O futuro da extrema direita brasileira

Uma direita mais tradicional se reacomodou no espectro político da Nova República, essencialmente progressista. Agora, o espaço para extremismos deve ficar mais restrito

Desde a posse de Jair Bolsonaro a questão que mais atormentou a vida dos democratas brasileiros foi a da erosão da República pelos “golpes nossos de cada dia” produzidos por seu governo. Ultimamente, porém, a pergunta mudou: sobreviverá o bolsonarismo? Como será a vida política daqui por diante? Seguirá à direita altamente polarizada, intransigente, golpista, selvagem? Muitos creem que sim. Este artigo flerta com a hipótese contrária: a de que a extrema direita tende a perder relevância nos próximos anos, em razão de fatores específicos da conjuntura brasileira.

É claro que a emergência de uma extrema direita global tem causas gerais. Ela surge da ressaca da globalização e dos desequilíbrios socioeconômicos que ela provocou. Mas cada lugar tem sua história e é a particularidade de cada uma delas que não pode ser descartada na explicação.

Na Europa ocidental e central, a força da extrema direita está ligada à crescente perda de centralidade geopolítica da região desde a descolonização e à crescente presença em suas sociedades, ao contrário, de etnias que outrora controlava de longe em suas antigas possessões coloniais. Essa sensação de decadência e de inversão de posições serve de combustível à nostalgia reacionária de um tempo de glória cuja perda se atribui a mudanças culturais. Daí que a extrema direita surfe na possibilidade de resgate de uma identidade étnica e cultural perdida contra os adventícios, que necessitaria de governos de força.

O êxito da extrema direita também varia conforme pertençam os sobreditos países ao leste ou ao oeste do continente europeu. Os europeus ocidentais e centrais têm uma história mais longa de democracia liberal, iniciada no século dezoito, o que reduz as chances da extrema direita chegar ao poder — caso da França — ou que ela logre implantar um governo francamente autoritário caso o consiga — caso da Grã-Bretanha. No leste da Europa, porém, a democracia é planta mais recente e mais frágil, e o experimento logo na primeira crise econômica despertou grandes medos em eleitorados, receosos de perderem “sua identidade”. Foi o caso da Polônia e da Hungria, ainda assim reduzidos em seu alcance pelo cordão sanitário da União Europeia. Na Rússia, porém, que por longo tempo foi um dos maiores impérios autoritários do mundo e onde os incentivos externos à democracia são escassos, a ditadura floresceu com mais viço.

Os Estados Unidos são caso à parte. Primeiro, porque são a potência hegemônica do mundo há mais de um século, sempre atribuindo seu êxito histórico à liderança a uma elite de origem britânica, e portanto, europeia, branca e protestante. A hegemonia americana, porém, vem sendo consistentemente atingida pela emergência da China como potência geopolítica. Já sua identidade história e étnica, que já foi questionada pelos primeiros emigrantes europeus católicos, de origem italiana e irlandesa, agora o vem sendo em bem maior grau pelos contingentes negros e hispânicos. O pânico semeado entre aqueles que sempre se julgaram os “filhos do solo” desencadeou a nostalgia por uma América próspera de patriarcas emigrados da Europa, localizada historicamente no velho Sul escravista ou no velho Oeste.

O caso da emergência da extrema direita no Brasil parece diferente em alguns aspectos importantes. Ao contrário do que se passa nos Estados Unidos e na Europa ocidental, o “comunismo” aqui não está ligado ao sentimento de decadência geopolítica. Diferente, também, do que se passa na Europa ocidental, a democracia brasileira está razoavelmente consolidada depois de quase quarenta anos — tanto que resistiu a Bolsonaro, ainda que à custa de muito esforço. O “comunismo” também não é, como no Velho Continente, reação ao fato de estar a sociedade brasileira se tornando multiétnica, coisa que sempre foi. A extrema direita brasileira simplesmente reage ao êxito de políticas públicas que nos últimos trinta anos favoreceram a ascensão socioeconômica de contingentes que sempre aqui estiveram, embora em condição subalterna. Veio na esteira o declínio do patriarcalismo e, com ele, a naturalização do feminismo e da legitimação de diversos tipos de orientação sexual.

