A lógica populista
Um líder popular, populista e ainda na presidência está fazendo a peculiar escolha de delegar a figuras fisiológicas seu papel de liderança. Tudo jogo combinado, é verdade. Mas chega a ser surpreendente descrever o bolsonarismo assim a essa altura. Na prática, Jair Bolsonaro está calado. E o movimento que criou em torno de si, populista na essência e na linguagem, pode se esfacelar diante dessa desconexão voluntária.
Não que populismo seja a melhor maneira de definir o bolsonarismo ou qualquer face da extrema direita. Mas é inegável que essa lógica de ação política que é o populismo serve bem ao extremismo reacionário. É isso que o cientista político Miguel Lago esmiuça. Lago é coautor, com Thomás Zicman de Barros, do livro Do que falamos quando falamos de populismo, lançado em setembro. E com Heloisa Starling e Newton Bignotto de Linguagem da Destruição. E analisa aqui o conceito de populismo em si e suas variadas conotações; a diferença entre populismos de direita e esquerda — e, mais do que isso, as semelhanças; quem é o povo e quem é a elite em cada populismo; os recursos de linguagem usados por Bolsonaro para engajar seus seguidores; e as possibilidades de o bolsonarismo sobreviver sem Bolsonaro (spoiler: poucas). Confira os principais trechos da entrevista.
Pensando nesse isolamento atual de Bolsonaro, dá para se manter populista longe do povo ou ele está prestes a inventar uma nova modalidade de populismo?
Uma parte mais teórica do nosso livro discute o que é populismo. Outra, de ordem prática, analisa como o termo foi utilizado ao longo da história no Brasil, olhando para a imprensa, de 1930 para cá. Getúlio Vargas é a grande figura associada ao populismo no Brasil, mas até 1946 o termo praticamente não existe para se referir a atores políticos brasileiros. De 1946 a 1964, a imprensa usa o termo para designar Getúlio e Adhemar de Barros. Assis Chateaubriand tinha pavor de Getúlio e também não gostava do Adhemar. Então, a palavra ganhou um contorno pejorativo. Mas essas duas figuras incorporam isso como um elemento positivo de sua característica. A vitória de Getúlio em 1950 vem numa aliança com Adhemar que se chama Frente Populista. Daí, o termo passa a ser mais positivo do que negativo, inclusive na imprensa. A tal ponto de a UDN, que era provavelmente quem mais se beneficiava de um sentido depreciativo da palavra, se dar conta de que só ia ganhar as eleições com um projeto populista próprio. Eles se associam a Jânio Quadros. No regime militar, não se vê mais tanto esse termo nos jornais. Ele volta em 1982, com as eleições diretas para governador, quando Leonel Brizola se reergue no Rio. E ressurge de forma negativa. A expressão fica sobretudo associada ao Brizola ao longo de 20 anos, depois ao Garotinho. Lula só vai começar a ser considerado populista já como presidente, um pouco antes das eleições de 2006. E agora Bolsonaro também é chamado de populista, uma maneira de se tentar aproximar esses dois personagens tão diferentes com essa característica em comum.
Lula e Bolsonaro são de fato populistas?
É curioso que, ao longo da história do Brasil, populismo é sempre para designar o outro. E sempre de maneira pejorativa. Tanto a esquerda quanto a direita brasileiras usaram esse termo para designar seus adversários. Um exemplo: uma certa escola da esquerda mais marxista, paulista, ligada à USP, em plena ditadura militar, começa a usar a palavra para se referir a uma outra esquerda, nacionalista, mais getulista. Na direita, você vê também essa crítica ao populismo como sendo algo pouco sério, irracional. Tem um político equatoriano que definiu o populismo como aquilo que a elite usa para nomear tudo que ela não consegue entender. É uma boa definição. Se olharmos para as elites, tanto de direita quanto de esquerda, quando elas não compreendem a complexidade de um fenômeno de massa, e não gostam dele, elas chamam de populista. É o que está acontecendo para se referir ao novo movimento de extrema direita aqui e no mundo. E são movimentos populares, evidentemente. O termo tem múltiplos significados e geralmente é um instrumento usado na briga política mais do que qualquer outra coisa. Há várias definições possíveis e a de um cientista político anglo-saxão certamente vai ser diferente da de um argentino. Mas entre as características do populismo está, em primeiro lugar, o fato de que se parte de uma visão de política adversarial. A política é conflito, não consenso. E onde está localizado esse conflito? Nisso, também há bastante acordo. Você divide a sociedade entre elite e povo.
