A era do calor que mata começou

Quatrocentas e oitenta e nove mil pessoas morrem por ano por causa do calor; 61 mil no verão passado, só na Europa. A onda de calor de 2021 no noroeste do Pacífico matou 1 bilhão de criaturas marinhas. Os oceanos absorvem, por segundo, o calor equivalente a cinco bombas atômicas. Outra onda de calor, na Antártica, levou os termômetros aos 20ºC. O recorde histórico de alta temperatura do Canadá foi batido em 2021, com 49,6ºC. Da Europa também: 48,8ºC, na Sicília. Há menos de um mês, uma cidade chinesa marcou 52,2º C. Julho de 2023 foi o mês mais quente de que se tem registro. A última vez que o planeta esteve tão quente foi 125 mil anos atrás. O número de dias em que a temperatura passa dos 50ºC em algum canto do mundo dobrou desde a década de 1980. Cerca de 30% da população mundial está exposta a ondas de calor mortíferas mais de 20 dias por ano. Há uma chance de 98% de que ao menos um dos próximos cinco anos seja o mais quente de que se tem notícia. No fim deste século, até 75% dos habitantes da Terra viverão sob risco de morte por causa de eventos climáticos causados pelo calor. Desde a década de 1990, ondas de calor causadas por mudanças climáticas custaram à economia US$ 16 trilhões.

Estamos na era do calor que mata. Num dia tórrido, um trabalhador desprotegido insiste na lida ao ar livre, temendo por seu emprego, e sucumbe. Sob a incandescência do sol, uma família sai com sua bebê e seu cachorro numa caminhada que parecia inocente e seus corpos são encontrados horas depois. Os tetos de zinco que refletem poeticamente a luz do luar em Paris se tornam fornalhas que sufocam idosos. Essa onipresença invisível que é a ardência de um dia extremamente quente está mais comum, mais intensa e mais perigosa do que nunca foi ao ser humano. Nos últimos 250 anos, fomos colocando combustível no forno que, por fim, nos assará. Combustível literal, fóssil, que libera gás carbônico, cujas moléculas vibram com o calor que a Terra absorve e reflete. Quanto mais moléculas de gás carbônico no ar, mais vibração, mais calor. “Precisamos mudar, fundamentalmente, tudo”, diz Jeff Goodell, jornalista que cobre mudanças climáticas há mais de duas décadas, principalmente para a Rolling Stone, em conversa com o Meio. “Nossas velhas ideias sobre como é o clima — o que é o verão, quando começa o inverno —, tudo que sabíamos de mundo climático acabou.”

Goodell é um americano nascido no Vale do Silício, mas que mora no Texas, terra de muito calor. Num dia escaldante, conversava com sua mulher e musa, Simone, e, já tendo escrito livros sobre o aumento do nível do mar, os efeitos da indústria do carvão e outras ameaças climáticas, percebeu que era hora de encarar a força motriz dessas mudanças. The Heat Will Kill You First (O Calor Vai te Matar Primeiro, em tradução livre) é o livro produto dessa apuração, recém-lançado em nove países (ainda não no Brasil). As histórias de morte relatadas ali em cima são algumas das que Goodell compilou em três anos de pesquisa — assim como a certeza inequívoca do título de sua obra. E de que é o CO2 dos combustíveis fósseis o grande responsável. “O fato de estarmos queimando combustíveis fósseis que emitem CO2, e que o CO2 vai para a atmosfera e aquece o planeta, é ciência muito, muito básica. É tão real quanto a gravidade.” Essa habilidade de apontar culpados por eventos climáticos extremos com convicção — e provas — é algo relativamente novo no campo científico. Depois de uma onda de calor que vitimou 70 mil pessoas na Europa vinte anos atrás, pesquisadores perceberam que atribuir responsabilidade clara era chave. Uma nova área, dedicada a isso, se fundou. E hoje pode afirmar, com dados, que uma onda de calor como a que acometeu a China em 2023 pode acontecer até a cada 5 anos se a temperatura continuar subindo — sem a ação direta do homem, esse teria sido um evento de 1 em 250 anos.

