As urnas como obstáculo ao golpe

Ao contrário de Trump, Bolsonaro vai enfrentar um sistema eleitoral sólido e eficiente nas eleições. Não à toa tenta desacreditá-lo

Ao ter a candidatura à reeleição oficializada no último domingo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) enfatizou seus ataques à Justiça – à Eleitoral em particular – e convocou seus apoiadores a tomarem as ruas no Sete de Setembro. Quer repetir, anabolizada, a jornada golpista do Dia da Independência do ano passado, quando a polícia do Distrito Federal impediu sete tentativas de invasão ao prédio do Supremo Tribunal Federal (STF). Dias antes, num movimento que provocou espanto entre diplomatas, convocou dezenas de embaixadores estrangeiros para fazer ataques infundados às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral brasileiro. Nos bastidores, até aliados do presidente viram o gesto como um “discurso de derrota” que não faz efeito além da bolha de seus apoiadores fiéis.

Olhadas em conjunto e à luz das pesquisas de intenção de voto, as ações de Bolsonaro pintam um quadro de deslegitimação do processo eleitoral a fim de contestar um resultado que se desenha desfavorável. O apelo à mobilização da base de apoiadores e a defesa do armamento da população apontam para planos de uma ruptura institucional semelhante à que foi tentada por Donald Trump, em tudo modelo de Bolsonaro, em 6 de janeiro de 2021. Naquele dia, uma turba incitada peloentão  presidente dos EUA invadiu o Congresso americano para impedir a homologação da vitória de do democrata Joe Biden. Não conseguiram, e muitos já estão cumprindo pena.

Entretanto, há diferenças importantes entre o caminho que levou à frustrada tentativa de Trump e o que aparentemente planeja Bolsonaro. Para o americano, uma ruptura armada, inédita no país, era uma última hipótese, um “plano D”, após esgotadas as alternativas. Para Bolsonaro, é o único plano possível. E a explicação para isso está no contraste entre os sistemas eleitorais americano e brasileiro.

Para entender como os americanos votam, é preciso ter em mente a diferença entre os processos de independência dos dois países. Aqui, uma colônia – depois reino – com governo central e províncias subordinadas, tornou-se um país com a mesma estrutura. A República fez das províncias estados e deu-lhes mais atribuições, mas com o poder ainda emanando da capital federal. O processo de formação dos EUA foi inverso. Lá, 13 colônias com governos autônomos entre si se uniram para romper laços com a Inglaterra e formar um país onde os estados concediam à União poderes em áreas como economia, política externa e defesa, mas conservavam em grande parte sua autonomia.

Toda a estrutura política e legal dos EUA foi pensada tendo os estados como foco e com a preocupação de evitar a opressão de um governo central ou das unidades federativas maiores sobre as menores. E isso se reflete no sistema eleitoral.

A rigor, embora haja algum nível de jurisdição federal nas eleições presidenciais, elas são assuntos dos estados, em alguns casos, dos condados/municípios. Os eleitores de um estado votam nos candidatos à Casa Branca, mas não diretamente. O que está em jogo são os delegados do estado que votarão no Colégio Eleitoral. Eles são escolhidos pelos Legislativos estaduais e, à exceção de Maine e Nebraska, vão todos para o candidato vencedor, o que gera uma acentuada sub-representação. Em pelo menos cinco eleições, incluindo 2000 e 2016, o presidente que tomou posse não foi o mais votado nacionalmente.

O mais grave, porém, é que a eleição não é coordenada por um Poder independente. Em cada estado, o Executivo estabelece as regras e fiscaliza o processo. O conflito de interesses inerente a esse sistema ficou claro na Flórida, durante as eleições presidenciais de 2000. O republicano George W. Bush obteve uma vantagem de apenas 1.784 votos sobre o democrata Al Gore, o que já exigiria uma recontagem. Além disso, muitos eleitores de Gore afirmaram terem sido induzidos ao erro por uma cédula de votação confusa. A recontagem foi feita e a vantagem de Bush caiu para apenas 327 votos. Após uma batalha judicial, a Suprema Corte decidiu dar a vitória ao republicano, garantindo-lhe a maioria no Colégio Eleitoral. Especialistas concluíram depois que 18 condados não realizaram de fato a recontagem. Todo o processo foi conduzido pela então secretária de Estado da Flórida, Katherine Harris, braço-direito do governador Jeb Bush, irmão do candidato vencedor. Pano rápido.