Como se faz essa separação?
Povo é tudo aquilo que não é elite, e vice-versa. Você divide a sociedade de maneira narrativa a partir desse binômio. Só que tudo pode ser elite, tudo pode ser povo. São significantes vazios. Então, quando comparamos Lula e Bolsonaro, a definição de elite e povo de cada um é bem diferente. A do Lula é mais clássica, parecida com a do Getúlio, na tradição latino-americana populista. Não é exatamente, mas é meio que pobres e ricos. No caso de Bolsonaro, a elite é a administrativa, intelectual, cultural. O povo são os cidadãos de bem. A maneira como, por exemplo, Bolsonaro apresenta os movimentos sociais… O movimento social aparece como se fosse aquela coisa super poderosa que domina a máquina estatal e as mentes e que é muito mais forte que o cidadão de bem, que é um latifundiário. A coisa doida do Bolsonaro é que ele consegue colocar o MST na elite e o latifundiário no povo. É uma construção para o público dele, e ele consegue fazer bem. O terceiro elemento do populismo é que existe uma dimensão transgressiva. Tem uma transgressão quase performática, como aquela do Jânio com o pão com mortadela. O populista está sempre transgredindo alguma figura de autoridade. Um líder populista não se comporta como um político tradicional. Ele fala de maneira um pouco mais grosseira ou diz certas coisas que não se suporia que um presidente deveria. Mas a importância está na transgressão institucional. E aí há uma divergência entre a literatura anglo-saxã e a latino-americana. Os anglo-saxãos acham que o populismo, ao ser transgressivo das instituições, está as destruindo. Eu acho que não é sempre o caso.
Por quê?
O populismo pode transgredir certas instituições culturais, fazê-las avançar. Se você olhar o governo Lula, do ponto de vista institucional, dificilmente vai conseguir argumentar com um anglo-saxão que se trata de um governo populista, porque se vê uma consolidação institucional, o fortalecimento dos instrumentos de controle. Acadêmicos americanos ouvindo de brasileiros que criticam o PT por ser pouco democrático não conseguem entender. “Como assim? Todas as coisas da democracia liberal avançaram com o PT.” E é verdade. Então, você poderia dizer que não tem nada de populista, porque não é transgressivo do ponto de vista institucional. Mas é. Porque teve uma série de instituições culturais que foram transgredidas pelo governo Lula. Por exemplo, com as cotas ou a expansão dos direitos trabalhistas para as empregadas domésticas. Assim como Getúlio constrói muitas instituições e destrói várias outras.
Lula e Bolsonaro terminaram quase empatados a eleição. Cada um mobilizou metade do eleitorado. Foi o confronto de dois populismos bem sucedidos?
Sim, os dois são populistas, na nossa avaliação. Mas são graus e tons diferentes de populismo. Não dá para comparar Lula e Bolsonaro pela régua do populismo, porque o populismo é uma lógica… Tem uma outra figura populista extraordinária que se chama Margaret Thatcher, que também não tem nada a ver com Bolsonaro nem com Lula. Tinha todo o ideário liberal, da racionalidade extrema, e no caso dela a elite era a administrativa inglesa, que ela estava tentando destruir, desmantelar sindicatos. Agora, não existe populismo sem capacidade de mobilização. O movimento populista é, em primeiro lugar, popular.
O país está dividido. Cada metade aderiu a uma proposta, ambas têm a lógica populista como algo absolutamente central. Mas elas são duas propostas radicalmente diferentes de país. Então, podemos definir o populismo como uma lógica de ação política, não como um conteúdo ideológico ou programático.
E como é que o povo, objetivamente, se encaixa nisso?
O povo não é um dado sociologicamente predefinido. Não é necessariamente a classe trabalhadora, não são os latifundiários do Bolsonaro. O povo é definido, em grande medida, pelo discurso. O populismo é uma ação discursiva que determina quem está dentro e quem está fora. Quem está com a gente e quem é o adversário. Um termo tão aberto é muito útil. Você coloca quem quiser dentro do povo.
