A derrota dos negacionistas eleitorais — nos EUA

Os eleitores americanos não são refratários à agenda reacionária trumpista, mas recusaram silenciosamente quem questiona frontalmente a democracia

Ontem à noite, Donald J. Trump subiu a um palco com dezenas de bandeiras americanas ao fundo e anunciou sua candidatura à presidência do país, em 2024. A expectativa, quando marcou o evento, era de que seu partido Republicano teria imposto uma pesada derrota aos democratas nas eleições de uma semana atrás. Não aconteceu. Os republicanos recuperaram a Câmara dos Deputados, mas por uma margem estreita. Os democratas continuaram no controle do Senado. E Trump, principalmente por seus ataques ao sistema eleitoral, é visto como o principal responsável pelo mau desempenho de seu grupo político.

A principal derrota do movimento antidemocrático, nos EUA, foi na eleição dos secretários de Estado. Este é um cargo eletivo em 35 dos 50 estados, e 27 deles foram disputados este ano. Por lá, não existe uma Justiça Eleitoral, são os responsáveis por esta pasta que organizam os pleitos. Em 2020, quando Donald Trump perdeu para Joe Biden e questionou o resultado acusando fraude, ele apontou o dedo para alguns lugares bastante específicos. Arizona e Nevada, no Oeste. Geórgia, no Sul. Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, no Meio-Oeste. São, todos, estados que por razões distintas se dividem uniformemente entre os dois partidos, Republicano e Democrata, e nas corridas presidenciais podem ir tanto para um lado quanto para o outro. Da última vez, todos elegeram Joe Biden. Agora, nesta eleição, Arizona, Nevada, Michigan e Minnesota escolheram novos secretários de Estado. Trump perdeu as quatro brigas. Na Pensilvânia, é o governador quem escolhe o secretário de Estado. O candidato trumpista ao governo também perdeu. Não foi só. Havia mais dois candidatos que fizeram do negacionismo eleitoral seu principal mote de campanha brigando por secretarias de Estado no país. Um perdeu, no Novo México. A única vitória de Trump se deu em Indiana, onde os republicanos costumam ganhar.

O jogo pós-Bolsonaro ainda não está desenhado, no Brasil. Mas, depois das eleições de meio de mandato que ocorreram na terça-feira, 8 de novembro, nos Estados Unidos, ele começa a ficar claro por lá. E a direita está rachada.

A divisão não se dá entre moderados e radicais. Mas se dá entre democráticos e antidemocráticos. Enquanto os republicanos que apostaram no ataque ao sistema eleitoral fracassaram nas urnas de forma generalizada, o mesmo não pode ser dito a respeito daqueles que abraçaram valores rigidamente conservadores, com pouco espaço de tolerância. Dois nomes que saíram fortes destas eleições dão pistas de que ideias são essas que defendem. Um é o governador reeleito da Flórida, Ron DeSantis. Outro é o senador eleito de Ohio, J. D. Vance.

Vance, um investidor de 38 anos, veio de um ambiente paupérrimo do Meio-Oeste, com sua dose habitual de violência familiar, alcoolismo e desestruturação. Aí se formou advogado por Yale, tomou o rumo do Vale do Silício e fez fortuna jovem. É um excelente escritor. Seu Hillbily Elegy, um livro de memórias que depois se tornou filme da Netflix com Glenn Close, desenha a visão que tem do mundo, assim como seus valores.

Em sua versão, o governo americano é uma oligarquia à qual só um grupo pequeno de pessoas, formadas nas mesmas poucas universidades de elite, tem acesso. Também a grande imprensa, a elite cultural e o comando das principais empresas é formado por gente que vem do mesmo lugar. Foram todos treinados, por essas escolas, para pensar de forma semelhante. A este conjunto de pessoas que “ditam a cultura do país” ele chamou de “a Catedral”. Não é uma teoria conspiratória, Vance não descreve este coletivo como uma instituição, um grupo, não pensa nele como uma estrutura articulada. É, apenas, “a elite”. Uma oligarquia impenetrável que age pela defesa de seus interesses sem plena consciência de que pensa uniformemente. A ideologia dessa elite é liberal, progressista e, portanto, antagônica com os valores do verdadeiro povo americano. Os programas sociais defendidos por esta oligarquia viciam a população mais pobre, criam uma dependência e, a partir dela, letargia. Deixam as pessoas escravas do Estado. Tiram a gana de crescer, lutar. Neutralizam o sonho americano.