Como a investigação ora em curso no Congresso dos EUA vem demonstrando, Donald Trump tentou subverter todos os passos desse processo. Questionou o registro de eleitores, exigido em 49 dos 50 estados, e a até então corriqueira votação antecipada e/ou pelo correio. Com o sistema do Colégio Eleitoral, ele precisava somente reverter a derrota em dois ou três estados governados por republicanos para continuar na Casa Branca. Fechadas as urnas, pressionou, sem sucesso, apuradores e fiscais a descartar votos em Biden. Depois, tentou que Legislativos de maioria republicana ignorassem a vitória do democrata e nomeassem seus delegados para o Colégio Eleitoral. Paralelamente, foi a diversas instâncias do Judiciário tentar interromper o processo de apuração. Bastava que uma pessoa ou um grupo mais leal ao presidente que ao país o atendesse, mas esbarrou em algo que talvez lhe fosse estranho: ética. Derrotado em todas as frentes, apelou para a turba em 6 de janeiro.

Em comparação a Trump, a margem de manobra de Bolsonaro para reverter fora das urnas o resultado da eleição é muito exígua. Ao contrário dos EUA, o Brasil tem um sistema eleitoral centralizado e independente, com órgãos colegiados nos níveis estaduais e federal. Além disso, só o Congresso tem a prerrogativa de criar leis sobre matéria eleitoral, e o TSE também estabelece regras por meio de resoluções. A votação segue o mesmo procedimento e usa o mesmo equipamento em todo o país, e a totalização, fiscalizada por dezenas de entidades e órgãos, incluindo a Polícia Federal e as Forças Armadas, é centralizada.

Claro, nem sempre foi assim. Até 1916, quando o presidente Wenceslau Brás entregou o comando do processo eleitoral ao Judiciário, as eleições eram organizadas pelos caciques locais, e a fraude era regra. Não havia cédulas padronizadas. Cada eleitor levava a sua já com o nome do candidato.

Conta uma anedota que, ao receber do oligarca local a cédula já fechada e colada, um eleitor perguntou: “Mas coronel, em quem estou votando?” A resposta: “Rapaz, você não sabe que o voto é secreto?!”

Inspirada no modelo da Checoslováquia, a Justiça Eleitoral brasileira foi criada em fevereiro de 1932, como uma das reformas da Revolução de 30. Reformada em 1935, ela teve, porém, vida curta, extinta com o golpe do Estado Novo em 1937. Sem eleições, para que Justiça Eleitoral? Só foi restabelecida junto com a democracia, em 1945. Dessa época vieram o direito de voto a todo cidadão maior e alfabetizado, salvo exceções previstas na lei, e inovações para reduzir o risco de fraudes, como a fixação do eleitor numa seção eleitoral e um modelo único de cédula. Durante a ditadura militar, o TSE e os TREs continuaram existindo, mas ao sabor das mudanças de regras impostas periodicamente pelo regime.

A Constituição de 1988 reiterou o papel da Justiça Eleitoral e universalizou o direito a voto, incluindo analfabetos e, facultativamente, jovens de 16 e 17 anos. Mas o grande avanço aconteceria a partir de 1996, com a adoção paulatina das urnas eletrônicas. Desde então, ao contrário do que insiste Bolsonaro, nem um único caso de fraude foi comprovado. Como nem elas nem o sistema de totalização do TSE estão conectados à internet, um ataque hacker é impossível, e a cada pleito são feitos novos testes e ajustes de segurança. A adoção, a partir de 2008, do cadastro biométrico, com o eleitor sendo identificado pela digital e pela foto, fecha a porta para a última possibilidade de fraude na votação e apuração.

E aí está o drama de Bolsonaro. Não lá legislações locais a manipular, formas de suprimir o exercício do voto, correligionários a serem pressionados ou aliciados nem juízes de primeira instância a quem apelar – não que isso tenha funcionado para Trump. Aqui, a eleição presidencial começa e termina no TSE, daí a necessidade de pressioná-lo e desacreditá-lo e a seus ministros. Fora das urnas, a única alternativa para Bolsonaro se manter no poder é pular direto para a ruptura. Para o bem da democracia, esperemos que, caso ela aconteça, termine com uma derrota semelhante à que Trump amargou no fatídico 6 de janeiro.

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