Em busca da esperança perdida
Por Flávia Tavares e Pedro Doria
No dia em que tomou posse como presidente da África do Sul, Nelson Mandela se apresentou de terno azul, camisa branca, lenço da mesma cor cuidadosamente posto no bolso. A gravata cinza, amarrou-a num Windsor duplo. Seu discurso não durou dez minutos e ele o leu de forma pausada, com o apoio dos óculos de aviador. Eram óculos de leitura mas preferia as armações com lentes grandes, tingidas num tom ocre que mantinham transparência mas o protegiam da luz. Durante seus 27 anos de prisão, trabalhou quebrando calcário, uma rocha sedimentar tão branca, que refletia o sol tão intensamente, de uma natureza química tão alcalina, que quando enfim deixou o cárcere estava gravemente fotofóbico e havia queimado as glândulas lacrimais a ponto de perder a capacidade de chorar. O líder sul-africano passaria o resto da vida com vermelhidão nos olhos e em busca de ambientes com penumbra. “Cada um de nós está tão intimamente conectado ao solo deste país quanto os jacarandás de Pretoria e as árvores mimosas da savana”, afirmou. “Formamos uma nação arco-íris em paz consigo e com o mundo.” Mandela confirmava ali a visão de futuro para a nação que já havia seduzido o eleitorado. Ele foi eleito para entregar a nação arco-íris em que o convívio de pessoas com cores de pele diferentes seria possível.
Uma visão que permitia esperança.
As duas coisas, visão de futuro e esperança, caminham juntas na política e levam a melhores resultados quando encampadas por um líder. O encontro deste trio — visão de futuro, esperança e líder — não é trivial de promover. Mas, quando ocorre, é capaz de inspirar, unir gente o bastante numa sociedade e gerar força para transformação. Nesta edição de Sábado, o Meio lembra a história de dois líderes que foram capazes de produzir este efeito. Nelson Mandela é um. Assim como também o brasileiro Tancredo Neves. Esperança parece algo vago, mas não é. Não em filosofia política. E o que há na ausência de esperança é desespero. Este é o estado em que boa parte do mundo se encontra hoje. Estamos sem bússola. O estado de desorientação nos tira a capacidade de imaginar o futuro pessoal, o que gera angústia. Tampouco conseguimos imaginar um futuro coletivo. Não sabemos o que esperar da economia, estamos sem acordo a respeito do que é comportamento aceitável em sociedade, nossos valores tão distintos distanciam mais do que aproximam.
O Marquês de Condocert, filósofo do Clube dos Trinta da Revolução Francesa, depois renegado pelos parceiros revolucionários, acreditava que a humanidade caminhava para o progresso. Que se desenvolveria política e moralmente. Era, claro, um iluminista e, por isso, racionalista. Essa crença na evolução se baseava, para ele, na “quase certeza” oferecida pela História. Na garantia de igualdade de direitos a todos os cidadãos, o que lhes daria condições de buscar o conhecimento necessário para promover esse ciclo virtuoso de progresso. Sua esperança já tinha por âncora uma visão de futuro.
Seu contemporâneo alemão, Immanuel Kant, listava três questões que via como fundamentais na filosofia: O que posso esperar? O que posso saber? O que devo fazer? É essa tríade que sustenta a ideia de ação política baseada na esperança bem informada. E está ali a mesma ideia de Condocert — a de que há progresso histórico e que isso motiva esperança. A partir do que sabemos temos noção do que podemos esperar e, assim, compreensão do que é preciso fazer. Ao longo do tempo, surgem oportunidades para que agentes políticos sejam nobres o suficiente para levar a cabo os ideais de igualdade e liberdade da revolução. Ou estarão sujeitos a uma nova onda revolucionária. Essa noção de uma esperança individual em favor da sociedade dá sentido ao contrato social, ao seguimento de regras. À convivência política.
