Um governo sem corrupção

Uma parcela de bolsonaristas que não reconhecem a corrupção no governo é hipócrita. Mas a resposta mais complexa está no fato de que se criou uma identidade à direita em que corrupção simplesmente não pode ser admitida

Para o brasileiro que ainda vê com incredulidade um homem como Jair Bolsonaro na presidência, parte desta campanha eleitoral transcorre numa zona de incompreensível dissonância cognitiva. No primeiro debate entre os candidatos ao Planalto, no domingo, Bolsonaro chamou seu principal adversário de ex-presidiário. Deixou Luiz Inácio Lula da Silva na defensiva ao apontar a corrupção em seu governo. E Lula se encolheu na defensiva. Enquanto isso, nas manchetes do início desta semana, estava lá a constatação de que a família Bolsonaro adquiriu metade de seus 107 imóveis pagando ao menos parcialmente com dinheiro vivo. No contrapasso, a Polícia Federal descobriu um agente da Agência Brasileira de Inteligência interferindo em um inquérito que envolvia Jair Renan Bolsonaro, o filho Zero Quatro. Nem Lula nega mais que houve corrupção de grande porte em seus governos. Mas como pode Bolsonaro, a esta altura, não ser visto também como corrupto? A pergunta não é um detalhe. Ela é a chave para compreender como se comportam os eleitores do presidente.

Afinal, para parte considerável dos eleitores, Bolsonaro não é corrupto enquanto Lula, sim, o é. Quem passeia pelo interior paulista, pelo Centro-Oeste, pelos recantos do país em que o bolsonarismo é mais forte, com frequência ouve alguma variação da mesma frase — Bolsonaro pode ser meio maluquinho, mas seu governo não foi corrupto. O ‘maluquinho’, num diminutivo cordial, é de propósito. A afirmação é repetida pelo grande empresário do agro e pelo motorista de Uber em Cuiabá. Com convicção. É espalhada pelo Zap por cada canto do país. “Meu governo não é corrupto” faz parte recorrente do discurso do candidato-presidente. Das rachadinhas do tempo em que os políticos da família iam da vereança carioca à Câmara dos Deputados, passando pela Assembleia Legislativa do Rio, à tentativa de superfaturamento de vacinas questionáveis em meio a uma pandemia mortal, incluindo a compra de mansões e, claro, o Queiroz, as marcas de corrupção não são poucas.

Dissonância cognitiva se dá quando duas estruturas mentais estão em evidente contradição. A pessoa diz acreditar numa coisa mas se comporta de forma oposta. Defende um pacote de valores mas, emocionalmente, reage positivamente a outros. Apenas desinformação não explica que os eleitores do presidente considerem que o grande problema de Lula é ser corrupto e que Bolsonaro não o seja. Se o fenômeno ocorresse apenas com pessoas que não leem jornais, não frequentam simpósios, mal tiveram educação, mas não é o caso. A defesa de que Bolsonaro não é corrupto é feita por brasileiros de todas as classes, com todos os níveis de instrução. Hipocrisia é a resposta simples. Sabem perfeitamente que corrupto o governo é, mas fingem na cara dura desconhecê-lo. Mas só hipocrisia não explica. São pessoas que, muitas vezes, dobram a aposta mesmo perante familiares estupefatos, amigos que se afastam, ou, em alguns casos extremos, até batidas da Polícia Federal à porta do escritório.

A pista pode estar noutro canto. Identidade.

Francis Fukuyama, o muitas vezes controverso e quase sempre original cientista político de Stanford, provavelmente fez a melhor análise de como identidade e política se conectam no mundo contemporâneo. Com muita frequência ligamos a ideia de política identitária à esquerda, pensando em movimentos populares como os da defesa dos direitos de negros, mulheres ou LGBTQIA+. Ao fazê-lo, não percebemos que a extrema-direita de hoje é, também, no talo identitária.

Fukuyama distingue três tipos de populismo. O populismo econômico — aquele de líderes que promovem políticas econômicas que criam, no curto prazo, a ilusão de melhora, cavando um buraco fundo a longo prazo. Hugo Chávez, na Venezuela, o fez. Há o populismo antisistêmico. O líder carismático se diz parte do povo e contra uma elite. Juan Perón, na Argentina, era assim. E há um terceiro tipo de populismo — o mais perigoso. O líder se diz parte do povo, representante do povo, mas por ‘povo’ ele não quer dizer todo o povo. Seu critério pode ser étnico. Os alemães são os arianos, mas não os judeus. O critério pode ser, também, mais difuso. Mas este é, fundamentalmente, um populismo identitário.

Jair Bolsonaro não é um populista econômico. Ele é um populista antisistêmico — e é, também, um populista identitário. Seu povo, seu brasileiro ideal, é só aquele que compartilha exatamente de seus valores.

