De volta às paradas americanas 50 anos depois, o mítico “All Things Must Pass” consolida o legado de George Harrison mais uma vez
Era 27 de novembro de 1970, sete meses após a separação dos Beatles, quando o All Things Must Pass era finalmente lançado ao mundo. Um dos mais espetaculares álbuns da história do rock e obra-prima do músico britânico George Harrison, o disco marcava uma nova fase na vida e na música do artista, que agora estava longe do icônico Fab Four e da aliança criativa de Lennon-McCartney, dominante na maioria das composições durante toda a carreira da banda.
Com um remix totalmente novo, o ATMP ganhou uma luxuosa edição comemorativa de 50 anos neste mês, lançada em formatos que vão desde o vinil ou CD ao super deluxe e uber deluxe. Os preços custam de US$ 13 a US$ 25 na edição regular e até US$ 1 mil na edição uber deluxe. Esta última inclui 23 faixas originais, mais de 47 demos, outtakes e jams, em download digital, blu-ray, CD quíntuplo e vinil óctuplo, além de dois livros que documentam a criação do álbum – com todo este material em uma caixa de madeira colecionável com memorabilia. Definitivamente, uma edição de respeito para um álbum mítico que ultrapassa gerações e é visto como o melhor disco solo de um ex-Beatle.
Nesta semana, 50 anos depois, o All Things Must Pass também retornou ao Top 10 da Billboard 200 pela primeira vez desde 1971, alcançando a sétima posição e a marca de 32 mil unidades vendidas somente nos EUA, segundo a MCR Data. A edição comemorativa também marca a primeira vez que a música de Harrison aparece no Top 10 americano desde 1988, quando o disco “Cloud Nine” alcançou a 8ª posição. Também foi a posição mais alta nos charts desde que “Dark Horse” chegou à 4ª posição, em janeiro de 1975.
Fato é que esse não foi o primeiro disco de sua carreira, e sim o sucessor de outros dois álbuns: o Wonderwall Music (1968) e o Electronic Sound (1969). Mesmo assim, Harrison considerou o ATMP como a sua estreia solo. Uma estreia triunfal, diga-se de passagem: o disco é considerado o primeiro álbum triplo de estúdio da história. A versão original tem três LPs, numa caixa estampada por uma imagem de Harrison cercado por quatro gnomos de jardim em sua recém-comprada mansão Friar Park, uma construção vitoriana em Oxford, na Inglaterra.
Com grande elenco de músicos de apoio que dispensa apresentações, como Eric Clapton, o ex-Beatle Ringo Starr, Billy Preston e Klaus Voormann, o álbum foi coproduzido pelo maior produtor musical da época, Phil Spector, e traz os singles “My Sweet Lord” e “What Is Life”, bem como canções como “Isn’t It a Pity” e a faixa-título que deixou de ser incluída em lançamentos dos Beatles.
A aproximação com o vaishnavismo, uma vertente de hinduísmo, e a amizade com os devotos da Sociedade Internacional Para Consciência de Krishna (Iskcon), popularmente conhecida como o Movimento Hare Krishna, renderam à George Harrison um grande sucesso que liderou as paradas de singles em todo o mundo durante os primeiros meses de 1971: “My Sweet Lord”. E os recordes foram vários: a música foi o primeiro single solo de um ex-Beatle a ser número um no Reino Unido ou nos Estados Unidos, tornando-se a música mais tocada daquele ano. Na Billboard 200, liderou por sete semanas consecutivas e permaneceu até o fim de março de 1971 no Top 10.
A icônica faixa, assim como “Hear Me Lord” e outras canções do álbum, marcaram o começo do auge da fase mais devocional de George, que começou em 1966 durante sua viagem para a Índia, e que se seguiu por álbuns posteriores, como o Living In The Material World, de 1973, e o Dark Horse. Harrison, inclusive, foi amigo próximo do músico indiano Ravi Shankar – que o ensinou a tocar Sitar -, e do mestre espiritual Srila Prabhupada, fundador da Iskcon. Além disso, gravou e produziu um álbum de estúdio com os devotos do Radha Krishna Temple, de Londres.
O mergulho na filosofia milenar, religião e cultura védicas ajudaram a dar o tom introspectivo, místico e autorreflexivo ao ATMP. Em “My Sweet Lord”, o Mahamantra Hare Krishna se mistura propositalmente à expressão “aleluia”, pois, segundo Harrison, a intenção era mostrar que os dois termos “significam exatamente a mesma coisa”. Mas, além de um álbum cheio de influências filosóficas e religiosas, o All Things Must Pass é também uma mistura de gêneros musicais que combinam em perfeita harmonia, abrangendo desde o rock ‘n’ roll, country, gospel, passando por blues, pop, música clássica indiana e o folk, presente em “If Not For You”, composta por Bob Dylan.
Previsto para ser lançado originalmente em 2020 e adiado por conta da pandemia de coronavírus, o álbum remasterizado contou com a produção executiva de Dhani Harrison, músico e filho do cantor, e inclui outras faixas que não apareceram na versão original de 1970, como “Cosmic Empire” e a versão demo “Om Hare Om (Gopala Krishna)”. Trazendo a voz de Harrison para o primeiro plano, a sensação de ouvir o novo remix é quase como rezar junto a ele em “Hear Me Lord”, por exemplo, numa sonoridade ainda mais intimista e emocional. A voz tranquila do “Quiet Beatle” pode, enfim, ser ouvida em toda a sua glória. E você também pode ouvi-la aqui. Hare Krishna!