, governos e Estado, enxerga nessa união uma mudança do jogo eleitoral. “A adesão de agentes econômicos aumenta a percepção de que, além de valor político, a democracia cria perspectiva, segurança.” Melo diz não gostar de falar em polarização, mas vê um confronto entre quem prefere uma saída autoritária e quem defende uma resiliência democrática para os problemas do Brasil. “E aí cabe muita gente. Nessa zona de fronteira enorme, há diversidade. O que diz o próprio manifesto é que apesar das diferenças há questões maiores que unem, como a ideia da democracia.”

Bolsonaro sentiu. A mobilização de vários setores em torno de um valor maior não é inédita. Mas Melo alerta que ela também pode não ser o bastante para evitar que a direita não democrática retome poder, caso seja derrotada nesta eleição. Sem uma visão de futuro do próximo presidente que atenda as demandas dos cidadãos atropelados pela revolução tecnológica, pandemia e outras inseguranças, aventureiros podem voltar a catalisar esse sentimento. Confira os principais trechos da entrevista.

Numa eleição como a atual, em que há tanto em risco, que peso uma carta em defesa da democracia pode ter?

Temos de pensar na opinião pública — nacional e internacional. Precede essa carta aquela reunião absolutamente sem sentido que o presidente Jair Bolsonaro fez com os embaixadores de vários países. Aquilo aguçou a crítica da opinião pública internacional. Não é comum a Embaixada dos EUA, que nesse momento não tem o titular aqui, se colocar da forma como se colocou. Tampouco o Departamento de Estado. Também não é comum que países como a Inglaterra ou a Itália se pronunciem com relação a isso. Na reunião entre os ministros da Defesa das Américas, feita na semana passada, o secretário de Defesa dos EUA reafirmou que poder militar é subordinado ao poder civil. Só não entendeu o recado quem não quis entender. Isso criou um contexto para que se avançasse também no Brasil, houve ali um impulso importante no sentido da formação de uma atmosfera.

O manifesto é gestado por advogados, juristas e acadêmicos. Qual a importância das adesões que se seguiram de banqueiros e empresários?

A importante adesão de agentes econômicos muito relevantes, pessoas físicas, mas muito relevantes aumenta a percepção de que a democracia é um valor político, vinculado à ideia de liberdade e busca da igualdade, mas também tem um forte componente econômico. A democracia é baseada na lei, que forma instituições, e cria um regime de segurança, perspectiva, dá a visão de longo prazo. É o contrário da autocracia. Regimes autocráticos são muito precários porque dependem dos humores do autocrata ou do seu grupo. Isso não traz investimento, pois cria uma imprevisibilidade muito grande, e todo investidor por definição age com cautela. Em grande medida, um dos problemas do desenvolvimento do Brasil, de não deslancharmos de vez, é essa intranquilidade. Eu faço análises políticas desde o primeiro governo Fernando Henrique. E nunca vi uma oscilação tão grande como atualmente. Não traz nenhum sentido de segurança.

O presidente Bolsonaro marcou sua ida à Fiesp para 11 de agosto, mesmo dia da leitura do manifesto na USP. Como o senhor enxerga esse xadrez na conquista desses grupos de interesse?

Há pressões internas em todas as instituições. Pelas pesquisas confiáveis, Bolsonaro tem um forte apoio popular, mas não tem maioria. Num hipotético golpe, olhando a história, são pelo menos quatro elementos fundamentais: apoio popular, apoio militar, apoio empresarial e apoio internacional. O presidente tem apoio popular? Ele acha que tem mais do que fato tem. Algo em torno 30%, mas nem todos de fato dispostos a ir às ruas. Ele tem apoio militar? De alguns setores. Ele tem apoio internacional? Na América Latina, hoje ele está isolado. Na Europa, talvez tenha apoio da Hungria. Talvez da Rússia, mas eles têm questões muito mais importantes para se preocupar nesse momento. Mesmo a China que é o nosso principal parceiro sequer foi convidada para aquela reunião de embaixadores.

Bolsonaro tem apoio empresarial? De uma parte. É natural que essa parte faça pressão dentro das suas organizações de representação. Não cabe hoje para nenhuma diretoria, seja da Fiesp, da Febraban ou qualquer outra, vetar um candidato. Bolsonaro vai nessa condição.

Mas isso pode diminuir os holofotes e o efeito do evento do manifesto?

