Como Bolsonaro pode destruir a democracia

Tanto Chávez quanto Orbán começaram o caminho de desmonte da democracia convencendo parte da população de que os limites a seus poderes eram antidemocráticos. Não precisou muito — a Chávez bastou um terço do eleitorado. É o que Bolsonaro tem

O primeiro exemplo de ruínas no livro Como as Democracias Morrem, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Zimblatt, é o da Venezuela. Como nosso problema aqui no Brasil é com um populista autoritário à direita do espectro e, na Europa ou nos EUA, a ameaça à democracia também vem da direita, com frequência esquecemos de Hugo Chávez. Chávez, porém, é talvez o melhor exemplo para ilustrar como o presidente Jair Bolsonaro poderia ameaçar o regime aqui no Brasil. Estamos a menos de duas semanas do primeiro turno de uma eleição que pode ser decidida antes do segundo e tudo indica que o presidente não vai se reeleger. Ainda assim, persiste para muitos a dúvida: ele seria mesmo uma ameaça à democracia caso chegasse ao segundo mandato? Um passeio pelos exemplos de Venezuela e Hungria ajudam a iluminar.

Quando Chávez foi eleito presidente da República, em 1998, a Venezuela era regida por uma Constituição que estava próxima de completar 40 anos. Como a nossa. Era, na América do Sul, um dos países com mais longevo histórico democrático. Governos corruptos, por certo, em alguns casos abertamente oligárquicos, mas nada próximo do pesadelo pelo qual nós, Argentina, Uruguai, Paraguai ou Chile havíamos passado nas mãos dos generais ditadores. Nas décadas de 1960 e 70, até mesmo meados dos anos 80, o país havia sido também imensamente beneficiado pelo preço do petróleo no mercado internacional. Mas, àquela altura, esse tempo já havia passado, uma crise econômica se estabeleceu e os níveis de pobreza cresciam. A maioria da população queria mudança — alguma mudança.

A Constituição venezuelana cuidava de dar garantias democráticas, entre elas impondo que o poder deveria mudar de mãos em intervalos regulares. A reeleição do presidente era permitida, mas um segundo mandato só poderia vir após um intervalo de dez anos do fim do primeiro. Emendas à Carta só caso aprovadas pelo Congresso, por iniciativa do Congresso, sem qualquer interferência do Poder Executivo — um sistema ainda mais rigoroso que o brasileiro. Aqui o presidente pode tomar a iniciativa de propor uma emenda.

Mas Chávez se elegeu defendendo uma tese, a de que as origens dos males no país estavam na Constituição e que só um novo texto poderia dar conta de resolver o problema. Era popular e plantou a semente.

Em finais do século 20, a percepção ainda era de que o mundo vivia um período de expansão democrática em rápida velocidade e todos os estudos que temos hoje sobre recessão democrática ainda não existiam. Claro. Hugo Chávez, um bocado intuitivamente, inventou o método de desconstruir democracias por dentro mantendo o discurso de que estava sendo inteiramente democrático. Mas há alguns princípios essenciais numa Democracia Liberal. Um deles, talvez o mais básico, é de que o poder não deve ser jamais concentrado. É daí que vem a ideia da separação em Executivo, Legislativo e Judiciário, um constantemente vigiando os desvios do outro.

Os ataques que Bolsonaro desfere contra o Supremo, contra o sistema eleitoral, os que desferia contra o Congresso quando o presidente da Câmara impunha limites a seus avanços, seguem o mesmo roteiro dos ataques que Chávez fazia à Constituição da Venezuela. É um lento minar da confiança em tudo que impõe limites ao poder do presidente.

É a isto que Chávez dedicou seus primeiros anos na presidência. A atacar como antidemocrático, contra o povo, tudo o que impunha limites ao tipo de poder que buscava.

Os políticos tradicionais venezuelanos criam que, apesar de toda a retórica violenta, apesar do carisma e de sua imensa popularidade, o presidente não conseguiria ir longe. Afinal, ele não tinha poder de mexer no texto constitucional. Tinha Legislativo e Judiciário para defender o regime. Chávez, no entanto, apresentou à sociedade uma tese: a de que um referendo popular poderia, sim, convocar uma nova Assembleia Constituinte. Mais de um grupo foi à Suprema Corte questionar a ideia, que simplesmente não estava prevista na Carta. Mas, sob pressão e perante a imensa popularidade do governo, os juízes optaram por uma saída conciliatória. O referendo poderia acontecer, mas a Assembleia poderia redigir nova Constituição sem, no entanto, mexer nos princípios essenciais da Democracia.

