O primado do Legislativo

Vença quem vencer nesse duelo de vida e morte para a república brasileira, o centro nervoso do sistema político passa a ser o Congresso e sua vocação conservadora e fisiológica

Faltando menos de três semanas para o segundo turno, impossível não imaginar cenários para o desfecho eleitoral. Os índices de intenção de votos em Lula, como vem acontecendo há uma ano, oscilam em torno de 50% dos votos válidos. Bolsonaro vem atrás, a uma distância entre 5 e 10 pontos. Salvo a ocorrência de um fator radicalmente novo, as urnas sacramentarão a vitória de Lula no fim deste mês de outubro. Mas, tratando-se de Bolsonaro e sua entourage, nunca se sabe.

A incerteza abrange o período anterior e posterior ao pleito. Se perceber a derrota iminente, pode-se esperar de tudo nos dias imediatamente anteriores à eleição, inclusive atentados, verdadeiros ou forjados, no interesse de produzir tumulto, medo e abstenção. No dia das eleições, Bolsonaro poderá provocar incidentes nas seções eleitorais, que forneçam elementos para a narrativa de que o pleito foi irregular. Na sequência, virá a contestação aos resultados, os ataques ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao ministro Alexandre de Moraes e a incitação à balbúrdia que simulará a “insurreição popular” contra a pretensa fraude eleitoral. Não por acaso, Bolsonaro proibiu a divulgação das Forças Armadas negando a ocorrência de fraude no primeiro turno, e já convoca seus eleitores para permanecerem junto às seções eleitorais, com o objetivo evidente de tumultuar a eleição.

A quietude de Bolsonaro nas últimas semanas sobre o assunto não deve induzir o leitor ou a leitora a subestimar a arruaça que o presidente prepara e que se tornará mais verossímil conforme vá sentindo o cheiro da derrota. A arruaça serve para muita coisa. Em primeiro lugar, para atender à narrativa de que, encarnação da vontade do povo brasileiro, Bolsonaro só pode perder uma eleição — qualquer eleição — caso ela seja fraudada. Em segundo lugar, a arruaça servirá para dar um choque elétrico de indignação em sua base de radicais, para que não esmoreça e mostre “a força do povo” ao seu lado, intimidando os adversários políticos e institucionais. A intimidação servirá também para que os “negociadores” de plantão já encontrem os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do TSE mais predispostos a lhe fazer concessões para deixar o poder, o que provavelmente se negará a fazer num primeiro momento. Já há vários “negociadores” ou “árbitros” em potencial esperando a confusão para entrar em campo e negociar a impunidade que Bolsonaro deseja, como Augusto Aras, André Mendonça, Dias Toffoli, Michel Temer ou mesmo Gilmar Mendes.

O mais vitaminado de todos esses árbitros potenciais para “negociar” a descida de Bolsonaro do poder, porém, é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que é verdadeiro vencedor das eleições de 2022.

Lira espera que a crise decorrente do impasse lhe caia no colo a fim de se cacifar como o grande árbitro que convencerá Bolsonaro a descer do poder. Seja através de uma anistia ou um auto-indulto, aprovado a toque de caixa no Congresso e que o STF se comprometa a não invalidar. Colhendo os louros de sua situação de árbitro da crise forjada por Bolsonaro, Lira se torna o “homem forte” da situação. Nesse caso, ele se reelege presidente da Câmara dos Deputados com o apoio de quem estiver no Planalto e dará um xeque-mate em Lula antes mesmo de sua posse. E eleva enormemente os custos de uma anulação do orçamento secreto pelo Supremo Tribunal.

Desde sua ascensão à presidência da Câmara, Lira soube, na base da vontade e da truculência, se fortalecer de forma a servir de plataforma para um novo modelo de governabilidade, de vocação conservadora, caracterizada pela centralidade da Câmara dos Deputados e, nela, do Centrão, ou seja, do conjunto de partidos de direita e de centro-direita. Aproveitou a luta entre o Judiciário e o Executivo para obter vantagens dos dois lados, tirando o dinheiro de um e ganhando boa vontade com seus processos judiciais de outro. Lira deseja materializar formalmente o novo arranjo, substituindo o arcaico presidencialismo de coalizão, de um lado, e o judiciarismo, de outro, aprovando a mudança do sistema de governo de presidencialista para semipresidencial.

O semipresidencialismo conservador e corrompido será uma realidade, formalizado ou não.

Em um momento histórico cuja hegemonia segue pertencendo à direita, ou à centro-direita, o semipresidencialismo oficial ou oficioso há de ser a fórmula que garantirá na prática a continuidade de uma política conservadora, ainda que os reacionários estejam fora do poder. Esvaziado da força que lhe permitia fazer maiorias, graças ao orçamento secreto, uma eventual agenda de esquerda se inviabilizará para tudo além daquilo que o próprio governo poderá fazer no âmbito exclusivo do Poder Executivo, ou seja, na parte que lhe cabe da administração federal. Pode-se imaginar que, assim como Bolsonaro pouco conseguiu adiantar sua agenda fascistizante no Congresso, para além de sua eventual omissão legislativa, Lula também não conseguirá, caso eleito, fazer nada progressista que o Centrão não queira.

Não deixa de ser irônico que, vença quem vencer nesse duelo de vida e morte para a república brasileira, pouco poderá mudar na dinâmica entre os poderes. Com o Executivo esvaziado em sua capacidade de barganha, de um lado, e o Judiciário permanentemente intimidado pelo Congresso, de outro, o centro nervoso do sistema político passará a ser o Legislativo. Que, com sua capacidade de bloquear o que não lhe convém, gerará uma inércia que, por si mesma, corresponderá à situação de hegemonia conservadora vigente hoje no país.

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