Quando se vislumbra um futuro em conjunto, e se compreende que só por meio de ação política ele será alcançado, ganha-se também a noção de responsabilidade para que esse futuro aconteça — e isso vale tanto para governantes quanto para eleitores. É um equilíbrio difícil. Há quem diga que as pessoas mais atraídas ao poder são as menos preparadas para exercê-lo. É aí que entram as instituições, e a confiança nelas, como elemento fundamental desse mecanismo. Como ferramenta de guia e contenção para que líderes e liderados mantenham-se fiéis ao acordo. Recuperar a confiança e a esperança em líderes e instituições é uma tarefa imediata.
Mandela
O regime do Apartheid foi instaurado na África do Sul em 1948. Sua intenção declarada era de separar os povos que viviam no país para que cada um se desenvolvesse em separado. Na prática, criou-se um sistema no qual a maioria negra era mantida em guetos, propositalmente deseducada e na pobreza, enquanto os brancos se isolavam cada vez mais com medo de uma explosão social. Um regime assim simbolicamente violento só pode se sustentar mantendo o controle social com violência física. Nelson Mandela, um dos líderes do Congresso Nacional Africano, era um advogado e ativista preso em 1962 por incitar rebelião. Da prisão, por 27 anos, escreveu cartas longas e reflexivas. Quando finalmente foi solto, em 1990, a população sul-africana sequer tinha ideia do que esperar de seu rosto. Fotografias haviam sido proibidas, não havia qualquer registro de quanto ele tinha mudado. Aquele homem barbado, bochechas proeminentes, cabelo dividido em dois e cortado rente no julgamento havia sido substituído por outro, de uma marcante cabeleira grisalha e rosto emagrecido. Quase sempre com os olhos miúdos, apertados.
Mandela foi solto por ordem direta do presidente Frederik Willem de Klerk, que em oposição a seu próprio partido havia decidido promover o fim do Apartheid. Naquele mesmo momento, ditaduras ruíam na América Latina e, na URSS, Mikhail Gorbachev ainda tentava reformar para salvar o sistema comunista. De Klerk compreendeu o espírito do tempo e apostou que, se tomasse a iniciativa de promover a abertura, conseguiria manter alguns dos privilégios para os brancos. Para Mandela, que havia passado décadas em isolamento e com o contato com o exterior mediado por cartas controladas e censuradas, tudo era um desafio. Em 9 de fevereiro de 1990, o prisioneiro político foi levado de encontro ao presidente para negociar sua soltura, que ocorreria no dia 11. Mandela quis mais tempo para organizar, não ganhou. E ouviu de De Klerk um pedido. Que controlasse a raiva do povo.
Pois em dois dias, sem ter tido espaço para qualquer organização, Mandela estava perante uma multidão na praça em frente à prefeitura, na Cidade do Cabo. Dois dias antes não sabia que teria liberdade e agora precisava discursar para centenas de milhares de pessoas. Precisava, também, ganhar poder de barganha sem implodir o país. “Saúdo vocês em nome da paz, da democracia e da liberdade”, ele disse. “Hoje, a maioria dos sul-africanos, brancos e negros, reconhece que o Apartheid não tem futuro. Foi encerrado por decisão das massas. Esperamos muito tempo por nossa liberdade.” Isolado em reflexão, Mandela havia se tornado um líder político hábil. No discurso, apontou para a democracia como caminho. Deixou demarcado para quem estivesse assistindo que tinha consigo o poder das massas e que liberdade não seria negociável. Mas que queria paz numa África do Sul compartilhada por brancos e negros.
Houve mortes nos quatro anos seguintes até sua posse como presidente, em maio de 1994. Houve brutalidade policial. Houve briga, raiva. Mas Mandela e De Klerk não deixaram de conversar e negociar um único momento, ambos trabalharam para que uma Constituição nova fosse criada de forma a transformar o país numa democracia. O partido de Mandela, o ANC, recebeu quase 63% dos votos contra 20% do Partido Nacional de De Klerk.
“Lembre-se de que esperança é uma arma poderosa”, escreveu Mandela a sua então mulher Winnie, em 1969. Esperança era um tema sobre o qual pensava. Ele compreendia que ela vinha de uma visão clara de futuro comum que fosse capaz de mobilizar gente o bastante. É esta ideia de futuro, que ele sempre desenhava em seus discursos, que despertava esperança. Esperança une a sociedade. E um líder hábil é capaz de canalizar esta força.