Mailson Cabral de Souza, do Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, e Nadia Pereira de Azevedo, professora de Ciências da Linguagem na Universidade Católica de Pernambuco, promoveram juntos um estudo sobre os discursos da polarização política brasileira que dão uma pista a respeito de que identidade é esta que o movimento bolsonarista capturou. A origem está, evidentemente, nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Ali, os brasileiros dividiram-se em dois times que se definiam por discursos padronizados.

A origem dos discursos que distanciaram conservadores e progressistas é anterior às manifestações contra Dilma. De um lado o argumento punitivista, por aumento de tempo na cadeia, diminuição da maioridade penal, a idealização de um casamento tradicional com homem no comando, mulher em casa, valores religiosos nas escolas. Do outro lado, a defesa do garantismo, liberdade sexual da mulher, crítica à violência policial, abertura da praça pública ao afeto LGBTQIA+.

Calhou de a crise econômica do governo Dilma vir acompanhada da explosão de denúncias da Lava Jato. Isto trouxe, para o campo conservador, a bandeira anticorrupção. As ideias se encaixaram. Ser punitivista, ser anticorrupção. Assim se constrói imaginário.

Naquele momento, à esquerda, um processo em oposição se formava. Sem ter como negar a corrupção, formou-se um discurso que abria espaço para a tolerância da corrupção. Os desvios fazem parte do sistema, não importa quem esteja no poder. Esta construção permitiu a interpretação de que aqueles que hoje querem punir corruptos são, em verdade, pessoas que desejam, isso sim, tirar a esquerda do poder e bloquear a agenda progressista.

O processo da política identitária inverte a lógica do ideal democrático. Numa república ideal, os problemas são identificados, analisados, hipóteses são construídas para sua solução. Mas, aqui, é o contrário. O discurso nasce para justificar uma posição política já previamente tomada. E a posição política, assim como os discursos que a sustentam, transformam-se em autoimagem. Em identidade. Na explicação que cada pessoa dá a respeito de si mesma para dizer “eu sou uma boa pessoa, defendo o bem”.

O que torna o populismo identitário particularmente poderoso é que a lealdade ao líder nasce de uma concepção de identidade pessoal. Ser anticorrupção, ser pró-religião, ser pela família tradicional fundiram-se num só ideal. Em 2016, era um ideal sem líder. O que Jair Bolsonaro conseguiu construir foi emaranhar sua imagem ao imaginário cultural que nascia. Emaranhar é melhor do que conectar — um emaranhado é incrivelmente mais difícil de desarticular do que uma mera conexão.

Reconhecer a corrupção de Bolsonaro, portanto, não é o mesmo que reconhecer uma avaliação errada. É, para muitos eleitores, uma traição da própria identidade. Da própria autoimagem.

Reconhecer a corrupção de Bolsonaro é reconhecer-se a si mesmo como corrupto. A mentira não pode ser enxergada senão ao custo da perda que uma pessoa tem da imagem de si mesma.

No seu sentido mais básico, a democracia liberal não vive sem identidade. Identidade, afinal, se refere à noção de valor de cada indivíduo. Quando uma mulher é percebida apenas por seus atributos sexuais e enfrenta a sociedade para ser vista de forma mais ampla e profunda, este é um exercício de afirmação da identidade. Exatamente o tipo de exercício que democracias liberais incentivam cada cidadão a fazer.

Ocorre que a ampliação de direitos para mais grupos e a incorporação na sociedade de mais possibilidades de ser humano em posição de igualdade é percebida, para muitos, como perda de status. Num cenário de crise econômica, empobrecimento e desaparecimento de profissões, a perda de status para muitos homens é duplamente sentida. É respondida com uma reafirmação, ora, identitária. O homem provedor, chefe de família.

Esta, aliás, era uma frase na propaganda eleitoral gratuita de Jair Bolsonaro na terça-feira, 30 de agosto. “Um homem provedor desde jovem.”

É verdade que, para muitos, a estrutura da sociedade tira oportunidades. É a queixa, justa, dos movimentos que costumamos chamar de identitários — negros, mulheres, LGBTQIA+, indígenas. Porém, lembra Fukuyama, isso também é verdade para boa parte da base eleitoral dos movimentos de extrema-direita. Homens, mesmo que às vezes não-brancos, com baixo nível educacional e num mundo cada vez mais adverso. E esses frequentemente não são incluídos nas políticas de ação afirmativa.

Chamar bolsonaristas que não reconhecem a corrupção no governo Jair Bolsonaro de hipócritas, questionar-lhes o caráter, é a saída fácil. Mas é preciso encarar o fato de que a política ancorada em identidade também criou seu movimento à direita do flanco. Sem reconhecer isto, os 30% na extrema-direita, ameaçando a democracia, continuarão aí por anos.


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