Somando essa indefinição de identidade com o discurso adversarial, na era tecnológica estamos condenados ao populismo?
Ele nasceu bem analógico, mas essa pergunta é muito importante e difícil de responder. A arquitetura das redes sociais, onde se dá primordialmente a sociabilidade de grande parte das pessoas hoje, privilegia justamente conteúdos sensacionalistas e o conflito. O populismo casa muito bem com essa dinâmica. Na televisão, era diferente. Nos anos 1960, havia dois, três canais. O tom era muito mais neutro, havia uma tentativa de apaziguar ânimos ou apresentar mensagens para falar com todos e não só com segmentos específicos. Essa hiper segmentação de hoje contribui para que o discurso populista prospere e possa prevalecer. Bolsonaro é muito produto disso, mas Lula não. E nessas eleições ele ganhou de maneira quase tecnocrática. “Eu fui muito bom presidente, a vida de vocês era melhor do que é hoje. Eu entreguei mais do que ele.” É coisa de prestador de serviço. O segundo argumento foi o da democracia. Essa foi a tônica do discurso lulista. Ele não incorporou novos sujeitos políticos, não redefiniu o que ele entendia como povo e elite. Sua candidatura tem um fundo da estratégia de campanha de Emmanuel Macron contra a Marine Le Pen. Lula não foi eleito com discurso populista. Bolsonaro, sim.
Há menos preconceito com o populismo de direita do que com o de esquerda?
Acho que sim, de maneira geral. Afinal, crescemos desse lado do muro. É natural que haja um anticomunismo um pouco mais arraigado. E Bolsonaro brinca muito com isso, trouxe de volta o medo do comunismo que não tem nada a ver com Lula, em nenhum momento da sua história. Mas eu achava difícil que alguém deixasse de votar no Lula por causa do [Daniel] Ortega ou do [Nicolás] Maduro, sinceramente. Agora, vendo essa turma na rua, tenho pensado menos nisso, é verdade. Mas aqui vamos saindo um pouco do populismo. Não sei se populismo é o melhor termo para designar essa nova extrema direita. Dependendo de alguns autores, todo mundo é populista. Thatcher, Mussolini, Hitler… E tudo bem. A lógica populista está claramente presente nas ações de todos esses. Mas será que o que define melhor o Mussolini é que ele era um populista? Ou Mao Tsé Tung? Não acho que seja. Talvez a palavra que melhor defina Lula seja populista. Getúlio e Peron também. Será que essa é a melhor maneira de definir Bolsonaro? Ele é primordialmente populista? O movimento de extrema direita se alimenta muito da dinâmica das redes sociais e tem muito menos papas na língua para falar absurdos e expressar certas coisas que parcelas da população gostariam de expressar e se sentem intimidadas. Não tem nenhum populista de esquerda, nem os que são antissemitas, conseguindo prosperar tanto nisso. E isso tem apelo popular. Não é à toa que engaja.
Como a linguagem de Bolsonaro vai se adaptando a isso?
Tanto Trump quanto Bolsonaro não são grandes oradores, mas são muito bons em frases curtas. Eles têm uma rapidez boa pra internet, uma esperteza. A professora Heloisa Starling argumenta que Bolsonaro mobiliza por afetos tristes — o ressentimento, a raiva, o ódio, preconceitos. Isso pode ser muito poderoso. Ele tem três elementos de linguagem fundamentais. Primeiro, ele entende que o lugar onde habita e consegue mobilizar as pessoas é nas redes sociais. Privilegia esse espaço como sendo a sua principal plataforma, mais do que o governo. É ali que está grande parte das disputas políticas que Bolsonaro inventa. Não à toa está tão calado. Ele não sabe que sarna procurar agora para se coçar. Tem mais um mês e meio de governo, ele já não contestou a eleição na hora que tinha que contestar, perdeu esse timing. Mas normalmente vai criando essas disputas nas redes para manter sua audiência cativa. Ele usa o mundo real, o governo, a política quase como um estúdio para ter elementos e conteúdos para alimentar redes sociais e usar como alicerce de mobilização. Bolsonaro é um extraordinário ativista, trabalha muito bem todos os níveis de engajamento. Fideliza essa audiência e depois a isola de outros possíveis canais de comunicação. Fez isso com o lavajatismo, um processo baseado em duas premissas. Uma de que a imprensa está dizendo a verdade, porque estamos sabendo das notícias de corrupção pela imprensa. E a outra de que a Justiça funciona. O que Bolsonaro conseguiu fazer em seis anos? Que lavajatistas não acreditassem mais na imprensa nem na Justiça. Uma vez que ele conquista aquela audiência ele isola de outros canais, dizendo que tudo é mentira e a única verdade é a que vem dele e dos satélites dele. Isso não é pequeno.