Tancredo
O que Tancredo de Almeida Neves, um político mineiro conservador e tradicional, sempre teve foi dignidade. Foi o primeiro a entrar no quarto de Getúlio Vargas, de quem era ministro da Justiça, na manhã de seu suicídio. Não era ligado a Getúlio, foi parar no cargo por sua conexão com Juscelino Kubitschek num acordo político. Mas seguiu leal ao presidente que serviu até a morte. Em 1961, negociou e impediu um golpe militar, logo após a renúncia irresponsável de Jânio Quadros, tornando-se um dentre os três primeiros-ministros que o Brasil teve no período republicano. Estava em plenário no Congresso Nacional gritando “canalha” contra os golpistas em março de 1964. Um político conservador que defendia a presidência do presidente mais à esquerda que o país jamais tivera. De certa forma, ele havia se tornado em vida o líder perfeito para conduzir a volta do Brasil à democracia.
Não à toa. Entre 1976 e 77, o país perdeu ao mesmo tempo seus três principais líderes do período anterior à ditadura — JK, Jango e Carlos Lacerda. Na ausência dos três, ninguém tinha a experiência de Tancredo. Ao mesmo tempo, assim como De Klerk faria na África do Sul, os militares tentavam aproveitar de uma situação em que ainda tinham poder para determinar os rumos que a democratização tomaria. O primeiro passo foi reimplementar o pluripartidarismo antes da abertura, para que a oposição se fragmentasse e se perdesse em conflitos internos. A Ditadura também trabalhou para esvaziar as referências que vinham do passado. Fez isso de muitas formas, uma delas forçando em lei que todas as novas legendas precisariam começar com P, de partido. Desta forma, o MDB que representou por anos o enfrentamento do regime teria de se apresentar com um nome menos familiar ao eleitor. PMDB. E a antiga UDN, o partido da classe média urbana, não poderia renascer. Sobraria o PTB, de Getúlio e Jango, que tinha por herdeiro legítimo Leonel Brizola. Armaram para arrancar dele a sigla.
O grande político tem em si uma capacidade de sintonizar a sociedade. Sente no vento suas transformações lentas. Percebe quais seus valores, seus anseios. Pode ser da intuição que conversas na rua provocam, pode vir na forma de pesquisas, um misto. Os melhores políticos constroem a partir desta percepção. São capazes de inspirar, de pegar uma onda de mudança no instante exato, até mesmo de a moldar. Ainda assim, compreendem que há limites.
No dia 31 de outubro de 1975, oito mil paulistas tiveram de enfrentar o medo para ouvir, na Praça da Sé paulistana, D. Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright numa celebração da vida do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura na semana anterior. Em 25 de janeiro de 1984, quase nove anos depois, 1,5 milhão de pessoas se encontraram na mesma praça. Não havia medo e sim felicidade. No palanque montado com uma estrutura de tubos de aço e compensado, o amarelo era a cor dominante. Ao fundo, em uma grande placa se inscrevia, em verde, Eu quero votar pra presidente. A multidão erguia bandeiras de clubes de futebol e do estado de São Paulo, bandeiras brasileiras várias, faixas amarelas muitas e as cores de partidos. Convocados sempre por Osmar Santos, o popular locutor esportivo da Rádio Globo local, se intercalavam ao microfone artistas e políticos, às vezes com discursos breves, outros mais longos. Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Teotônio Vilela, Ulysses Guimarães e, claro, Tancredo Neves. Aqueles comícios pelas Diretas Já se repetiram em inúmeras capitais brasileiras e costumavam se encerrar com Fafá de Belém cantando o hino nacional e ao fim, com as mãos, soltando no ar uma pomba branca.
