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Sem sorte no jogo de azar

Bet365, uma das maiores casas de apostas esportivas do mundo e que ostenta diversos anúncios, inclusive nos gramados Brasil afora, tem um registro curioso na Receita Federal. Cadastrada ainda em 2015, a Bet365 Loterias do Brasil LTDA é definida como uma empresa de consultoria em gestão empresarial”. A empresa é britânica, mas, para funcionar no Brasil, precisa, entre outras coisas, do registro na Receita — só que em nenhum momento é apresentada pela finalidade de seu negócio: apostas. 

Como forma de contato, Leonardo David Penna de Cordeiro, sócio-administrador, apresentou o telefone (11) 1111-1111, número que, além de ter o DDD de São Paulo mesmo com a empresa sediada em Brasília, obviamente não existe. Também não são informados contatos através de e-mail ou site, modo pelo qual a Bet365 oferece seus serviços. No endereço físico listado, no Setor Comercial Sul, em Brasília, não há qualquer tipo de atividade. As salas estão vazias; as portas, empoeiradas. Procurado, Cordeiro não retornou as tentativas de contato da reportagem.

E ainda que a Bet365 tem CNPJ. Outras gigantes, como a Betano e a Sportingbet, nem isso. A Betano detalha que seu “site é operado pela Kaizen Gaming International Ltd, uma empresa estabelecida em Malta com o número de registro C43209, com seu endereço registrado no Flat B8, The Atrium, West Street, Msida MSD 1731, Malta. Kaizen Gaming International Ltd. é licenciado e regulamentado pela Malta Gaming Authority sob licença MGA / CRP / 152/2007, emitida em 12 de junho de 2019”. A Sportingbet anuncia que “tem operação por ElectraWorks Limited (Suite 6, Atlantic Suites, Gibraltar), empresa licenciada pelo Governo de Gibraltar com números de Licença 050 e 051”.

É em meio a esse tipo de sombras que se expande, vertiginosamente, o mercado de jogos online no Brasil. E, na bruma da falta de uma regulamentação no país, crescem na mesma velocidade e escala as ilegalidades em torno dele.

Há algumas semanas, o futebol brasileiro tem sido chacoalhado pelas operações Penalidade Máxima e Penalidade Máxima II, que investigam esquemas ilegais de apostas esportivas. (Aqui vale a ressalva que as casas de apostas, nesses casos, não estão sendo acusadas de nada.) A discussão sobre a ética e a legalidade da prática tomou os programas de debate — mesmo os que têm sites de apostas entre os anunciantes — e trouxe de volta a questão: por que é tão difícil legalizar jogos de azar e apostas no Brasil? Sem legislação específica, diversas casas de apostas se estabeleceram no Brasil de forma acelerada, mas sem de fato estarem no país. Placas de publicidade nos gramados, propagandas em horário nobre para o esporte e patrocínios a clubes de futebol explodiram, ao ponto de 39 dos 40 clubes das séries A e B do futebol masculino nacional contarem com alguma bet no fechamento das finanças — e nos uniformes de jogo.

As bets viraram febre no país em que o futebol é vivido de forma intensa e cotidiana. Há perfis nas redes sociais que orientam os possíveis apostadores sobre que caminhos seguir na hora de “fazer uma fé”. Na mesma Série B vasculhada e investigada pelo Ministério Público goiano — que desencadeou toda a investigação e desaguou na Penalidade Máxima —, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) determinou aos clubes que exibam em seus uniformes a logo da patrocinadora master da competição, a Betano, justamente uma bet.

A bem da verdade, o descaso do poder público não é exclusividade das apostas esportivas. Mais antiga “fezinha”, o jogo do bicho é, talvez, o principal exemplo dos efeitos da não-regulamentação de determinados setores. E do falso moralismo com que o Brasil lida com o assunto. Criado para aumentar a visitação a um zoológico carioca ainda na década de 1890, o jogo do bicho, mesmo ilegal, é uma das instituições mais sólidas do país. Com bookmakers espalhados pelas ruas, movimenta cerca de R$ 12 bilhões anualmente, segundo estimativas feitas em 2016. Sem regulamentação, as jogatinas caem na ilegalidade, não têm recolhidos os impostos devidos e alimentam organizações criminosas, como o caso dos bicheiros que comandavam comunidades inteiras no Rio de Janeiro até meados dos anos 1990. 

Um dos projetos mais antigos em tramitação no Congresso Nacional é o PL 446 de 1991, que versa sobre a legalização do jogo do bicho e a liberação de cassinos e bingos. Aprovado pela Câmara em fevereiro do ano passado, o projeto aguarda deliberação do Senado, onde está travado na Secretaria de Apoio da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Na Casa Baixa, rachou a base governista e enfrentou resistência de parlamentares como Sóstenes Cavalcante (DEM/RJ), que enxergava no projeto um “custo social muito grande”. “Sempre que se aborda a geração de empregos ou arrecadação, não se leva em consideração o custo social. Essas pessoas terão problemas graves, desajustes familiares. Muitos terminam em suicídio e em questões que sobrecarregam o SUS”, sustenta o parlamentar, antigo líder da bancada evangélica. Ainda de acordo com ele, o fato de ser pastor evangélico não influi sobre a opinião, como apontam seus opositores. 