Isso vai depender muito dos meios de comunicação, sobretudo os tradicionais. Tenho impressão de que o ato no Largo São Francisco terá mais holofotes, porque é mais importante. O presidente da República teria atenção em qualquer lugar nesse dia, na Fiesp ou no cercadinho do Alvorada. Cogita-se entregar o manifesto para Bolsonaro assinar. Ele pode assinar, mas é sincero? As próprias pesquisas mostram que a imensa maioria da população não acredita mais na palavra do presidente (52% não acreditam nunca; 29% confiam às vezes, segundo o Datafolha). Uma assinatura dele num manifesto como esse é letra morta.

A união de entidades tão antagônicas como Fiesp, Febraban e CUT no mesmo manifesto revela que a polarização é menor do que se supunha?

A eleição de 2018 foi uma uma eleição de rejeição ao petismo. Essa eleição tende a ser de rejeição também, agora ao bolsonarismo. Isso é natural. Eu nunca gostei da expressão polarização, acho incorreta e injusta. Quando se pensa em polarização, são polos opostos mas igualmente radicais. E não é bem assim. Se há polarização, é entre uma saída autoritária e uma resiliência democrática como solução para os problemas do Brasil. E aí cabe muita gente. O que diz o próprio manifesto é que, apesar das diferenças, há questões maiores que unem, como a ideia da democracia. Nesse sentido, teve um momento interessante nas últimas semanas que foi a manifestação da Anitta, dizendo que não tinha nada com o PT, que não usassem sua imagem, que seu apoio era ao Lula. No dia seguinte, vem Lula e diz que a Anitta está certa: “Eu não serei o presidente dos petistas como Bolsonaro é o presidente dos bolsonaristas.”. Eles delinearam ali um veio político: “não estou votando no PT, estou votando ocasionalmente no Lula, esperando que o próximo governo do Brasil seja um governo de transição, para que em 2026 o Brasil chegue à eleição com propostas, todas democráticas.”

Há movimentos sociais que se mobilizam desde que Bolsonaro foi eleito e não obtiveram o mesmo sucesso que a Carta com a adesão desses players econômicos. Por quê?

Em 2010, quando José Serra foi mais uma vez candidato à presidência, e a candidata de Lula era uma figura inexpressiva, a então ministra Dilma Rousseff, muitos falavam que ele ganharia de longe. Mas eu não achava isso. Porque nunca se criou um campo tão amplo de apoio. Lula tinha 83% de apoio — não era só do MST. Ele tinha apoio no MDB, no PT, na CUT, na Força Sindical, na Febraban, em setores do agro, na Fiesp. Talvez esse bloco esteja sendo remontado hoje, por outros motivos. Lá, montou-se porque todo mundo estava ganhando. Aqui, talvez se forme porque todo mundo sente que está perdendo. Ou que pode vir a perder. Essas alianças não são inéditas. O golpe de 1964 foi feito com apoio popular. O governo militar começou a ficar sem saída e começaram a surgir uma série de movimentos de oposição, inclusive na Fiesp, que pariu um movimento chamado PNBE, o Pensamento Nacional das Bases Empresariais. Por que não se conseguiu essa mesma mobilização antes? Primeiro, porque há um cansaço. Essas jornadas de mobilização, de uma forma ou de outra, se dão desde 1977, com o movimento estudantil de então, cujos jovens hoje têm 70 anos. Eles foram pras ruas. Fizeram campanha da anistia, a eleição de 1982, a campanha das Diretas, a Constituinte. Eleição e impeachment do Collor. Plano Real e todas as disputas em torno dele. A eleição do Lula. Quando parecia que as coisas poderiam se acalmar, veio o governo Dilma e um mal-estar muito geral, com as jornadas de junho de 2013. Aí, eleição de 2014, uma eleição que não acabou, a pior eleição da nossa história porque ela pariu 2018. Depois outro impeachment. Com esse histórico dá para ver o esgotamento. E é muito interessante esse movimento de voluntariado eleitoral de jovens de 16 a 18 anos, que foram estimulados a votar.

Talvez a gente esteja vivendo um momento em que duas ou três gerações cansadas estejam passando o bastão. Isso é normal.

Como a política vai se movimentar diante dessas mobilizações de grupos de interesse e dos próprios candidatos?