Mas, para chegar ao momento de êxtase do comício das Diretas na Praça da Sé, foi preciso costurar para reunir a oposição que a Ditadura havia separado. Essa divisão da oposição permitiu que, embora eleito, o Congresso Nacional que decidiria pela realização de eleições diretas para presidente em 1984 fosse ainda dominado pelo PDS governista. Ou seja, a emenda constitucional não passou.
Como líder, Tancredo precisou gerenciar múltiplas forças simultaneamente.
A visão de futuro estava lá — da democracia nasceria um país mais justo, sem fome ou inflação, com educação e saúde públicas de qualidade. São, por isso mesmo, as promessas inscritas na Constituição de 1988. A esperança era imensa e se materializou nas multidões que se espalharam pelo Brasil pelas Diretas Já. Mas era preciso, perante a frustração da derrota da emenda que permitiria as eleições para presidente, canalizar esta esperança. Pois, na ausência de eleições diretas, a candidatura de Tancredo Neves incorporou a esperança para um futuro melhor. Sem Diretas Já, Tancredo para presidente mobilizou a sociedade.
Mas era preciso articular uma maioria que garantisse sua eleição no mesmo Congresso que havia derrotado as Diretas. Tancredo conseguiu usar a mesma arma que os ditadores haviam dominado — explorou as divisões entre os governistas, atraindo gente como os governadores baiano Antônio Carlos Magalhães e pernambucano, Marco Maciel. Atraiu até o presidente do partido governista, José Sarney. Que virou seu candidato a vice. Como Mandela, Tancredo usava a força que havia ganhado com o apoio popular, e oferecia espaço na mesa de negociação. Dividia poder.
Quando finalmente foi eleito, fez seu último discurso público no plenário da Câmara dos Deputados. “Não vamos nos dispersar”, disse. “Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão.”
Havia militares que ainda articularam, até o último minuto, impedir o fim do regime de exceção. Não aconteceu porque a sociedade brasileira estava mobilizada perante uma causa comum. Porque havia esperança. Porque havia uma ideia de país sendo promovida. E aquilo era sólido porque um líder havia organizado e canalizado estas forças a ponto de representa-las.
Desesperança
Um entendimento equivocado de esperança pode alimentar delírios coletivos, insensatez. Pode levar nações a escolhas bélicas, criminosas, contra outras nações ou seu próprio povo, tudo em nome de se entregar um ‘futuro melhor’, muitas vezes em nome de um passado idealizado — algo que a própria História já mostrou possível. Pode-se argumentar, inclusive, que os aspectos positivos da esperança política são privilégio de poucos grupos. Há aqueles que têm a esperança tão somente de sobreviver ao próximo dia. A vacina para a manipulação ou a elitização da esperança está precisamente na ciência e na política, no encontro de um senso comum do que se espera desse futuro. E, eventualmente, aparecem líderes capazes de sintetizar aspirações diferentes numa visão coesa, como a da Nebulosa Carina.
Esta semana, pelas imagens capturadas pelo telescópio James Webb, testemunhamos pela primeira vez um berçário de estrelas. Imagens que, simultaneamente, nos transportam para 13,5 bilhões de anos atrás, quando essas estrelas nasceram na Nebulosa Carina, e remetem a um futuro que desconhece limites. As primeiras fotos do James Webb, divulgadas pela Nasa, são mais do que esteticamente deslumbrantes. Elas oferecem um vestígio de sonho em tempos sombrios. O melhor tipo de esperança possível: a promovida pelo avanço científico e pela grandeza de que a humanidade é capaz quando idealiza um futuro com um pé fincado na razão e outro na ação.
Não está fácil sonhar. No plano individual e no coletivo, há desalentos incalculáveis. Do colapso climático à pandemia. Do desemprego ao racismo. Da fome à violência contra a mulher. O ressurgimento, ou fortalecimento, de ideais supremacistas, reacionários, desumanos. Tudo isso oprime e torna quase ingênuo falar em esperança.
Mas Nelson Madela estava certo. A esperança é uma arma poderosa. Ela nasce de uma visão de futuro que sejamos, todos, capazes de compartilhar. Aí, quando um líder é capaz de articular ambas no entorno de ideais democráticos. Nesses momentos, algo acontece.