Bola pro mato

Com relação às bets, em 2018, o então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.756, que, entre outras providências, trata do funcionamento do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e estipula formas de financiamento para ele. Uma das fontes de recursos provém do que foi estabelecido pelo artigo 29 como apostas de quota fixa, que nada mais são que as apostas “relativas a eventos reais de temática esportiva”. A norma, que surgiu de uma Medida Provisória sobre o tema, também estabelecia em dois anos, prorrogáveis por mais dois, o prazo para que o Ministério da Fazenda regulamentasse a modalidade. À época, Jair Bolsonaro preparava-se para assumir o país junto ao seu “posto Ipiranga”, Paulo Guedes. Segundo pessoas que participaram da edição da MP, havia conversas com o ministério bolsonarista para que a regulamentação viesse ainda em 2019.

Apesar do interesse de Bolsonaro por futebol, haja vista a quantidade de camisas de clubes que o ex-presidente utilizou em aparições públicas, Guedes e o rebatizado Ministério da Economia não avançaram sobre o tema. O que avançou, mesmo, foram os sites de apostas, popularmente conhecidos por “bets”. Não houve qualquer tentativa de regulamentação do setor, que sequer apresentava alertas sobre os perigos do jogo como patologia, algo que mesmo as fortes indústrias do cigarro e das bebidas alcóolicas foram obrigadas a exibir em seus produtos. As apostas aumentaram em profusão e, em alguns canais esportivos, é possível acompanhar as odds — ou chances de vitória — em tempo real, na tela.

Até aí, pouco se falava sobre o tema, até pela estratégia das casas do gênero de patrocinar, também, os programas esportivos. Os sites de apostas eram um grande bode na sala do futebol brasileiro. Sem limites claros, as relações entre esses estabelecimentos e jogadores, clubes e até mesmo torcidas foi sendo tecida livre de regras. Apostar em resultados esportivos não é exatamente uma novidade, nem mesmo para o Brasil. A diferença é que as “quotas fixas” a que se referem a Lei de 2018 criaram novos ramos, como quantidade de escanteios, faltas ou cartões amarelos dentro de uma mesma partida de futebol, o que permite a manipulação de estatísticas que não são as mais importantes, como número de gols, e permite mesmo uma relativização das atividades ilícitas por parte de jogadores aliciados. Afinal, alguns justificam, que mal tem forçar um cartãozinho amarelo? Ou dar dois escanteios para o adversário?

Sete mandamentos

De acordo com o Instituto do Jogo Legal, existem sete “boas práticas” com relação à jogatina. A primeira delas é a necessidade de “regular antes de proibir”, seguida da máxima de que “proibição leva ao jogo clandestino”, e isso leva à corrupção. Exemplo disso é que há, no Brasil, uma única legislação que trata de punições para manipulações de resultados, e isso apenas para atletas e outros agentes esportivos. Está no artigo 41-E do Estatuto do Torcedor a pena de dois a seis anos de prisão, mais multa, para quem se envolver em esquemas do gênero. A resposta do Estado brasileiro ao esquema de apostas no esporte mais popular do país ainda não saiu, mas deve vir, num horizonte mais curto, como medida provisória do Ministério da Fazenda.

Nela, entram as divisões dos impostos que incidirão sobre a atividade, a criação de uma secretaria para o tema dentro da pasta e a obrigação dos sites do setor de alertar para a capacidade estimulante dos jogos, num sentido negativo, como potenciais patologias. A norma vem alinhada com diversas legislações europeias. A mais antiga, da Inglaterra, promulgada em 2005, criou agências reguladoras e extinguiu o patrocínio das bets a clubes de futebol até a temporada 2025/26. De forma reservada, um servidor da Fazenda disse crer que a norma impedirá que as apostas se tornem um novo jogo do bicho. “Ninguém se preocupou em regulamentar, deixaram de lado, e quando vimos perdemos o controle sobre uma atividade tida como ilícita. Não arrecada, não contribui e só financia o submundo”, declarou.

Bem, não só. A popularidade e o investimento destas empresas são tantos que diversos jogadores já apareceram em comerciais e ações publicitárias, como Vinícius Jr., do Real Madrid, e Marquinhos, do Paris Saint-German — ambos da Seleção Brasileira e com altos cachês. Até Felipe Neto, o primeiro grande influenciador digital brasileiro, atua em parceria com uma delas, a Blaze Cassino, especializada em cassino virtual e, mais recentemente, em apostas de quota fixa.

O resultado de toda essa entrada do hábito de apostas em um país onde a atividade não é regulamentada é que, de acordo com a empresa SportsRadar, especializada em accountability esportivo, o futebol pentacampeão do mundo é hoje também o recordista em partidas sob suspeita de manipulação. São 152 jogos sob análise na temporada 2022, crescimento de 34% em relação ao ano anterior. Na classificação inglória, dividimos espaço com campeonatos de países como Rússia (92 jogos), República Tcheca (56), Cazaquistão (43) e China (41). O outro campeão mundial que consta na lista é a Argentina, com 39 jogos sob suspeita no ano passado. É por essas e outras, segundo o deputado Sóstenes Cavalcante, que ele defende a suspensão das bets, “cortar totalmente a possibilidade de que isso exista”. Agora, o tema é alvo de uma CPI na Câmara. A ver se vai ser só simulação na área e showzinho ou se o Brasil finalmente vai encarar a necessidade de regular sua paixão por jogos.

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