Ter essa confiança na ciência por trás de afirmações assustadoras é crucial. Tão devastadoras quanto as ondas de calor são as de negacionismo. Mesmo àqueles que questionam o mais básico dos dados, o de que a indústria de óleo e gás é uma das principais causadoras do aquecimento global, Goodell tem ciência como resposta. “A própria ExxonMobill tem estudos e modelos, da década de 1970, que mostravam com bastante precisão que a queima de combustíveis fósseis esquentaria o planeta. Eles não são ambientalistas liberais de esquerda malucos.” Não são. Mais que isso. Há pesquisas que estimam que a ExxonMobill foi responsável, sozinha, por cerca de 3% do total de emissão de gás carbônico no planeta em cinco décadas. Enquanto seus acionistas seguem se recusando a tomar medidas concretas para diminuir essa “contribuição”, processos e mais processos podem começar a pingar contra a empresa — pedindo 3% de toda a destruição de propriedade, prejuízos e mortes que aconteceram por eventos climáticos nesse período. Isso talvez a force a mudar. Os grandes consumidores de combustível fóssil estão se mexendo. Do Fórum de Sustentabilidade da Boeing, em São Paulo, Pedro de la Fuente, gerente de Sustentabilidade da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês), disse ao Meio que, na última década, as companhias aéreas já gastaram mais de US$ 1 trilhão em aeronaves mais eficientes e reduziram em 21,5% as emissões de CO2 por assento por quilômetro. “Foram 10 anos de muito trabalho.”

Só que o nível de trabalho que frear o aumento da temperatura requer é imensurável. Sim, frear, porque, a não ser que se invente uma forma de sugar gás carbônico em quantidades colossais, não se reverte o estrago do que foi jogado na atmosfera. No máximo, se freia. Até aqui, nesses mais de dois séculos de queima de óleo e gás, a temperatura do planeta já subiu 1,1ºC comparada aos níveis pré-industriais. A ONU limitou, no Acordo de Paris, a 1,5ºC o tolerável. Na trajetória que estamos de crescimento, até 2100 vamos ficar entre 2,1ºC e 3,9ºC acima dos níveis pré-industriais. A conta não fecha. Na previsão “otimista”, de 2,1ºC, teremos uma temperatura terrestre que não acontece há mais de 2,6 milhões de anos. No piores cenários traçados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU, se o planeta bater as temperaturas mais altas projetadas, vamos reverter até 50 milhões de anos mais frios em apenas dois séculos. Por que essa referência à pré-história importa? Porque os cientistas já sabem que as mudanças climáticas, regionais ou globais, foram fundamentais em cada um dos cinco eventos de extinção em massa na história da Terra. E a temperatura no final do século pode ultrapassar os limiares que desencadearam extinções em massa anteriores. O calor pode nos extinguir.

Então, por que não estamos mais assustados?

Uma das razões é a noção de que outros eventos climáticos extremos são mais devastadores. Um furacão ou uma enchente têm a destruição e a morte como cartão de visita, você vê pela janela. Goodell lembra, de saída, que o calor está na formação e nas consequências de muitos desses fenômenos. Até 600 mil pessoas morrem por ano por inalar a fumaça de incêndios florestais. “Furacões nada mais são que motores de calor, que giram com o ar quente e úmido que emerge de oceanos quentes.” E os oceanos, onde se movimentam as correntes que definem a estabilidade do clima, estão mais quentes do que nunca. Mais calor significa, necessariamente, mais eventos extremos de todo tipo.

O calor é ardiloso. No imaginário e na história da evolução, está associado à criação tanto quanto à destruição. O universo nasce de uma explosão. Na Terra, a vida surge em torno do calor dos vulcões. É provável que o calor no solo tenha feito nossa antepassada hominídea, Lucy, se levantar e iniciar uma espécie ereta. A manifestação física primordial do calor costuma ser um belo dia de sol, basicamente a versão romântica de felicidade. Enquanto emoldura a imaginação do que é um momento feliz, o calor que esquenta as águas dos rios em Vancouver leva salmões a descamarem enquanto nadam para procriar. Filhotes de falcão que ainda não aprenderam a voar se jogam de seus ninhos nos parapeitos metálicos de prédios para não fritar. Na última década, algo entre 40% e 70% das 4 mil espécies de animais estudadas por um grupo de cientistas migraram para fugir do calor extremo.