Quais os outros dois elementos da linguagem de Bolsonaro?
O segundo é como ele fala pensando numa interpretação teológica que certos atos e discursos podem ter. Isso entra na sua relação complexa com o mundo neopentecostal. A resposta da gestão da pandemia, por exemplo. Nós — na visão deles, burgueses ateus que acreditamos na ciência — olhamos para as evidências e recorremos à máscara e às vacinas. Bolsonaro lutou contra elas para emitir sinais e alimentar um discurso escatológico, no sentido cristão de fim do mundo. Isso baseado no livro do Apocalipse, que é altamente complexo e de interpretação dupla. Nele, há um trechinho que fala que você não poderá circular pelo mundo sem usar a marca da besta. A máscara e a vacina foram a associadas à marca da besta. Então, ele traz elementos a decisões presidenciais pra alimentar um discurso escatológico cristão. E, por fim, a coisa mais universalizante e potente da linguagem de Bolsonaro — e isso ele entregou muito bem — é que ela se insere na nossa vida pessoal. Na microesfera do nosso cotidiano. O bolsonarismo se infiltra em todas as relações afetivas que temos, em todas as relações sociais. Por pior que seja nossa vida, as nossas condições materiais, existe sempre alguém sobre quem você pode exercer poder. Você pode ser um trabalhador extremamente precarizado, passou o dia inteiro num dos aplicativos, mas chega em casa e bate no seu filho. Desconta nele, que é mais frágil. O que Bolsonaro faz é falar para esse homem: “eu não vou melhorar a tua relação com o aplicativo, com o teu patrão, com o banco, não vou melhorar nada, mas eu vou deixar você bater no seu filho. Pode ter certeza que não vai ter conselho tutelar nenhum, ONG nenhuma para te impedir de você descontar e exercer o poder sobre o teu filho ou sobre a tua mulher”. A mesma coisa para as pessoas homofóbicas ou racistas. Essas micro interações em que você consegue se sentir por cima ou sentir dominação do outro, ainda que seja breve, Bolsonaro está liberando geral. Isso é muito acessível a todo mundo.
Mas Bolsonaro está recolhido. Então, voltando à primeira pergunta: existe populismo sem líder populista?
O Thomás, meu coautor no livro sobre populismo, fez sua tese de doutorado sobre o movimento gilets jaunes na França, dos coletes amarelos. E ele argumenta algo com que concordo: é possível ver um movimento populista sem líder. Os coletes amarelos são um excelente exemplo. Trata-se de movimento totalmente populista, é difícil de definir ideologicamente, e no entanto não havia uma liderança pré-estabelecida desse movimento e ninguém conseguiu se cacifar como a grande liderança. Nem os próprios políticos populistas da França — e lá há dois políticos populistas habilidosos, a Marine Le Pen e o Jean-Luc Mélenchon. Mas, no Brasil, o movimento é bolsonarista. Não foi um movimento que surgiu em 2013 como reação a uma política de governo. É um movimento baseado numa pessoa e numa liderança. Então, ele pode ter uma sobrevida, mas não acho que seja uma sobrevida óbvia sem essa liderança. Mesmo no silêncio do Bolsonaro esse movimento tem muita resiliência. E isso é assustador. Mas o bolsonarismo é bolsonarismo, não é outra coisa. Bolsonaro não é um porta-voz desse movimento. Ele é seu líder. Se Bolsonaro ficar sem falar com essas pessoas, o movimento se desarticula.