A cabeça de Alexandre
Numa quarta-feira de abril de 2022, a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, lia as acusações do Ministério Público contra o ex-deputado bolsonarista Daniel Silveira, preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal 1044. Silveira havia incitado apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro a invadir o STF. “É inconcebível no Estado Democrático de Direito que alguém instigue; que nos dizeres do réu diga ‘o povo entre dentro (sic) do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele, sacuda a cabeça de ovo dele e jogue dentro de uma lixeira’”, Lindôra riu e mirou Alexandre. O ministro sorriu, com a mão na boca, erguendo os ombros. Um tanto resignado, um tanto bem humorado — como quem antecipasse algo que poucos enxergavam àquela altura. Lindôra ainda riu mais uma vez, desculpando-se. A deputada Carla Zambelli (PL-SP) também já ironizou a calva do ministro na legenda de uma foto ao lado do hacker Walter Delgatti Neto, da Vaza Jato, que depois seria contratado por ela para desacreditar as urnas eletrônicas. “O homem que hackeou 200 autoridades, entre ministros do Executivo e do Judiciário brasileiro. Muita gente deve realmente ficar de cabelo em pé (os que têm) depois desse encontro fortuito”, postou a deputada. Não são poucas as referências à cabeça de Alexandre. Direta ou indiretamente. Em ameaças ou em citações inusitadas. Todos querem saber o que se passa nela.
Alexandre é percebido no Supremo como calculista e estratégico. Não avança em falso. Cada passo tem objetivo definido, propósito, calço. Ele sempre sabe onde quer chegar e com frequência resgata motivações anteriores, segundo auxiliares mais próximos. Com bastante frieza e uma capacidade rara de tomar decisões rápido. Agora, garante quem o observa de perto, não sossegará até colocar na cadeia o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Build the case” é a expressão emprestada do juridiquês americano que mais se adequa a essa construção de um caso consistente, tijolo a tijolo, em torno de um suspeito. Como se cada passo dado tivesse sua ordem específica, cada movimento descortina mais uma parte da trama para quem presta atenção, construindo lentamente o processo até que seu desfecho apareça. Um sobrevoo sobre os inquéritos já públicos demonstra como uma coisa leva à outra. Está tudo encadeado. E Alexandre tem seguido um rito que comprova seu alinhamento com a Polícia Federal: a polícia pede, ele autoriza as operações. A polícia divulga e ele, em seguida, tira o sigilo dos inquéritos, explicitando o caminho que o fez decidir e abastecendo os veículos de comunicação com detalhes saborosos da estrada lógica percorrida.
Essa afinidade com o trabalho policial não é casual. Alexandre iniciou sua carreira na promotoria, tem cabeça de acusador. Foi promotor de Justiça do Estado de São Paulo por 11 anos, de 1991 a 2002. Dali, pulou direto para a carreira política. Primeiro, como secretário de Justiça de São Paulo, quando acumulou também a presidência da antiga Febem. Depois, foi secretário de Segurança Pública de São Paulo. Em seguida, ministro da Justiça e Segurança Pública de Michel Temer. Em todos esses cargos, comandou forças policiais. Entende a lógica investigativa. E se aproximou de pessoas das polícias Civil e da Federal. “Há delegados muito fiéis a ele”, conta uma pessoa próxima. “Alexandre desenvolveu esses laços nos três anos de secretaria e um ano e meio de ministério. É o time que ele montou, tanto no TSE como os delegados, que tocam esse inquérito [das fake news].”
É justamente nessa investigação que se inicia a montagem do caso contra Bolsonaro. Originalmente, eram dois os inquéritos que apuravam os ataques do ex-presidente às instituições e à democracia. Um, o das fake news, aberto de ofício pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, em 2019 — e do qual Alexandre era o relator. Outro, o dos atos antidemocráticos, também relatado por Alexandre, foi extinto por ele e juntado ao primeiro em julho de 2021. Esse protagonismo colocou a cabeça de Alexandre a prêmio e sua família na mira. A frieza do ministro foi posta à prova em um episódio limite. Em julho último, de férias, o ministro estava no aeroporto, em Roma, quando foi atacado por brasileiros bolsonaristas, que o chamaram “bandido, comunista e comprado”. Lutador de boxe tailandês, o ministro não reagiu, nem ao ver seu filho levar um empurrão e um tapa no rosto que lhe fez voar os óculos. Pessoas presentes na sala VIP do Aeroporto de Fiumicino contiveram os agressores, segundo as declarações prestadas pelo próprio ministro. Com a família no alvo do bolsonarismo, a filha de Alexandre acabou indo morar fora para estudar. Ele também adotou um estilo de vida ainda mais discreto.
Ao mesmo tempo em que sabe conter suas emoções, Alexandre conhece o que é capaz de impactar emocionalmente os investigados. Ele trabalha com o susto, o fator surpresa, calculando aí os efeitos das batidas de porta matinais nas operações de busca e apreensão. Foi assim quando a PF amanheceu no batente de empresários bolsonaristas que fantasiavam um golpe de Estado via WhatsApp. O ministro sabia que aqueles homens, cujos nomes foram divulgados pela coluna de Guilherme Amado, no Metrópoles, haviam financiado os atos grandes em Brasília e São Paulo do Sete de Setembro de 2021. Foi naquele dia, na Avenida Paulista, que Bolsonaro pregou para 125 mil pessoas presentes e outras tantas assistindo por live que desobedeceria decisões judiciais que classificou como “farsas”. Foi além. Desafiou Alexandre: “Quero dizer àqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: só Deus me tira de lá. Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso.” Os amigos do ministro se impressionaram com sua frieza naquele momento. Inelegível Bolsonaro já está.