Será isso suficiente para manter a extrema direita como dominante no espectro conservador brasileiro nos próximos anos?

A crise política de 2013 a 2018 foi uma consequência de um turbulento processo de integração da direita à democracia de 1988. A Nova República foi um regime essencialmente progressista. Os conservadores eram envergonhados e se diziam de centro.

O retorno da direita, porém, era questão de tempo e veio depois de um longo período da esquerda no poder. Mas ela veio mais extremista do que era necessário, devido à insuficiente estigmatização da ditadura e pela frustração pela derrota de Aécio Neves em 2014. A instrumentalização da Lava Jato como meio de forçar a mudança de governo, demonizando a política representativa como corrompida e a esquerda como partícipe legítima do jogo democrático gerou uma crise de legitimidade do sistema representativo que quase derrubou o regime e tornou possível a eleição de Bolsonaro em 2018.

Quatro anos depois, porém, o que se percebe é que o essencial já ocorreu. A direita se legitimou socialmente, ocupou vastos latifúndios no Congresso, governos de Estados, órgãos de imprensa até na televisão. Não há mais crise de legitimidade do regime político. As Forças Armadas não estão dispostas a nenhuma aventura, por mais conservadoras que sejam. Mas o êxito da direita em ocupar esses espaços contrasta com o fracasso de Bolsonaro, que se tornou o primeiro presidente desde 1994 a não se reeleger para um segundo mandato. Embora não haja aqui espaço para desenvolver o argumento, pode-se afirmar que a causa de sua derrota foi justamente o seu extremismo reacionário, que tornou a administração federal prisioneira do militarismo e do negacionismo. Duas dezenas de parlamentares se elegeram conforme o modelo de negócios da lacração reacionária e golpista de Bolsonaro, é verdade. Mas essa turma terá força para constituir uma oposição consistente? Ou será linha auxiliar de uma direita mais “limpinha”, à forma de Maluf, tal como parecem preferir governadores de direita recém-eleitos, como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema — que, aliás, se esmeram em se afastar do bolsonarismo ou do “bolsonarismo raiz”?

Não só é considerável a chance de que a extrema direita não seria hegemônica no campo da direita. Também é preciso considerar a possibilidade de que não venha a ser Bolsonaro quem lidere o próprio campo tornado minoritário da extrema direita. Visivelmente o velho deputado lacrador do baixo clero centrônico nunca foi personagem intelectual e emocionalmente à altura do personagem criado por seus filhos, de mito, super-homem, capitão do povo capaz de por meio de uma revolução ou golpe apagar os últimos quarenta anos da vida brasileira. Calado, choroso, deprimido, Bolsonaro teme o que lhe espera fora do poder e parece hoje mais propenso a abandonar a lacração golpista e se comportar de forma institucionalmente mais responsável, para obter alguma simpatia ou piedade do sistema político, que atenue as punições que inevitavelmente recairão depois de um mandato de crimes continuados contra a democracia e as instituições.

Enfim, há uma chance considerável de que o ciclo de instabilidade tenha terminado. Cansados de crise e extremismo, os poderes da República parecem finalmente convergir para um novo pacto de convivência, facilitado pela perspectiva de um governo eleito de orientação essencialmente centrista e pragmático. Nesse novo mundo político mais equilibrado e desejoso de estabilidade, de que a direita já faz parte em larga medida, que lugar haverá para os extremistas, os golpistas, os neofascistas que estão ainda por aí, pedindo golpe na porta dos quartéis, depois de primeiro de janeiro de 2023? Provavelmente ficará à margem, como força minoritária do sistema político, entredevorada por outras lideranças diante do declínio de Bolsonaro. Depois de sua derrota, esta seria a melhor notícia que a democracia brasileira poderia ter.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema.

O Meio é a solução.


Assine agora por R$15

Cancele a qualquer momento.

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: Que direita é essa?
Edição de Sábado: Apostando a própria vida
Edição de Sábado: Órfãos do feminicídio
Edição de Sábado: Fogo e cortinas de fumaça
Edição de Sábado: Cinco dias na Ucrânia

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)