Três ideias para adiar o fim do mundo
“Hoje estamos o alvo de uma agressão que pretende atingir nossa essência, a nossa fé, a nossa confiança de que ainda existe dignidade e de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos”, bradou o líder indígena Ailton Krenak, vestido com um terno branco e o rosto pintado com tinta preta para protestar contra o que considerava um retrocesso na tramitação dos povos originários.
O pronunciamento é de 1987 da Assembleia Constituinte, mas as lições do autor de Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (Companhia das Letras) para impedir uma catástrofe climática em três anos estão mais urgentes que nunca. Da entrevista concedida à Elaize Farias, Katia Brasil e Renata Tupinambá, no Festival 3i – realizado pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor) – pesquei três caminhos indicados por Krenak: não naturalizar a violência, a escuta ativa e a espiral de afetos.
O filósofo critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”. E revelou: a ideia que protagonizou no discurso antológico no plenário não foi pensada.
O brado retumbante do escritor ainda inspira artigos científicos e ecoa ativamente nos rostos pintados de vermelho em Brasília. Cor que também está presente na mão dos garimpeiros que praticam abuso sexual em meninas ianomâmi, em troca de um prato de comida. A denúncia é da Hutukara Associação que lançou, nesta segunda (11), relatório Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo.
Diante desse cenário alarmante, no Brasil, a mineração artesanal se torna um eufemismo pernicioso para garimpo ilegal. É importante ouvir as vozes que vêm da floresta. Especificamente uma voz sábia e lúcida. As populações originárias têm muito a oferecer desde que alguém queira ouvir: “Mas a gente só pode contribuir com quem quer escutar”, dispara.
Não naturalize a violência
“É bem provável que nas nossas favelas 30% da população esteja vivendo nessas condições sub-humanas sem acesso a saneamento básico. Só que essas pessoas convivem, vivem, nascem, têm filhos, crescem, alguns nasceram, morreram e viveram dentro dessa máquina de fazer da miséria como se fosse uma condição natural. Então, é naturalizar o desastre. Uma ecologia do desastre é quando nós aceitamos a violência e nos acomodamos dentro dela. Seja uma violência com o ecossistema, com o ambiente que vivemos, seja uma violência contra o corpo.
“Nos conformar com o estrago que está ao nosso redor e ir nos adaptando. Seria mais ou menos como alguém que perde o braço, põe um braço mecânico. Pede a perna, põe uma perna mecânica e nós vamos gradualmente nos acomodando a uma ecologia do desastre. O rio está dragado, você bebe água que vem do caminhão pipa. A sua paisagem está devastada? Ah, você faz um reflorestamento.
“Então, nós estamos vivendo essa ecologia do desastre como um enunciado de um mundo que está se desmanchando debaixo do nosso pé, enquanto a gente continua andando como se nada estivesse acontecendo. É uma ideia terrível. Ela não é ingênua, é uma violência instituída.”
Escuta o xamã
“O nosso querido (Davi) Kopenawar [cientista e um dos principais propagadores da Teoria de Gaia aplicada], fala que a pedra, a água e a floresta não morrem. Quando um rio é dragado o tempo desse estrago para a vida dos humanos é como se fosse um fim daquele rio. Mas os humanos é que vão acabar, o rio vai voltar, o rio vai continuar. (…) Eu tenho insistido muito na ideia de metamorfose.
“Como humano acha que é o centro de todas as coisas, fica parecendo aquela canção romântica que dizia Meu Mundo Caiu, quer dizer o mundo daquele cara. Os outros mundos continuam. Quando eu publiquei Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, eu estava desbaratinando esse pessimismo, dizendo que tem outros mundos. É que os humanos acham que são os caras mais interessantes da vida aqui no planeta.”
Fala que eu te escuto
“Se nós escutarmos o que está ao nosso redor, nós vamos encontrar muitas outras perspectivas de vida e algumas delas cheia de beleza, confiança e esperança. A gente tem que fortalecer nossos vínculos de afetividade uns com os outros. A gente tem que animar uma espiral de afetos que anima cada um de nós a viver o dia, aquela ideia de viver esse dia e viver ele com a potência é capaz de animar outras pessoas também a viver o dia.
“A ideia da performance de pintar o rosto na Constituinte não foi pensada. Foi um gesto espontâneo, da mesma maneira que alguém leva martelada no joelho e balança a perna. Diante de uma situação de constrangimento, eu reagi buscando uma linguagem para me comunicar.(…) E em alguns momentos, eu acho que o homo sapiens deu errado.”
O futuro é ancestral
“Em guarani, jenipapo significa ‘fruta que serve para pintar’. E faz parte da tradição cultural dos Tupinambás em que a pintura é realizada com argila (branco), urucum (vermelho) e jenipapo (preto).
Para ele, nosso tempo é especialista em produzir ausências: “Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. (…) Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.” Podemos ser flecha.
Para assistir com calma:
Guerras do Brasil.doc (Netflix)
Para ler com calma: