Décadence avec élégance
O censo de 1911 contabilizou 283 chineses em Paris. Um seleto grupo de estudantes, jornalistas, intelectuais e comerciantes que tinham o privilégio de ostentar esse luxuoso CEP em suas correspondências.
Uma dimensão do que foi a “Belle Époque” em Paris: em 1906, Santos Dumont já tinha acumulado fama pelos diversos shows nos céus da Cidade Luz. Nos anos que seguiram, “Le Petit Santos” e outros cientistas locais do naipe de Marie Curie e Gustave Eiffel acolhiam vizinhos interessantíssimos. O maior pólo de tecnologia mundial passou também a ser morada de artistas como Hemingway, Gertrude Stein, Ezra Pound, James Joyce, Picasso, Zelda e F. Scott Fitzgerald… Vou parar só nesses! Se continuar, o coração de Pedro, nosso editor-historiador-chefe, explode!
Pouco mais de um século depois, o censo contou 2,1 milhões de parisienses. Número idêntico à quantidade de turistas chineses que visitaram a cidade em 2018. Em 2019, eles sumiram abruptamente e até agora as indústrias do turismo e do luxo, setores fundamentais para a economia francesa, ainda estão contabilizando o prejuízo e nutrindo um sonho distante de que, talvez um dia, os chineses voltem.
Mas a realidade é dura de engolir. Paris perdeu o seu encanto e pouco reflete o esplendor de 100 anos atrás. O grande mercado de ideias, com mentes brilhantes de todos os cantos do planeta, virou uma grande Rua 25 de Março de luxo. E agora, nem isso.
O dragão acordou
Até os anos 90, turismo internacional para o cidadão chinês era praticamente proibido. Viagens internacionais precisavam de sólidas justificativas para serem aprovadas. E ninguém tinha grana pra fazer turismo. A economia chinesa era 50 vezes menor do que é hoje. A partir de 1995, alguns destinos internacionais foram aprovados para “excursões acompanhadas”. No curto espaço de seis copas do mundo, uma nova realidade: em 2019, o turista chinês movimentou US$ 260 bilhões na economia global, duas vezes mais que o turista americano.
Hoje, estima-se que a China já tenha mais de 5 milhões de milionários. Nos Estados Unidos, são 20 milhões de indivíduos com patrimônio maior que US$ 1 milhão. Para completar o quadro: a França tem uns 2 milhões e meio de ricaços esperando a fila da guilhotina voltar a andar. No Brasil, são 200 mil.
Milionários precisam ostentar sua prosperidade. Muito Channel, Cartier, Louis Vuitton… Por isso, a China já representa um terço do mercado de luxo global. E caminha para abocanhar a metade em 2025. Paris é o destino favorito para essas comprinhas e o aporte de divisas não fica só nas boutiques. A Brasserie L’Alsace, parada estratégica na Champs Elysées durante uma maratona de compras, chegou a contar com 70% do faturamento vindo dos clientes asiáticos. “Brasileiros, paquistaneses e indianos são numerosos, mas quem gasta mesmo é o chinês”, dizem os garçons.
Sacoleiros de luxo
A imagem dos ônibus de sacoleiros lotando a região da 25 de Março e lojas de atacado no Brás é bem familiar para nós brasileiros. Esse é exatamente o último retrato que tenho de Paris. Ônibus de excursão por toda parte, carregando um novo tipo de visitante chinês: o “daigou“.
Empreender como ”personal shopper“ internacional tornou-se uma forma de vida para muitos chineses. Para evitar a fadiga de longos vôos e da muvuca garimpando novidades, as dondocas chinesas passaram a terceirizar a viagem. O ”comércio daigou“ chegou a representar 80% do volume de vendas de mercadorias de luxo na China. Tudo sem pagar imposto, naquela modalidade de ”contrabando soft“ também muito familiar para brasileiros que costumam passear por Miami. O governo chinês começou a tomar medidas para acabar com a farra em 2019.
As marcas de luxo também sofrem com a competição dos ”daigou”. Os atravessadores tiram as margens das filiais chinesas, pois oferecem as mesmas mercadorias com desconto. E ainda trazem as novidades de Paris antes de aparecerem em Shangai. Solução adotada: as coleções passaram a ser lançadas primeiro na China, depois na França.
Não é “só um resfriadinho”
O efeito da pandemia foi devastador. De 2019 para 2020, as compras de artigos de luxo na Europa despencaram 36%, ficando em € 27 bilhões. Do outro lado, nesse mesmo período, a balança comercial chinesa comemora. Com o contrabando “daigou” sendo combatido e as restrições ao livre trânsito de passageiros internacionais, os milionários chineses passaram a gastar mais nas boutiques locais. O faturamento das lojas de luxo na China chegou a € 44 bilhões em 2020, crescendo surpreendentes 45% no meio de tantas tormentas.
As famosas Galerias Lafayette precisaram vender 11 boutiques e os corredores permanecem vazios. Os espaços e horários exclusivos para a clientela “daigou” ainda não foram reativados. O golpe para a empresa foi de € 1 bilhão, com uma queda de 50% do faturamento em 2019. Outro ícone para compras sofisticadas, a Printemps, fechou 3 lojas.
“Nós precisamos dos chineses“, declarou o CEO do grupo Accord, gigante da hotelaria francesa, dono de 5.100 estabelecimentos ao redor do mundo. ”Os europeus e americanos já retornaram, mas ainda falta recuperar um terço dos hóspedes. Mas, infelizmente, sabemos que os chineses não voltam antes do fim de 2023. Sendo otimista.“ Certamente, esse otimismo conta com a manutenção do silêncio de Emmanuel Macron sobre Taiwan e outras questões delicadas. A interrupção do fluxo de turistas como demonstração de ”soft power” é uma arma conhecida da diplomacia chinesa.
Esqueça Paris
Os próximos “anos loucos”, cheios de bares e baladas transbordando ideias de vanguarda, estão se configurando em outra freguesia: Lisboa. A capital portuguesa recebe um número crescente de turistas de todo o continente europeu. Além dos americanos, que cansaram de pagar vinho caro e reclamar do “steak tartare” mal passado nos restaurantes da França.
O fluxo de exilados brasileiros coloca ainda mais tempero nesse caldeirão. Artistas e empreendedores em busca de mais liberdade, segurança, qualidade de vida e estabilidade econômica aceleraram muito nos últimos anos. E não vão parar tão cedo. Portugal precisa de mais gente. E a criatividade é muito bem recebida.
Não é à toa que o termo “Califórnia europeia” começa a ganhar força como slogan informal do país, que possui uma política fiscal favorável para atrair milionários e nômades digitais. A lista de vizinhos interessantes do nosso cripto diretor de arte Tony de Marco não pára de crescer. Ai Weiwei, John Malkovich, Philippe Starck, Christophe Sauvat, Christian Louboutin, Monica Bellucci, Madonna, Phil Collins, George Clooney, Gisele Bündchen e, em breve, Pietra Príncipe. Sem dúvidas, uma bela época para estar lá.