Há setores radicais da direita, que são menores. Há setores radicais da esquerda, que são muito menores. Há setores democráticos que são essa grande fronteira que vai da centro direita até a centro esquerda. E você tem o Centrão, que é um caso a parte. Tancredo Neves tinha frases ótimas e uma delas diz: o político de verdade vai com o seu aliado até a sepultura. Mas não se joga. Não vejo o Centrão se jogando na sepultura de ninguém. Nem do Sarney, do Collor, do Fernando Henrique, do Itamar, do Lula, da Dilma. O Centrão é um agrupamento de políticos que vive do patrimonialismo, do clientelismo, e precisa do Estado, da perspectiva do poder. Sem perspectiva de poder, esse setor se afasta. O Centrão mora no Nordeste, onde Bolsonaro tem maior rejeição e Lula tem maior aprovação. O oportunismo político vai dar o tom desse setor nos próximos meses. E também no pós eleitoral. Se houver uma adesão grande ao próximo governo que não seja o Bolsonaro, o preço deles vai ficar pequeno. Se houver uma adesão pequena, o passe deles se valoriza. A política brasileira não é só isso. Mas ela é em grande medida isso.

Ainda que Bolsonaro seja derrotado, como fica o bolsonarismo?

Como diz o grande teórico da democracia, Robert Dahl, a democracia não é um regime acabado. Ela tem de ser defendida e renovada a todo tempo. Eu escrevi um artigo para um livro que a Companhia das Letras publicou logo depois da eleição do Bolsonaro (Democracia em Risco?) em que eu demonstrava como essa direita reacionária no Brasil sempre existiu. Se não quisermos ir lá para a colônia, para o império, basta colocar um marco no integralismo, na década de 1930. O integralismo foi vencido por uma contra-revolução getulista. Mas ele não desapareceu. A própria ditadura getulista tinha elementos reacionários muito fortes. Isso apareceu em alguns partidos, primeiro na UDN; depois, na Arena; e no PDS. A gente sabe o que era enfrentar o malufismo em São Paulo. Com o ocaso do malufismo, a direita ficou sem padrinho. Durante um tempo, setores do PSDB tentaram namorar setores mais reacionários. E esses setores ficaram procurando um líder até encontrar Bolsonaro. Eles continuarão existindo? Sim, como sempre existiram. A diferença é quando esses setores têm o poder dos meios.

Qual é essa diferença?

Uma coisa é ver uma direita não democrática e ter que disputar, combater. Outra coisa é quando ela tem o poder dos meios, quando começa a controlar instituições, a nomear fulano, cicrano, quando começa a ter o controle das forças de Estado, das polícias. Se Lula for eleito, vai perceber duas coisas que não teve quando foi presidente. Primeiro, o que é herança maldita de verdade. Segundo, uma oposição na rua, que ele não teve porque seu governo coincidiu com esse ocaso da direita, do malufismo e a falta de referências na direita. Agora, se fizer um mau governo, se frustrar expectativas e não conseguir fazer um processo de união nacional tanto quanto possível, a extrema direita volta mesmo. Quem vai decidir? O povo, que é soberano nas urnas. Trump perdeu a eleição e Bolsonaro pode perder no Brasil porque não desempenharam a contento o que prometeram. Mas o mal-estar, para muitos, permanece. Sérgio Abranches, a meu ver o maior cientista político do Brasil no momento, tem um livro, O Tempo dos Governantes Incidentais. Ele organizou um raciocínio sobre como a revolução tecnológica está desabrigando muita gente, deixando pra trás. Gosto de usar como exemplo o filme Um Dia de Fúria, de 1993. O personagem de Michael Douglas não acordou mal num dia, ele estava sendo atropelado pela história. Esse cara 25 anos depois votou no Trump. Porque Trump percebeu esse mal-estar, assim como Bolsonaro, Viktor Orbán, Marcelo Duterte. Eles vocalizaram o mal-estar. Mas não uma saída, um futuro. Se olhassem para o futuro, não perderiam eleições. Mas ficaram só olhando pro passado. Agora, se os governos que se elegem na sequência também não conseguirem olhar para o futuro...

Esse é um risco que Lula corre?

Sim. Se ele ficar olhando as realizações do seu governo, achando que as condições são as mesmas. Por exemplo, não dá para fazer a mesma educação que se fez há 15 anos. O que a revolução tecnológica impõe é um novo tipo de educação. A pandemia teve um efeito catalisador. Quem mais sofreu com ela? Os mais pobres. A pandemia e a revolução tecnológica colocam um futuro que não sabemos ainda qual é, mas precisamos começar a entender. Citando Sérgio Abranches novamente, vivemos um interregno entre a sociedade que mudou canal de televisão no seletor e a que tem absolutamente tudo no smartphone. Se não se olhar para o futuro, o desamparo persistirá e a demagogia voltará.

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