Vance se vê como um dos poucos a furar este bloqueio, crescendo por conta própria no ideal do self-made man de outrora. No Vale do Silício, ele criou uma relação profunda com Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal. Thiel é também a principal referência libertária no mundo digital — uma visão que aposta no Estado mínimo, liberdade máxima, um mundo de cada um por si. Thiel tem, entre os amigos mais próximos, Elon Musk, que acaba de adquirir o Twitter.

Durante a campanha, Vance se aproximou de Trump. Mas foi jogo em busca de votos num cenário particularmente disputado. A sua foi uma eleição difícil. Até a campanha, construiu sua carreira, na direita, explorando o mesmo desprezo pelo mainstream americano, mas mantendo considerável distância do ex-presidente.

Enquanto Vance oferece uma versão intelectualizada do discurso anti-sistema, o governador da Flórida, Ron DeSantis, de 44 anos, traz um populismo similar ao de Trump. Em setembro, pôs 48 imigrantes latino-americanos dentro de um avião e os mandou para Martha’s Vineyard, uma ilha no Massachusetts onde gente muito rica tem mansões de veraneio. Era um jeito de dizer ‘vocês da elite que defendem imigrantes, que fiquem com eles’. No início do ano, aprovou uma lei que proíbe a professores do ensino público que toquem em temas LGBTQIA+ com alunos de até o terceiro ano do Fundamental. Mesmo para os mais velhos, o espaço está aberto para que pais processem escolas caso considerem que questões relacionadas a sexualidade estejam sendo tratadas de forma inadequada. Não à toa, a nova regra foi apelidada de ‘Lei Não Diga Gay’.

DeSantis é um ultraconservador em todos os temas que geram debate nos EUA — imigração, sexualidade, questões de raça. Em 2018, chegou ao governo numa vitória apertada. Após quatro anos, desta vez impôs uma distância de quase vinte pontos percentuais contra seu adversário democrata.

Embora organizem seus discursos de formas distintas, tanto Vance como DeSantis representam o mesmo pacote de ideias. A de que as elites intelectuais representam um processo de decadência americana.

Que tanto o discurso liberal quanto o de esquerda, ao ampliar acesso a direitos civis, corrompem o ideal americano. Ambos exploram o mesmo ressentimento, as mesmas ansiedades com um mundo em transformação, que Donald Trump já explorava.

O que hesitam fazer é questionar frontalmente o processo democrático. Não são negacionistas eleitorais. Esta é uma transmutação de um processo que vem sendo documentado faz pouco mais de dez anos no mundo, o de decadência democrática. É como se, na cultura política dos EUA, Trump tenha cruzado uma linha que silenciosamente a sociedade recusou. Não quer dizer que todo seu discurso reacionário tenha sido igualmente questionado. Não foi.

No Brasil, os atores políticos não sabem como se portar perante a derrota de Jair Bolsonaro. Com quase 58 milhões de votos, ele ainda representa uma clara força eleitoral. Valdemar Costa Neto, o presidente do seu Partido Liberal, chegou a ensaiar pedir a anulação das eleições perante o TSE. Aí voltou atrás. As Forças Armadas soltam notas confusas, reconhecendo que não foram encontrados problemas nas urnas, ao mesmo tempo elogiando protestos antidemocráticos.

Nos EUA, a direita dura pode ter encontrado, em Ron DeSantis, um candidato à presidência para substituir Trump. Os mesmos valores, sem as teorias conspiratórias, sem o ataque às urnas. Funcionará?

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