Alexandre foi criticado por muitos juristas pela ação contra os empresários pelo uso desmedido de força contra pessoas que, afinal, estavam apenas conversando. Mesmo prevendo as críticas, agiu por considerar que seu intuito era outro e o susto dado pela PF à porta teve efeito. Com a operação contra os grandes financiadores do evento de 2021, o ministro terminou por desmontar a rede de apoio monetário ao Sete de Setembro de 2022 — e ao golpe. E conseguiu. O grupo entendeu que estava sendo monitorado, o que fez minguar recursos para Bolsonaro. Os atos do Bicentenário da Independência foram feitos com menos dinheiro, vindo de empresários mais modestos, sem os pesos-pesados, que acabaram se recolhendo no apoio ao capitão. No 8 de Janeiro, na intentona, o financiamento veio de donos de empresas de ônibus, de frigoríficos, tudo de porte médio, do Centro-Oeste, do Sul e do interior de São Paulo.
Dupla de ataque
Na manhã de quinta-feira, esta semana, o circo estava armado na sala da CPI dos Atos Golpistas. O depoimento do hacker Delgatti envolvia, pela primeira vez, de forma direta o ex-presidente Bolsonaro numa trama para fraudar urnas eletrônicas. Delgatti também deu mais detalhes sobre um grampo no telefone de Alexandre, que Bolsonaro teria pedido que o hacker assumisse. Enquanto isso, o ministro participava de uma sessão morna do TSE, a menos de um quilômetro do Senado, impávido. Na sessão, ele era homenageado por sua atuação em um ano na presidência da Corte Eleitoral. Recebeu elogios da vice-presidente, ministra Cármen Lúcia, e do procurador Paulo Gonet, que hoje é a aposta do meio jurídico para ser o indicado de Lula na sucessão de Augusto Aras na Procuradoria-Geral da República. As honras feitas na sessão foram principalmente ancoradas no trabalho de Alexandre em “benefício da democracia brasileira”. Uma clara referência ao cerco que o ministro vem erguendo em torno do ex-presidente. “A democracia brasileira deve muito ao empenho de Vossa Excelência”, destacou a ministra.
O mandato de Aras termina no dia 26 de setembro. A inércia do atual PGR, uma das justificativas para a abertura do inquérito das fake news, não combina com a de Alexandre, que alimenta a esperança de ter na PGR alguém mais alinhado com seu trabalho. Gonet é um nome palatável. Alexandre sabe que, sem um Ministério Público atuante, todo trabalho de investigação que ele tem feito, alinhado com a Polícia Federal, pode ir por água abaixo. Se não há denúncia, a ser feita pelo PGR, não há processo. E ele não pode abrir um processo, de ofício, contra o ex-presidente da República.
Hoje existem no STF contra Bolsonaro cinco inquéritos instaurados com a concordância da PGR. O primeiro é o 4831, que apura a interferência do então presidente na Polícia Federal e trata das suspeitas levantadas pelo na época ministro da Justiça, hoje senador, Sergio Moro, quando rompeu com o ex-capitão e decidiu deixar a pasta. Outro inquérito é o 4874, que mira as milícias digitais. A ele foi apensada a petição 9842, que pede investigação sobre a divulgação de notícias falsas em lives sobre urnas e processo eleitoral. O ex-presidente tem contra si ainda o inquérito 4878, que apura o vazamento, em uma live de agosto de 2021, de documentos de uma investigação sigilosa sobre ataques ao sistema do TSE.
Um quarto inquérito é o 4888, que investiga a atuação de Bolsonaro na pandemia, fatos apurados pela CPI da Covid. O último é o 4921, que apura os atos golpistas de 8 de Janeiro. Ainda existem duas petições de investigação, de caráter sigiloso. Uma delas é sobre o desvio de presentes recebidos no exterior, o caso das joias, e a outra é sobre a falsificação de dados de vacinação, que levaram o ajudante de ordens Mauro Cid à prisão. É outro exemplo, aliás, de como Alexandre atua. A falsificação dos documentos de vacinação poderia servir à prisão, mas com excesso de rigor. O ministro sabia, porém, que Mauro Cid estava envolvido em todo o planejamento dos atos golpistas. Aquela circunstância lhe permitiu isolar Cid e ter acesso às suas comunicações.
Alexandre não contava com o escândalo das joias. Às vezes, ele se surpreende. Os presentes dados ao Estado brasileiro e que Bolsonaro teria tentado vender em benefício próprio não estavam no script — mas entraram na conta assim que surgiram. Com o celular de Cid nas mãos, a PF levantou novas conversas que levaram a investigação das joias a outro nível, permitindo que se apreendessem os celulares de seu pai, o general Mauro Lourena Cid, e quatro celulares do advogado-faz-tudo de Bolsonaro, Frederick Wassef — entre eles, um aparelho usado por Wassef só para falar com Bolsonaro. Wassef é um fio desencapado, incontrolável. Acuado, pode entregar muita coisa. Com cada nova peça, Alexandre se sentiu confiante para autorizar, enfim, o pedido da PF de quebra de sigilo fiscal de Bolsonaro e Michelle, sua mulher. O pânico no bolsonarismo se instalou. O terceiro advogado de Mauro Cid, Cezar Bitencourt, chegou a anunciar na revista Veja a disposição de seu cliente de “confessar” detalhes sobre a venda do relógio Rolex. No dia seguinte, desanunciou. Foi à GloboNews e mal conseguiu formular uma frase com sentido. Negava o que disse à Veja e confirmava tudo, simultaneamente. Tudo enquanto a PF cumpria ordem de Alexandre e prendia a cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal.
As frentes do cerco são múltiplas. O foco de Alexandre é único.