Mas os humanos, em alguma medida, têm feito o movimento oposto. Nos EUA, o censo de 2020 apontou que as pessoas já estão migrando por mudanças climáticas. Elas saem de áreas sujeitas a tempestades (de chuva ou de neve) e procuram lugares mais quentes — entre outras coisas, porque costumam ser mais baratos. Também porque foram acostumadas à ideia de calor como algo saudável. Sexy. Desejável. “Mesmo o termo ‘aquecimento global’ soa como um clima melhor na praia”, preocupa-se Goodell. Comunicar que o mundo esquentar 2 graus é algo catastrófico é muito difícil. Quem é capaz de perceber a diferença entre 35 e 37 graus? Entre as mudanças radicais que o jornalista propõe, está a da linguagem. A começar por se nomear ondas de calor como se faz com furacões e tempestades. “Ao se ouvir falar da onda Lúcifer ou Diablo, uma pessoa que não está atenta ao assunto ou às formas de se prevenir presta atenção.”

Outro motivo do desprezo pelo tamanho da ameaça é um dos que mais assustam Goodell quando ele tenta ser otimista sobre o futuro. O pouco valor atribuído à vida, especialmente dos mais vulneráveis. Como em toda catástrofe, os mais suscetíveis são os mais pobres. E os idosos. Goodell divide, em seu livro, os que têm mais condições de se salvar (os “cool”) no curto prazo dos basicamente condenados a perecer (os “damned”). O tipo de recurso necessário para se pagar por ar-condicionado, mudar de cidade, lidar com uma disparada de preços nos alimentos por causa do calor extremo é algo restrito a poucos. O tipo de saúde que resiste à insolação, desidratação e exaustão causadas pelo calor certamente não é a da população mais velha. E a pandemia deixou evidente como estamos, enquanto sociedade, prontos a suportar altos níveis de morte de pobres e idosos. Aos milhares por dia. “Temos que a gente se adapte a ver pessoas morrendo de calor, a furacões maiores e mais fortes, à Amazônia queimando, pensando ‘ah, é assim que nosso mundo funciona’. Não é. É assim que o mundo que criamos funciona. Mas temos algum controle sobre ele.”

Por acreditar nisso, Goodell está na missão do alerta, do chamado à ação. Não quer ser profeta do caos, da ruína. Já foi chamado até de “otimista ingênuo”, ele esboça um projeto de sorriso pela primeira vez em toda a entrevista. Enquanto é um fato que as cidades, com seu efeito de ilhas de calor, chegando a exibir 15 graus a mais que o entorno rural, são armadilhas mortais, é nelas que têm surgido algumas das inovações e saídas mais auspiciosas. Em contraponto aos edifícios lacrados que dão suporte a sistemas de ar-condicionado (eles próprios grandes emissores de gases do efeito estufa), há cidades se remodelando para ter áreas verdes, de sombra, de circulação de ar — e menos circulação de carro. A humanidade está, em alguns casos, recuperando a memória de construir cidades para o calor, como se fazia na Grécia, no Oriente Médio. Vai ser tarde demais? “Teremos que pensar de forma diferente sobre como obtemos nossa energia, como construímos nossas cidades, de onde obtemos nossa comida. Se olharmos a situação francamente, bem no olho, e começarmos a construir de uma maneira mais inteligente, a tomar as ações que precisamos tomar para lidar com as coisas, podemos usar essa transformação para realmente construir um mundo melhor.” A humanidade simplesmente depende disso.

Em tempo: esta reportagem foi escrita ao som da trilha sonora de Interstellar, de Hans Zimmer (Spotify).

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