A arruaça como meio de barganha pós-eleitoral

Bolsonaro usa a ameaça de golpe e sua militância armada para negociar com Congresso e Judiciário algum tipo de anistia que lhe permita salvaguardar seus direitos políticos sem ir para a cadeia

Jair Bolsonaro é um homem que sempre fez da espetacularização do ódio à democracia o “business” que lhe permitiu enriquecer a si e sua família. Ao longo de sua carreira, o atual presidente desenvolveu diversas técnicas para assegurar impunidade por seus crimes contra a democracia: transformar a imunidade parlamentar em meio de garantir sua “liberdade de expressão”; fazer amigos nos sistemas de segurança pública e privada, incluindo do submundo da máfia; obter a simpatia das classes armadas, na qualidade de despachante de seus interesses corporativos; intimidar publicamente seus críticos, incentivando o exercício da violência para contestar o sistema legal.

No governo, Bolsonaro empregou os mesmos mecanismos, multiplicados por mil graças aos imensos recursos do Estado, para implantar uma cultura política autoritária no Brasil. Na ausência de pessoal seu extraído de partidos regulares, aliciou servidores civis e militares, mas também gente de fora do quadro, absolutamente despreparados e conhecidos quase sempre por sua mediocridade, incapacidade ou venalidade. A única condição exigida era a fidelidade cega, não às normas e valores da Constituição, mas à pessoa e aos familiares do presidente. Foram assim preenchidas vagas em postos de chefia — Procuradoria-Geral da República, Supremo Tribunal Federal, ministérios, secretarias de Estado —, com um pessoal que jamais teria sonhado ocupá-las, com a promessa de obedecer ao presidente e não à lei, favorecendo seus interesses e de seus amigos contra os princípios republicanos.

Bolsonaro sempre se elegeu com a bandeira de garantir a impunidade de todos os que o apoiam, desde políticos corruptos, milicianos e ogro-empresários, passando por policiais assassinos, desmatadores e motoristas infratores. Como um chefe de máfia, oferece “proteção” contra as punições estabelecidas pela Constituição para os infratores das leis da República. O apoio recebido dos políticos do Centrão cresceu quando o presidente lhes prometeu estender, especialmente os mais encrencados, a blindagem montada para proteger a si e sua família no Ministério Público, no Coaf e na Polícia Federal. O mesmo com os empresários que o apoiam e financiam seu golpismo. Diante da reação do Judiciário, Bolsonaro explorou o corporativismo da classe empresarial assustada em seus privilégios, prometendo-lhe no eventual segundo mandato a mesma mafiosa “proteção”. Atacar a sentinela última do Estado de direito, o Supremo Tribunal, se tornou música para todos os desejosos de restaurar privilégios perdidos ou ameaçados pela política progressista da Nova República.

A manifestação pública do desrespeito às instituições republicanas e democráticas, a tentativa de escapar à responsabilização pelos crimes, bem como a venda de “proteção” a quem se dispuser a apoiá-lo, são os mecanismos primordiais do jeito bolsonarista de governar.

Nesse quadro, o “golpismo” desempenha papel central. Para além do desejo do mando, ou do projeto reacionário de recuar três séculos em poucos, é a necessidade contínua de fugir da Justiça que leva a Bolsonaro a ter de permanecer no poder. Esse pânico da responsabilização lhe redobra o “golpismo” como técnica de intimidação de quem pretende puni-lo. A simulação da adesão inconteste das polícias militares e das Forças Armadas, reduzidas publicamente por ele à posição de seus míseros janízaros, estimula a adesão ao bolsonarismo de todos aqueles que querem ser “protegidos” da Justiça. Ao mesmo tempo, ele radicaliza seus eleitores pela torrente incessante de mentiras veiculadas pelas redes sociais e incentiva seu armamento por decretos ilegais. Cria-se um círculo vicioso no qual a multiplicação dos crimes os banalizam e fazem crescer o custo de sua repressão. O golpismo serve tanto para escapar da punição por praticar esse crime, seja por parte de um impeachment pelo Congresso Nacional, antes da aliança com o Centrão, seja por parte do Supremo Tribunal, seja do Tribunal Superior Eleitoral.

No contexto eleitoral, porém, no qual depende da vitória para continuar impune, a ameaça do golpe pelo não-reconhecimento de sua eventual derrota assume uma função nova: a de servir de meio para barganhar sua impunidade no cenário pós-eleitoral.

Não se trata apenas de perpetuar, como Donald Trump, a ficção da fraude, do povo traído pelo sistema. Serve para, em breve, barganhar junto ao Congresso e Judiciário algum tipo de anistia, que lhe permita sair do poder negando a derrota e salvaguardar seus direitos políticos sem ir para a cadeia. Ele poderia assim preservar o capital político adquirido depois de quatro anos predando o Estado, e seu direito de continuar a tocar o seu “modelo de negócios” fora do poder. É o que explica sua insistência em atacar as instituições, contra o desejo dos marqueteiros para quem o golpismo e a exaltação da violência tiram votos do presidente. A maior parte do eleitorado está cansado depois de dez anos ininterruptos de ambiente conturbado. Ocorre que Bolsonaro não pode abrir mão do discurso de guerra cultural e de intimidação, baseado na difusão continuada de mentiras que gerem medo e ódio. Do contrário, desmobiliza os radicais com quem espera contar para sua arruaça pós-eleitoral.

A criação de um ambiente insuportável e caótico de desconfiança e conturbação de gente armada tem por fim obrigar políticos e juízes de todos os matizes a encontrarem uma saída honrosa para ele e sua trupe. Quando um mafioso vulgar como Bolsonaro promete “proteção” a todos os setores que o apoiarem e os incentiva a cometer crimes, os corrompe para transformá-los todos — sonegadores, assassinos, racistas, corruptos — em seus cúmplices no propósito criminoso de assassinar a República para sair impune. O pretexto para o golpe da arruaça é tipicamente fascista: passa por se fazer de vítima da suposta fraude eleitoral para, em nome da “legítima defesa” do povo agredido em sua soberania, atacar as instituições da República a ameaça-las no limite da guerra civil. Simulação de força e veiculação do medo para mobilizar os radicais e intimidar os democratas será a peça fundamental para que Bolsonaro consuma seu crime supremo – crime de assassinato da República, que bem poderia ser qualificado como republicídio.

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