O referendo foi feito e boa parte dos venezuelanos escolheram não ir às urnas. A Assembleia foi aprovada com a participação de 38% do eleitorado. E como o Congresso se absteve de participar do processo, Chávez redigiu as regras pelas quais os constituintes seriam escolhidos. Seu grupo político teve 60% dos votos e ocupou 90% das cadeiras. Àquela altura, os limites impostos pela Corte foram sumariamente ignorados.

Se todo o processo soa como manipulação grosseira do sistema democrático numa república das bananas, não custa dois alertas. O primeiro é de que tudo ocorreu em dois anos de muito barulho durante os quais, parecia, tudo era ruído e pouco era ação efetiva. Assim como transcorreram os quatros anos do governo Jair Bolsonaro. Muito ruído, pouca ação, mas sobrou uma base popular em que mais de um terço da população parece convencida de que o problema do Brasil está nos limites ao poder que a democracia impõe ao presidente. É, como Hugo Chávez fez, um jogo de palavras.

Ao limitar o poder de quem foi eleito presidente, a democracia é, ela própria, antidemocrática. A Constituição é, ela própria, inconstitucional.

O segundo alerta é de que esta mudança das regras de como se elege parlamentares, manipulando tudo de tal forma que maiorias tênues terminem com sua representatividade ampliada, está também em curso nos Estados Unidos faz vinte anos. Lá o processo ocorre no desenho dos distritos que elegem cada deputado federal. Os lugares em que há concentração de eleitores do Partido Democrata são divididos em mais de um distrito, de forma a diminuir sua influência. As regiões mais republicanas são concentradas em distritos únicos. E a maioria dos eleitores não compreende como o problema ocorre. A decadência interna das regras do jogo não é só de países com menor tradição democrática.

Na Venezuela, a Assembleia Constituinte tinha o apoio do presidente e da parcela mais ruidosa da população. Por ser autorizada pelo voto, Chávez argumentou, era mais legítima que o Congresso e a Suprema Corte. A maneira de ruir democracias por dentro estava sendo inventada ali, em Caracas, na virada do século.

Viktor Orbán havia sido eleito premiê húngaro no mesmo ano em que Chávez, mas fracassou. Não há registro de que ele, um político vindo da direita radical, tenha se inspirado no venezuelano mas, quando voltou ao poder em 2010, seguiu a mesma cartilha.

Na Venezuela, o problema era declínio econômico e sofrimento crescente das camadas mais pobres da sociedade. Na Hungria, o que Orbán explorou foi o receio com a União Europeia e com o avanço dos imigrantes vindos principalmente da Turquia e Síria. O preconceito racial é uma poderosa arma política no Leste Europeu faz séculos.

No poder, Orbán utilizou a supermaioria conquistada no Parlamento para promover, ora, uma nova Constituição. Como na Venezuela, ela mudou as regras de estrutura da Corte Constitucional concedendo, ao primeiro-ministro, em essência poder sobre os outros poderes. Rompendo a ideia de separação entre os poderes.

Com o passar do tempo, em ambos os países a primeira fase do processo se estabeleceu. É a de mudar a configuração legal do regime ampliando o espaço de ação do chefe eleito do Executivo. A partir daí, presidente e premiê puderam mexer mais nas regras eleitorais e partidárias, limitando as possibilidades da oposição democrática. Assim como mexem na capacidade de circulação da imprensa livre, que atacam sistematicamente e com brutalidade. Na Venezuela e na Hungria, depois de tempo o suficiente no poder, concessões foram cassadas, houve interferência em empréstimos, empresários foram convocados a sufocar financeiramente os grupos de comunicação.

Em seu primeiro mandato, Bolsonaro preparou o terreno. Ele não tem maioria — mas tem um terço da sociedade, e contando com a apatia de outro naco da população e o desencontro da oposição, um terço basta.

Jair Messias Bolsonaro é uma ameaça real à democracia brasileira. Os americanos derrotaram Donald Trump. É preciso derrota-lo.

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